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Luis Fernando Guedes Pinto e Mauricio Voivodic

Recuperação da mata atlântica é oportunidade única para enfrentar mudança climática

Com combate ao desmatamento, Brasil pode contribuir para que metas do Acordo de Paris sejam alcançadas

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Luis Fernando Guedes Pinto

Diretor-executivo da Fundação SOS Mata Atlântica e membro da Rede Folha de Empreendedores Sociais

Mauricio Voivodic

Engenheiro florestal e diretor-executivo do WWF Brasil

[RESUMO] A reversão da destruição da mata atlântica, o bioma mais ameaçado do Brasil, com apenas 12,4% da vegetação original remanescente, deve ter prioridade na política ambiental do país e ser inserida na agenda global de mitigação das mudanças climáticas.

A mata atlântica é um dos ecossistemas com maior prioridade para a restauração no mundo, considerando-se os benefícios para a conservação da biodiversidade e a mitigação das mudanças climáticas.

Segundo estudo publicado na revista Nature, o bioma faz parte de um grupo de ecossistemas em que a restauração de 15% da sua área evitaria 60% da extinção de espécies previstas e, ao mesmo tempo, sequestraria o equivalente a 30% do CO2 lançado na atmosfera desde o início da revolução industrial.

Por isso, nesta que é a Década da Restauração de Ecossistemas da ONU e a poucas semanas do Dia da Mata Atlântica, em 21 de maio, publicamos uma carta na revista Nature Climate Change com o objetivo de mostrar a importância da inserção de sua recuperação na agenda climática mundial.

O documento reforça para o mundo e para o Brasil que acabar com o desmatamento e restaurar ecossistemas são soluções baseadas na natureza para alcançarmos a meta de 1,5 ºC de aquecimento global até o fim do século 21. São contribuições para o Acordo de Paris que o Brasil pode alcançar com menor esforço, rapidez e respeitando nossa vocação de potência ambiental, especialmente quando comparadas à substituição definitiva dos combustíveis fósseis.

Há 30 mil anos, a mata atlântica era conectada à Amazônia, formando uma única floresta que se separou a partir da última glaciação. Após milênios de interação com povos indígenas, o bioma começou a ser destruído com a chegada dos europeus em 1500 e da instalação dos ciclos econômicos predatórios do pau-brasil, do ouro e do café até meados do século 20.

As matas naturais foram destruídas para exportar à Europa e alimentar os brasileiros, populações indígenas foram escravizadas e dizimadas. Hoje resistem 29 grupos étnicos de povos indígenas que vivem em 196 terras. Estão presentes comunidades quilombolas e populações tradicionais, como os caiçaras.

Foi uma espécie nativa do bioma que deu nome ao nosso país: o pau-brasil (Caesalpinia echinata). A árvore era derrubada para a construção civil, fabricação de móveis, navios, instrumentos musicais e para tingir roupas. Foi praticamente extinta e hoje ainda é considerada ameaçada. Em 2020, uma árvore de pau-brasil com mais 500 anos foi encontrada no sul da Bahia, uma testemunha da nossa história.

Como resultado desses 521 anos de devastação, apenas 12,4% da vegetação original permanece. O que sobrou está abaixo do limite mínimo aceitável para a conservação da sua biodiversidade, que foi apontada como 30% em estudo publicado na Science. Abaixo desse mínimo, ecossistemas sofrem um processo de autodegradação, reduzindo sua capacidade de manter populações viáveis e prover serviços ecossistêmicos, como o abastecimento de água e a polinização de espécies agrícolas.

A mata atlântica é um dos mais importantes "hotspots" para a conservação da biodiversidade do mundo. Abriga mais de 20 mil espécies, incluindo a maior diversidade de árvores do planeta, 384 espécies de mamíferos e 1.025 de aves. São 6.000 endêmicas e um quarto das espécies ameaçadas de extinção no Brasil. Até hoje continuamos descobrindo novas espécies em suas matas.

Apenas 13% da mata atlântica é protegida por diferentes tipos de unidades de conservação, e apenas 9% do bioma é dedicado exclusivamente à conservação. Em algumas sub-regiões, somente 1% da vegetação remanescente é protegida. Embora existam áreas com mais de 10 mil hectares (ha), a maioria dos fragmentos florestais está distribuída de maneira muito desigual em matas com menos de 50 ha e, em 80% dos casos, em propriedades privadas.

