Conflito da Defesa com CPI da Covid expõe presença militar sem controle do Congresso, diz Jungmann

Para ex-ministro, é preciso disputar os oficiais para que estejam do lado das forças democráticas do país

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Fernanda Mena

Mestre em direitos humanos pela LSE (London School of Economics), doutora em relações internacionais pela USP e repórter especial da Folha

[RESUMO] Atrito entre Defesa e CPI da Covid reforça apreensões sobre presença militar na política, que deveria com urgência ser regulamentada pelo Congresso, na opinião de Raul Jungmann. Em entrevista, ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública afirma não ver risco de golpe, mas diz temer pela situação atual.

A raiz de boa parte das crises recentes envolvendo os militares e as Forças Armadas brasileiras está na omissão do Congresso Nacional em regular a atuação política de fardados da ativa, na visão de Raul Jungmann, ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública.

A crise da vez orbita em torno de oficiais da ativa em funções no Ministério da Saúde. O titular da pasta da Defesa e os comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica emitiram na quarta-feira (7) uma nota de repúdio a declarações do presidente da CPI da Covid, senador Omar Aziz (PSD-AM). A nota foi interpretada como um ataque ao Legislativo.

“Em um país de sanitaristas, não há motivo para encher a Saúde de militares, liderados por um general de três estrelas que foi muito malsucedido”, afirma Jungmann. “Mas regular as atividades políticas dos militares não dá emenda nem dá cargo, então o Congresso se omite.”

Para o ex-ministro, o chamado campo democrático tem de disputar os militares —que vem sofrendo uma espécie de bullying do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que os pressiona a encampar suas constantes ameaças ao Supremo Tribunal Federal e ao Congresso— para si, no lugar de os rechaçar com base nos traumas da ditadura e nas feridas abertas da nossa história recente.

Na avaliação de Jungmann, o presidente perde capacidade de governabilidade a olhos vistos. “Bolsonaro entrou em um descenso do qual ele não tem saída. Ele está enredado de muitas maneiras. Ainda assim, hoje a probabilidade política de um impeachment é baixa, mas esse cenário está mudando com muita velocidade.”

Com ou sem impeachment, Jungmann não enxerga a possibilidade de um golpe amparado nas forças policiais, que o presidente tanto corteja e cultiva. “Isso não vai existir. Agora, criar tumulto e distúrbios, pode ser. Isso pode ocorrer juntamente com grupos paramilitares”, afirma. ”Sendo bem explícito, não há possibilidade de golpe no Brasil sem apoio das Forças Armadas, e elas não estão nessa.”

O ex-ministro da Defesa e Segurança Pública, Raul Jungmann - Pedro Ladeira/Folhapress

Tem fundamento temer uma insurreição de policiais no país? Tem fundamento, sim. Bolsonaro se dedica a cultivar essa relação com as polícias de maneira persistente. Ele talvez seja o único presidente que sistematicamente vai às formaturas de policiais. É comum que isso ocorra na formação de militares, que são da esfera federal, mas não de policiais, até porque as polícias são da esfera estadual.

Além disso, ele endossou a greve de policiais militares no Ceará, fez a defesa daquele policial na Bahia, que enlouqueceu e acabou sendo morto pelos colegas, e apoiou, por meio do ministro André Mendonça, a proposta de Estatuto das Polícias que retirava poder dos governadores.

Tivemos na minha cidade [Recife] uma repressão selvagem de policiais contra militantes de uma manifestação da oposição ao governo. Se aquilo virar regra, e as polícias passarem a reprimir manifestação de oposição com aquela virulência, vamos ter problemas.

Ao lado disso, Bolsonaro sempre está colocando em questão o sistema eletrônico de votação, e a legitimidade e credibilidade desse sistema é pedra basilar da democracia.

Esses fatores todos, aliados à questão do derrame de armas, cria um cenário que traz preocupação.

Quais são os cenários possíveis? As polícias militares no Brasil são um autêntico mosaico. Há PMs bastante desenvolvidas, como a de São Paulo, mas também de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul. E tem estados onde essa disciplina, organização e formação são precários e muito frágeis.

No Rio de Janeiro, por exemplo, você tem uma porta giratória entre polícia e milícia. Uma parte da polícia também exerce funções milicianas e vice-versa. Aqui está o caso do Adriano [da Nóbrega, ex-policial miliciano homenageado pelo deputado Flávio Bolsonaro e cujos familiares trabalhavam no gabinete do filho do presidente], o caso de Fabrício Queiroz... Então tudo isso é um quadro que gera preocupação, sobretudo em termos das eleições de 2022.

Agora, força policial no Brasil dar golpe, pode esquecer. Isso não vai existir. Agora, criar tumulto e distúrbios, pode ser. Isso pode ocorrer juntamente com grupos, sei lá, paramilitares.

