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Thiago Camargo

Lobby por parabólicas é absurdo e atrasa 5G

Brasil perde tempo enquanto discute custos para manter uma gambiarra, diz ex-secretário nacional

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Thiago Camargo

Advogado e mestre em administração pública pela Universidade Columbia. Foi secretário de Políticas Digitais do MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações) e membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil

[RESUMO]Implantação do 5G, tecnologia de altíssima velocidade de conexão que mudará nossa forma de interagir com o mundo, emperra no Brasil devido a burocracias, a propostas ineficientes e ao lobby para proteger modelo defasado de antenas parabólicas.

“É você que ama o passado e que não vê / É você que ama o passado e que não vê / Que o novo sempre vem.”

Estava certo Belchior, estava certa Elis. O novo sempre vem e, no caso do 5G no Brasil, ele virá. A tentativa, porém, de proteger um serviço que era necessário no passado virou o maior motivo de atraso de sua chegada. Por que isso pode impactar nossas vidas?

O 5G é, na verdade, uma redefinição das possibilidades do que poderemos fazer com conectividade. Mudará nossa forma de produzir, relacionar, aprender, consumir e interagir com o mundo. É como se depois de um ventilador de três pás e um ventilador de seis pás, alguém finalmente apresentasse a você o ar-condicionado.

Funcionários instalam equipamentos 5G em antena em Utah, nos Estados Unidos - George Frey/Getty Images/AFP

Assim como ar-condicionado não se restringiu ao uso residencial, sendo aplicado no uso automotivo, por exemplo, o mesmo acontecerá com o 5G, que estará presente em aspectos de nossas vidas que nem podemos imaginar.

O 5G representa a possibilidade de reorganização do trânsito, da segurança, dos sistemas de saúde e educação. Não menos importante, poderemos assistir ao próximo filme de Christopher Nolan, “Tenet”, em resolução 8K.

Além de velocidade até 20 vezes maior que a geração anterior, as redes 5G também terão uma latência menor. Latência é o tempo entre a execução de uma ordem no celular ou computador, o tráfego dessa ordem na internet até o destino e a tradução dessa ordem em determinada ação.

Com uma velocidade maior e um tempo de resposta menor, possibilidades que seriam antes impossíveis, como um carro autônomo ou uma cirurgia realizada por internet, passam a ser reais.

Hoje já há 5G comercial em quase 30 países em todos os continentes. O primeiro a adotar a tecnologia foi a Coreia do Sul. Na América do Sul, o Uruguai. O mais recente a ofertar o modelo foi a África do Sul, que liberou uma licença emergencial como um dos esforços no combate aos danos causados pela pandemia.

E o Brasil? Bem, o Brasil nunca foi pioneiro em redes móveis. Tanto no 3G quanto no 4G, passaram-se seis anos entre o lançamento da primeira oferta comercial no mundo e a chegada aqui.

No caso do 5G, contudo, tínhamos muitas razões para acreditar que seria diferente —razões para acreditar que seríamos um dos primeiros, inclusive.

O Brasil fez parte, desde o começo, do 3GPP, um grupo que define padrões para banda larga móvel; teve papel preponderante e propostas aprovadas para padrões de 5G nas reuniões da União Internacional de Telecomunicações; contratou duas avaliações externas da OCDE para adotar melhores práticas em telecomunicações e digitalização da economia; a Anatel foi um dos primeiros reguladores nacionais a criar um comitê de uso do espectro.

Tudo levava a crer que poderíamos fazer o leilão do 5G já em 2019 ou, na pior das hipóteses, em março de 2020. A realidade política, contudo, entrou em campo.

Parte do governo é extremamente focada em digitalização. É notório o esforço e o sucesso do governo na digitalização de serviços, mas esse esforço é dependente de conectividade. Por sua vez, conectividade demanda investimento, e investimento detesta o cheiro de instabilidade institucional no café da manhã.

Apesar do esforço de alguns conselheiros da Anatel em seguir rapidamente com o leilão, houve demora injustificada em relatório, proposta ineficiente para leilão, retirada da proposta do conselho para esperar portaria, portaria que cria obrigações problemáticas e, nisso, perdemos um ano. Justamente o ano da briga entre americanos e chineses e o ano da pandemia.

A demora brasileira na definição do leilão criou a abertura temporal para o debate sobre a possibilidade ou não de se banir, a pedido dos americanos, uma fornecedora chinesa de equipamentos 5G. Eu não sei o que o Brasil teria a ganhar com isso, mas vamos falar do que tem a perder.

A fornecedora chinesa tem empregados, produz equipamentos e investe em pesquisa no Brasil, assim como seus concorrentes americanos, suecos, finlandeses e sul-coreanos. Além disso, a fornecedora chinesa já está presente nas redes de comunicações do Brasil há anos e seria muito caro substituir isso de uma hora para outra.

É possível que os equipamentos também ficassem mais caros, já que teríamos uma competição menor, com o aumento nos custos sendo repassado para os mesmos bolsos de sempre: os do consumidor.

Por fim: o Brasil exporta em grãos para a China mais do que o dobro do que importa em equipamentos elétricos e eletrônicos. Não bastando tudo que o Brasil tem a perder, o próprio temor de espionagem é injustificado.