Nessa condição de bioma megadiverso, muito ameaçado e altamente fragmentado, a mata atlântica foi considerada patrimônio nacional na Constituição Federal de 1988. Em 2006, foi aprovada a Lei da Mata Atlântica, que protege e orienta a exploração e a conservação da sua vegetação nativa. Também passou a ser reconhecida como uma das reservas da biosfera da Unesco no mundo.

Embora seja o bioma mais ameaçado do Brasil e esteja protegido por diversos instrumentos, a história recente e estudos atuais revelam um futuro preocupante para suas matas. Desde 1990, perdemos mais de 5 milhões de hectares (uma área próxima da metade de Portugal). Foram cerca de 100 mil ha perdidos por ano na década de 1990.

Com avanços na governança, no controle e fiscalização, na participação da sociedade civil e na tecnologia, o desmatamento caiu drasticamente, de 90 mil ha em 2000 para 11,4 mil ha em 2018. Ainda assim, as mudanças nas políticas ambientais do Brasil fizeram o desmatamento aumentar 30% em 2020.

A aparente estabilidade desde 1985 (com regeneração de novas áreas) oculta a perda de florestas maduras e a degradação de fragmentos, com a morte de árvores grandes e raras e a perda de carbono. Os fragmentos estão se tornando mais isolados e pobres.

Com esse quadro preocupante, o bioma abriga 70% da população brasileira, responde por 80% da economia, engloba grandes centros urbanos e industriais, além de ser responsável por grande parte da produção de alimentos do país. Todos dependem dos seus serviços ecossistêmicos, que se encontram sob ameaça. A região se conecta ao mundo através do comércio de commodities como açúcar, café, suco de laranja e celulose.

Apesar de as tendências apontarem para um aumento do desmatamento em todo o país devido ao enfraquecimento do Sisnama (Sistema Nacional do Meio Ambiente) e às mudanças legais, o Brasil havia construído um caminho para controlar o desmatamento. O sucesso foi comprovado pela forte redução na taxa de desmatamento da Amazônia entre 2004 e 2012.

Chegou a hora de reconstruir esse caminho, retomando o PPCDAM (Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal) para garantir que o bioma não alcance o seu ponto crítico de não retorno e não entre na desastrosa trajetória de savanização —um desastre para o mundo e para o Brasil.

Um novo caminho precisa ser aberto para assegurar a recuperação da mata atlântica e reverter o seu ponto crítico, que foi ultrapassado décadas atrás. Além da sua lei específica e de um pacto multissetorial para a sua conservação, o Brasil conta com estruturas e políticas para guiar a proteção e a recuperação da sua vegetação, como o Código Florestal, o SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação), o Planaveg (Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa) e a recém-aprovada Lei de Pagamentos por Serviços Ambientais.

O Planaveg pretende restaurar 12 milhões de hectares no país, e o Pacto da Mata Atlântica tem planos de restaurar 15 milhões de hectares até 2050. Entre 4,1 e 5,2 milhões de hectares de matas ciliares também precisam ser restaurados para estarmos em conformidade com o Código Florestal no bioma.

Um forte esforço para realizar a restauração florestal em larga escala, com a implementação do Código Florestal, o aumento da proporção de áreas protegidas, a implantação de uma agenda positiva de incentivos econômicos e novas políticas para combater a degradação florestal complementaria o atual roteiro para o sucesso das ações de conservação.

O objetivo da conservação deve ser reverter o ponto crítico para assegurar a manutenção e a provisão a longo prazo dos serviços ecossistêmicos necessários para a produção de alimentos e o abastecimento de água. Restaurar a mata atlântica geraria benefícios não apenas para a população e a economia nacional, mas também para o planeta e a humanidade como um todo.

No contexto da ambição climática, é fundamental a conservação e recuperação das florestas tropicais altamente ameaçadas e fragmentadas. O caso da mata atlântica pode se tornar uma referência. Temos a governança, conhecimento e tecnologia para a sua restauração.

O Desafio Bonn e a Década da Restauração de Ecossistemas da ONU fornecem as estruturas internacionais necessárias para conduzir iniciativas de conservação, as quais devem ser complementadas com vontade política internacional, nacional e subnacional e investimentos do setor privado para benefício da sociedade e das futuras gerações.

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