Qual é o papel das Forças Armadas nesse contexto? Sendo bem explícito, não há possibilidade de golpe no Brasil sem apoio das Forças Armadas, e elas não estão nessa. Cometeu-se um erro grave agora, com o caso [da não punição do general da ativa Eduardo] Pazuello [por sua participação em manifestação política pró-Bolsonaro], mas não dá para tomar a floresta por uma de suas árvores.

Majoritariamente, o Alto-Comando foi pela punição de Pazuello. O comandante do Exército [Paulo Sérgio de Oliveira] tomou essa decisão pelas razões dele. Segundo consta, teria sido para evitar uma crise maior. Enfim, é grave.

Mas, ainda assim, se nós não deslizamos para um autoritarismo escancarado, isso se deve em larga medida aos militares. [General Hamilton] Mourão, [general Augusto] Heleno, [general Luiz Eduardo] Ramos, [general Walter] Braga Netto etc. e tantos mais não falam pelas instituições militares, que têm mantido seu compromisso constitucional. E mais: têm resistido ao bullying e ao constrangimento do presidente da República.

De que tipo de bullying estamos falando? O presidente da República pressiona as Forças Armadas a dar declarações de apoio a suas ameaças ao Supremo Tribunal Federal, ao lockdown dos governadores e ao Congresso Nacional. Ao se negarem a fazer isso, os militares estão impedindo que Bolsonaro coopte as Forças Armadas.

É isso o que eu estou denunciando. Não é por acaso que foram demitidos os comandantes da Marinha, do Exército, da Aeronáutica e o ministro da Defesa. Eles não querem levar as Forças Armadas para a política.

Mas as Forças Armadas já não estão na política? O fato de hoje serem 6.000 militares no governo, segundo o Tribunal de Contas da União, e não mais os 2.000 ou 3.000 de anos atrás, se deve ao fato de o Congresso Nacional não regulamentar a participação de militares no governo.

Hoje, se o presidente quiser que todo o Alto-Comando vá para o governo, não há impedimento legal para isso. Quem está na ativa faz parte da instituição militar e não pode falar, não deve falar. Tem militar que apoia o governo e tem militar que é contrário a ele. O que importa é que, enquanto instituição, as Forças Armadas não têm cruzado a “red line” da Constituição.

É preciso disputar os militares para que estejam do nosso lado. Largá-los por causa do passado, por maior que sejam as dívidas e as feridas de tudo o que aconteceu, é um equívoco.

Não está em jogo o teor do que os militares fizeram nem o que eles são. O que está em jogo é o momento de agora, que é de dar respaldo aos militares, sim, porque eles têm sido um elemento de resistência contra essas aventuras do presidente.

O resto a gente discute lá na frente, principalmente quando o Congresso começar a exercer suas funções neste campo.

Qual é a responsabilidade do Congresso? Cabe ao Congresso regulamentar a não presença de militares da ativa no governo, por exemplo. O Congresso não faz isso. A crise do Pazuello e outras mais poderiam ser mitigadas se o Congresso cumprisse com a sua parte.

Mas é aí que vem o x da questão, que se espraia pela própria elite. Compete ao poder político, leia-se, Congresso Nacional, supervisionar, controlar, fiscalizar e liderar as Forças Armadas. Se o Congresso não faz isso, não adianta ficar criticando os militares. Eles dificilmente mudarão sozinhos.

Agora, para liderar, você precisa ter um projeto. E qual é o projeto do poder político, dos partidos e dos parlamentares do Brasil para a Defesa e as Forças Armadas? Eu desconheço. Eles não têm, não conhecem, não entendem, não dialogam nem assumem essa responsabilidade.

Como funciona essa regulação em outros lugares? Quando você vai para um país democrático consolidado, como a França, a Inglaterra ou os Estados Unidos, vai ver que quem faz esse controle externo é o Congresso. As decisões mais extremas que um país pode tomar sobre si próprio, como fazer a guerra e declarar a paz, são competências do Congresso.

Ora, então porque o Congresso não regulamenta a participação de militares e de policiais na política? Porque, como disse o Mangabeira Unger [assessor do ex-ministro da Defesa Nelson Jobim], criou-se uma relação com os militares que é de apaziguá-los. Toma aí um tanque, toma aí um avião Gripen, toma aí um submarino.

Como o Congresso poderia ser mais efetivo? Desde a redemocratização, criou-se um vazio a respeito do papel dos militares. Não tinha mais aquela política de segurança nacional nem todas as definições anteriores ligadas ao combate ao comunismo e à subversão interna. Vem a queda do muro de Berlim e, afinal, qual é o papel dos militares? De certa forma, há um silêncio.

