[resumo] Chega às livrarias nova tradução do clássico 'Ciropédia', escrito por volta de 360 a.C., no qual Xenofonte narra de forma romanceada o processo de instrução do imperador persa Ciro, cujas lições de moderação, autocontrole e generosidade ainda impactam, 2.000 anos depois, campos do conhecimento de hoje, como a psicologia comportamental.
Que criança resiste por alguns minutos ao impulso de abocanhar a guloseima à sua frente em troca de uma recompensa dobrada? A obstinação detectada nessas situações está de alguma forma associada a um futuro melhor?
Ler "Ciropédia", do aristocrata ateniense Xenofonte, é reconhecer, ativo há 2.400 anos, esse mesmo gênero de indagações da psicologia comportamental do século 21. A instrução ("paideia") de Ciro concentra-se no domínio das paixões e determina o sucesso do fundador do império persa.
Apegar-se à exatidão dos fatos não constava do manual de instruções de narradores como Xenofonte, lembra a tradutora Lucia Sano na introdução ao volume que está sendo lançado pela editora Fósforo. Entre outras impropriedades descritas na obra, Ciro, que viveu no século 6º a.C., não conquistou o Egito ou a Índia, nem tampouco empreendeu a campanha narrada contra o monarca assírio.
Xenofonte escreve por volta de 360 a.C. — mais de 150 anos após a morte do grande rei persa e em meio ao declínio de Atenas e seus aliados —, interessado sobretudo em convencer os seus contemporâneos das vantagens de comportarem-se como um líder exemplar e dos riscos de desviarem-se da boa conduta.
Décadas antes, quando a hegemonia ática ainda não havia sido pulverizada pela Liga do Peloponeso, o mesmo Ciro aparecia nas "Histórias", de Heródoto de Halicarnasso, como representante da rudeza bárbara, o que contrastava com a superioridade dos costumes gregos.
Já o Ciro de Xenofonte excele em moderação, autocontrole e generosidade, traços tributários da educação recebida pelos varões da elite persa desde a infância, sob a tutela do governo. O controle da fome e da sede eles adquiriam nos repastos módicos, na obediência a superiores à mesa e em extenuantes caçadas.
Tornavam-se judiciosos ao serem punidos nas ofensas aos costumes. De especial gravidade era a inobservância do dever de retribuir um favor. "Consideram [os persas] que a ingratidão leva sobretudo à imprudência e que ela, por sua vez, parece ser o principal guia dos homens a tudo o que é indecoroso."
Nada supera, em potencial didático, as ações e as palavras do próprio Ciro.
Imberbe, dá lições de comedimento e abnegação em visita à corte do avô na Média. Escolhido para chefiar uma missão militar, explica aos companheiros de armas que quem se abstém do prazer imediato o faz para alcançar "posteriormente diversões muitas vezes maiores, graças ao seu autocontrole".
Em vez de dizimar o traidor capturado, Ciro o transforma, pela clemência, num aliado leal e valoroso. Resistir ao impulso de perseguir o inimigo derrotado, predica, ajuda o vencedor a desfrutar do sucesso com moderação, sem correr riscos desnecessários. O conquistador persa, porque domou as próprias paixões, enxerga à frente dos aliados e os convence a transacionar privações presentes pela glória futura.
A frugalidade dos modos persas de vestir-se, alimentar-se e viver espanta governantes de nações menos poderosas, acostumados ao garbo e à pompa. Um homem persa educado, escreve Xenofonte, "não demonstrava deslumbre diante de nenhuma comida nem bebida, fosse com os olhos, com a gula ou com uma mente incapaz do discernimento que teria se não estivesse diante de uma refeição".
Quando o tema são os apetites sexuais, contudo, por vezes o melhor é evitar ser exposto à tentação. É o que Ciro decide fazer ao saber que uma beldade, Panteia, foi feita prisioneira pelo exército persa. Não vai vê-la, pois, se for, "talvez eu fique lá sentado a observá-la, descuidando das coisas que preciso fazer (...). [De] minha própria vontade, não entro em contato com o fogo nem olho para pessoas bonitas".
É definitivamente dos gregos de sua época, e não dos persas distantes no tempo e no espaço, que Xenofonte está falando. Ciro e suas aventuras foram despidos de exotismos e idiossincrasias e preenchidos com elementos da conduta ideal facilmente reconhecíveis pelos helenos no século 4º a.C.
A dieta, compreendida no seu sentido original e mais amplo de "modo de vida", e a ascese como disciplina para atingir os mais elevados objetivos, mundanos e extramundanos, atravessam a Antiguidade greco-romana. A domação da parcela selvagem da alma é o mote da célebre alegoria composta por Platão, contemporâneo e conterrâneo de Xenofonte, no "Fedro". Um desapego da materialidade às raias do monasticismo marca, 400 anos mais tarde, a vida e a obra do filósofo romano Sêneca.
As repercussões, numa leitura aqui bem mais atrevida e imodesta do que a cartilha da prudência clássica recomendaria, cruzaram milênios. Max Weber, no início do século 20, relacionou a ascese intramundana do movimento protestante na era moderna ao sucesso econômico das sociedades em que ela prevaleceu.
Décadas depois, um majestoso campo de pesquisas se desenvolveu para avaliar a hipótese de que a educação universal dos indivíduos, desde a mais tenra idade, leva à prosperidade das nações. Mais recentemente, investiga-se o peso das habilidades socioemocionais, não cognitivas, nessa emancipação.
Como ensinar a paciência, a generosidade e a cooperação? Como evitar que a concupiscência, a brutalidade e a indisciplina destruam o broto de que poderá vicejar um futuro melhor?
Alimentada de gigantescos conjuntos de dados e avaliada pelas técnicas descritivas e analíticas mais apetrechadas, a agenda milenar do Ciro de Xenofonte continua entre nós.
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