A China pode espionar o Brasil se dominar a infraestrutura de comunicação? Pode. Assim como os americanos também podem e o fizeram, como revelado em 2013. Bem como poderiam russos, alemães, australianos e até brasileiros com ou sem autorização judicial.

Espionagem independe de domínio de infraestrutura. Essa seria, aliás, a forma mais cara de espionagem, provavelmente. Com inúmeras camadas de obtenção, tratamento e armazenamento de dados de voz, imagem e texto, são inúmeras as vulnerabilidades que permitem que informações sejam obtidas de forma ilegal.

A demora no leilão ainda será agravada por outro problema inesperado: a pandemia. Tudo agora vai atrasar. O leilão do 5G ainda mais, pois depende de alguns testes.

Depois da realização do leilão, os investimentos também irão demorar —com o possível encolhimento de até 9% do PIB, será difícil atrair os R$ 180 bilhões em investimentos até 2025, como se chegou a cogitar.

Como se um embate entre dois gigantes geopolíticos e uma pandemia global não fossem problemas suficientemente inquietantes, temos ainda a questão das parabólicas, principal entrave para o leilão do 5G.

Tudo começou quando radiodifusores e uma parte do governo passaram a demonstrar preocupação após testes indicarem que antenas de 5G poderiam interferir no sinal das parabólicas.

O MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações) —antes da recriação do Ministério das Comunicações— publicou portaria definindo regras para o leilão do 5G. Acertou muito ao criar a obrigação de oferta de 4G em áreas rurais e isoladas, mas criou a obrigação de que fosse assegurada a recepção de boa imagem para quem usa antena parabólica.

Essa obrigação foi em resposta a uma pressão dos radiodifusores, usando dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) que mostram que 30% dos domicílios possuem parabólica. O problema é que a mesma Pnad diz que somente 6,9% dos domicílios possuem exclusivamente sinal de antena parabólica. Bastava olhar as outras tabelas na mesma planilha de Excel.

Além disso, esses domicílios estão em locais onde não há oferta nem de TV aberta. Será, então, pouco provável ter alguma antena de 5G ali em um futuro próximo.

O pior de tudo são as soluções pensadas, pois, até agora, apenas duas estão na mesa: instalação de filtros em todas as parabólicas afetadas ou migração dos canais de TV para outra banda de satélite. Os custos ficariam, dependendo da solução e de quem faz a conta, entre R$ 500 milhões e R$ 8 bilhões.

Esta é a grande discussão brasileira do 5G no momento: quanto o país vai deixar de investir em conectividade para manter essas pessoas presas a uma “gambiarra”. Pois é disso que se trata: manter pessoas presas a um serviço ruim e não regulamentado.

A discussão não deveria ser sobre proteger o sinal de parabólica, mas libertar esses 6,9% dos domicílios da necessidade de parabólica. O Gired, fundo criado na licitação do 4G, pode ser utilizado para projetos de aumento de conectividade e ampliação de infraestrutura desde novembro de 2019. Há, aproximadamente, R$ 1,4 bilhão nesse fundo.

O famoso Fust (Fundo para Universalização dos Serviços de Telecomunicações) já arrecadou mais de R$ 34 bilhões, em valores corrigidos. Esta deveria ser a discussão: como usar esse dinheiro para conectar todas as pessoas, todas as escolas, todos os postos de saúde a redes de alta velocidade?

Não há debate sobre aumentar a oferta de TV digital ou usar esse dinheiro para levar conectividade a essas regiões. Seria muito mais inteligente, aliás. Dos dez canais abertos mais vistos —da Globo à CNT, passando por Record e TV Aparecida—, todos disponibilizam suas programações ao vivo pela internet. De graça!

É até óbvio: com conectividade, se tem acesso a tudo o que a TV oferece. Não teremos telemedicina por parabólica. Essas pessoas não precisam de parabólica, precisam de conectividade. Precisam de 5G. Estamos atrasando o futuro enquanto discutimos o quanto vamos gastar para manter pessoas presas ao passado.

Estamos falando de 15 milhões de brasileiros, de acordo com dados da Pnad. É, aproximadamente, o número de pessoas que moram em favelas no Brasil. E aí talvez esteja a centralidade do debate sobre a importância do 5G e da aceleração do leilão: em um país com políticas públicas tão ineficientes e enorme extensão territorial, conectividade é um direito "proxy" dos direitos fundamentais.

Não há como gozar da integralidade dos direitos à educação, à saúde, ao exercício do trabalho, ao acesso à informação, à manifestação do pensamento ou ao lazer sem conectividade. Nesse momento, mais do que nunca, isso é fundamental.

Crianças ricas tendo aulas em casa, telemedicina regulamentada apenas durante a pandemia, empresas sendo forçadas à digitalização, e o Brasil atrasado em infraestrutura de conectividade, tropeçando para fazer o leilão do 5G.

Já há operadora anunciando que vai ofertar 5G antes mesmo do leilão —e isso já foi feito no passado, com o 3G, então não duvido que aconteça.

Como começamos com música, com música terminaremos, lembrando de Gilberto Gil, que canta que o mundo era do tamanho de uma antena parabolicamará. Ele dizia que “de jangada leva uma eternidade / de saveiro leva uma encarnação”. Resta saber qual meio de transporte o 5G está usando para chegar ao Brasil.

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