No governo Fernando Henrique Cardoso, ele publica diretrizes muito preliminares de Defesa. O Lula dá uma atualizada nisso. Quando vem a crise dos controladores [de tráfego aéreo], em que ele bota o Nelson Jobim, em que chama o Mangabeira Unger, e eles realmente constroem uma política e uma estratégia nacional de defesa e também um livro branco.

Eu, deputado, fui relator do que hoje é a lei complementar 136, que determinou que a Política Nacional de Defesa e a Estratégia Nacional de Defesa passariam pelo Congresso Nacional. Isso nunca aconteceu. Eu fiquei muito feliz porque aqueles instrumentos poderiam inaugurar um diálogo nacional para fiscalização, supervisão, liderança das Forças Armadas. Isso nunca aconteceu.

Por que não? Política de Segurança Nacional, estratégia e livro branco devem ser reformulados de quatro em quatro anos. Quando eu era ministro da Defesa, em 2016, enviei a atualização ao Congresso, via presidente, no dia 16 de novembro de 2016. Ela foi devolvida pelo Congresso no dia 17 de dezembro de 2018. O Congresso levou dois anos! Fazendo o quê? Nada.

Não fez uma audiência pública, não convocou os militares, não fez nada. O relatório que está lá é pífio e chegou tão tarde que o então presidente Temer entendeu que seu governo acabava em pouco mais de uma semana e deixou para o Bolsonaro assinar. O Bolsonaro olhou para aquilo e decidiu não assinar porque achou que era coisa do governo anterior, quando são documentos de Estado. Resultado: estamos até hoje com a política e a estratégia de 2012.

E o fecho: quando chega em 2020, em julho, a estratégia de 2020 a 2024 foi enviada pelo Executivo ao Congresso Nacional. Um ano depois, não tem nem relator indicado.

Eu digo: escuta, vocês acham que os militares vão mudar por obra e graça divina? Aquilo que deveriam mudar e modernizar? Os representantes da nação tem tudo nas mãos para fazer isso, e ninguém faz.

Nesse cenário, como cobrar espírito democrático de instituições como Forças Armadas e polícias? O corolário disso é o seguinte: o militar combatente —essa categoria que é infantaria, cavalaria etc.— assumiu o compromisso de dar a vida a nós e à pátria. Ele olha para aquilo e diz: “Puxa, eu estou empenhando a minha vida aqui, se for necessário, e os representantes da nação não estão nem aí para defesa nacional? Não assumem as suas responsabilidades? Bom, então eu assumo a tutela porque o poder político é irresponsável”. Entende?

Aquela história de espaço de poder ser um lugar que nunca fica vazio. Mas é claro. Aí o cara olha para aquilo: mandamos tudo para lá, o Congresso pode chamar para discutir tudo, e os militares vão discutir porque é constitucional. É possível rever e rediscutir, só que ninguém faz isso. Aí o sentimento dele é o seguinte: o poder político do meu país é irresponsável com a nação, então, assumo eu a responsabilidade. Percebeu o que isso representa para a democracia?

Por que não regulamentou? Por que não chamou? Por que você não dialogou? Por que não disse que representa a nação?

Somos nós que temos que dizer, e não os militares, qual é a defesa que o Brasil precisa. É evidente que em diálogo com eles, mas a defesa de uma nação não se resume ao setor militar. Essa é uma questão da nação. Em países democráticos, esses controles são normais.

O sr. foi o último ministro da Defesa civil. Qual é o impacto dessa mudança? Eu já fui um defensor de que os ministros da Defesa tinham de ser civis, mas eu mudei de opinião e explico fácil. Primeiro, porque países democráticos, como os EUA, têm militares como secretários de Defesa, que equivalem ao ministro da Defesa daqui. Ninguém diz que os civis não exercem o controle porque isso acontece via Parlamento.

Em segundo lugar, nesses países você tem especialistas civis em Forças Armadas e em Defesa. No Brasil, não existe isso. O Brasil foi um dos últimos grandes países a ter um Ministério da Defesa, criado em 1999 pelo Fernando Henrique Cardoso depois de uma enorme resistência dos militares. A Argentina já tinha, o Chile já tinha.

Aqui se criou essa ideia de que basta colocar um ministro civil que se resolveu o controle. Primeiro, o grande controle não é esse, é o controle do Congresso. Segundo, nós nunca tivemos um concurso sequer para um analista, um gestor ou um especialista em Defesa. Todos os ministros pedem esses concursos para o Planejamento, que a todos nega. Então, você não tem civis que possam dialogar e debater com os militares, e isso é uma exigência da guerra moderna.

Abaixo do ministro da Defesa não tem civil; acima, o Congresso não atua. Aí, vem cá: será que eu, civil, sozinho, dou conta disso? Eu ou qualquer outro civil? Não dá.

Claro que, nas nossas condições, eu diria: melhor que seja um ministro civil. Mas você imaginar que basta colocar um civil ali para garantir o controle, esquece. Esquece, esquece.

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