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Vinicius Mota

Lições de Xenofonte sobre instrução do rei persa Ciro ainda impactam nosso mundo

'Ciropédia', clássico escrito há quase 2.400 anos, ganha nova tradução pela editora Fósforo

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Vinicius Mota
Vinicius Mota

Secretário de Redação

[resumo] Chega às livrarias nova tradução do clássico 'Ciropédia', escrito por volta de 360 a.C., no qual Xenofonte narra de forma romanceada o processo de instrução do imperador persa Ciro, cujas lições de moderação, autocontrole e generosidade ainda impactam, 2.000 anos depois, campos do conhecimento de hoje, como a psicologia comportamental.

Que criança resiste por alguns minutos ao impulso de abocanhar a guloseima à sua frente em troca de uma recompensa dobrada? A obstinação detectada nessas situações está de alguma forma associada a um futuro melhor?

Ler "Ciropédia", do aristocrata ateniense Xenofonte, é reconhecer, ativo há 2.400 anos, esse mesmo gênero de indagações da psicologia comportamental do século 21. A instrução ("paideia") de Ciro concentra-se no domínio das paixões e determina o sucesso do fundador do império persa.

Apegar-se à exatidão dos fatos não constava do manual de instruções de narradores como Xenofonte, lembra a tradutora Lucia Sano na introdução ao volume que está sendo lançado pela editora Fósforo. Entre outras impropriedades descritas na obra, Ciro, que viveu no século 6º a.C., não conquistou o Egito ou a Índia, nem tampouco empreendeu a campanha narrada contra o monarca assírio.

Gravura de Ciro, o Grande, imperador persa, que reinou entre 559 a.C. e 530 a.C.

Xenofonte escreve por volta de 360 a.C. — mais de 150 anos após a morte do grande rei persa e em meio ao declínio de Atenas e seus aliados —, interessado sobretudo em convencer os seus contemporâneos das vantagens de comportarem-se como um líder exemplar e dos riscos de desviarem-se da boa conduta.

Décadas antes, quando a hegemonia ática ainda não havia sido pulverizada pela Liga do Peloponeso, o mesmo Ciro aparecia nas "Histórias", de Heródoto de Halicarnasso, como representante da rudeza bárbara, o que contrastava com a superioridade dos costumes gregos.

Já o Ciro de Xenofonte excele em moderação, autocontrole e generosidade, traços tributários da educação recebida pelos varões da elite persa desde a infância, sob a tutela do governo. O controle da fome e da sede eles adquiriam nos repastos módicos, na obediência a superiores à mesa e em extenuantes caçadas.

Tornavam-se judiciosos ao serem punidos nas ofensas aos costumes. De especial gravidade era a inobservância do dever de retribuir um favor. "Consideram [os persas] que a ingratidão leva sobretudo à imprudência e que ela, por sua vez, parece ser o principal guia dos homens a tudo o que é indecoroso."

Nada supera, em potencial didático, as ações e as palavras do próprio Ciro.

Imberbe, dá lições de comedimento e abnegação em visita à corte do avô na Média. Escolhido para chefiar uma missão militar, explica aos companheiros de armas que quem se abstém do prazer imediato o faz para alcançar "posteriormente diversões muitas vezes maiores, graças ao seu autocontrole".

Em vez de dizimar o traidor capturado, Ciro o transforma, pela clemência, num aliado leal e valoroso. Resistir ao impulso de perseguir o inimigo derrotado, predica, ajuda o vencedor a desfrutar do sucesso com moderação, sem correr riscos desnecessários. O conquistador persa, porque domou as próprias paixões, enxerga à frente dos aliados e os convence a transacionar privações presentes pela glória futura.

A frugalidade dos modos persas de vestir-se, alimentar-se e viver espanta governantes de nações menos poderosas, acostumados ao garbo e à pompa. Um homem persa educado, escreve Xenofonte, "não demonstrava deslumbre diante de nenhuma comida nem bebida, fosse com os olhos, com a gula ou com uma mente incapaz do discernimento que teria se não estivesse diante de uma refeição".

Reprodução de vaso em cerâmica com representação de atletas em competição esportiva na Grécia Antiga - Adriana Zehbrauskas/Folhapress

Quando o tema são os apetites sexuais, contudo, por vezes o melhor é evitar ser exposto à tentação. É o que Ciro decide fazer ao saber que uma beldade, Panteia, foi feita prisioneira pelo exército persa. Não vai vê-la, pois, se for, "talvez eu fique lá sentado a observá-la, descuidando das coisas que preciso fazer (...). [De] minha própria vontade, não entro em contato com o fogo nem olho para pessoas bonitas".

É definitivamente dos gregos de sua época, e não dos persas distantes no tempo e no espaço, que Xenofonte está falando. Ciro e suas aventuras foram despidos de exotismos e idiossincrasias e preenchidos com elementos da conduta ideal facilmente reconhecíveis pelos helenos no século 4º a.C.

A dieta, compreendida no seu sentido original e mais amplo de "modo de vida", e a ascese como disciplina para atingir os mais elevados objetivos, mundanos e extramundanos, atravessam a Antiguidade greco-romana. A domação da parcela selvagem da alma é o mote da célebre alegoria composta por Platão, contemporâneo e conterrâneo de Xenofonte, no "Fedro". Um desapego da materialidade às raias do monasticismo marca, 400 anos mais tarde, a vida e a obra do filósofo romano Sêneca.

As repercussões, numa leitura aqui bem mais atrevida e imodesta do que a cartilha da prudência clássica recomendaria, cruzaram milênios. Max Weber, no início do século 20, relacionou a ascese intramundana do movimento protestante na era moderna ao sucesso econômico das sociedades em que ela prevaleceu.

Colunas do Partenon, templo construído no século 5º antes de Cristo, na Acrópole de Atenas, na Grécia Antiga - Fábio Chiossi/Folhapress

Décadas depois, um majestoso campo de pesquisas se desenvolveu para avaliar a hipótese de que a educação universal dos indivíduos, desde a mais tenra idade, leva à prosperidade das nações. Mais recentemente, investiga-se o peso das habilidades socioemocionais, não cognitivas, nessa emancipação.

Como ensinar a paciência, a generosidade e a cooperação? Como evitar que a concupiscência, a brutalidade e a indisciplina destruam o broto de que poderá vicejar um futuro melhor?

Alimentada de gigantescos conjuntos de dados e avaliada pelas técnicas descritivas e analíticas mais apetrechadas, a agenda milenar do Ciro de Xenofonte continua entre nós.

Ciropédia

  • Preço R$ 94,90 (400 págs.)
  • Autor Xenofonte
  • Editora Fósforo
  • Tradução Lucia Sano
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