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Em peça inédita, o 'Coiso' diz que Cristo vem de revolver na mão; leia trecho

Roberto Schwarz cria personagens inspirados em Bolsonaro, Lula e Dilma e narra crise do país em 'Rainha Lira'

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Ilustração Ilustríssima

Ilustração Adams Carvalho

Roberto Schwarz

Doutor pela Universidade de Paris 3, foi professor de teoria literária e literatura comparada na USP entre 1963 e 1968 e professor de teoria literária na Unicamp entre 1978 e 1992. Autor, entre outros livros, de "Ao Vencedor as Batatas" (1977), "Um Mestre na Periferia do Capitalismo: Machado de Assis" e "Sequências Brasileiras" (1999)

[SOBRE O TEXTO] O fragmento abaixo é parte de "Rainha Lira", peça do crítico literário Roberto Schwarz lançada em livro pela editora 34. A obra recria em tom alegórico a crise política brasileira e as figuras públicas de Lula, Bolsonaro e Dilma.

O COISO Tem uns que apostam as fichas em Deus, outros na propriedade privada, outros no socialismo, outros na cor da pele, outros no trabalho duro, outros nos Estados Unidos, outros na família importante. Tem os que acreditam na China. Faço negócio com todos. A minha regra é passar por cima da regra e avançar na rapadura direto. Primeiro a cacete, depois com negociação. Ninguém é melhor do que ninguém. Na hora do aperto, todos topam uma sociedade. Comigo não tem moleza, mas mal ou bem dá liga. Não é à toa que sou conhecido pelos meus olhos de peixe morto.

OUTRA SENHORA Não escondamos o sol com a peneira. A esquerda perto dele é civilizada, eu quase diria aceitável. Com solavancos e tudo, ela não rompe conosco, temos em comum o Humanismo. Ela só quer tornar realidade o que toda vida nós prometemos (com boa-fé discutível). Eu tenho mais pavor do Coiso que da redistribuição de renda.

Ilustração Ilustríssima
Ilustração - Adams Carvalho

UM SENHOR Minha senhora, não estamos falando de civilização nem de má-fé. Estamos falando de propriedade privada, que é uma coisa diferente.

OUTRO A pretexto de acabar com o comunismo, ele coloca fora da lei os pobres, os pretos, os sindicatos, as feministas, os progressistas, os LGBT, os cientistas, os artistas, os professores, a igreja civilizada. É o caminho da treva. Vocês imaginam o rebaixamento que vai sair daí? Seremos referência mundial em matéria de retrocesso.

OUTRO Não acredito, logo você? O maior reaça do pedaço! O meu amigo do peito vai defender o povo organizado contra o capital?

O ANTERIOR Eu sou burguês, não sou bandido. Tenho filhos para educar. Gosto de ir ao teatro e ao concerto. Os movimentos da alma humana me interessam. As questões do justo e do injusto não me deixam indiferente. Não quero passar vergonha quando for à Europa. Depois do AI-5 e das notícias sobre a tortura, que correram mundo, os taxistas em Paris me perguntavam se eu não tinha vergonha de ser brazuleiro.

OUTRO Que discussão cretina. O país está se desmilingüindo e não há mais dinheiro para nada. Quando a renda encolhe, cada um avança no que pode e esquece o resto. É isso aí. Salvar o seu, com mão pesada se for preciso. Não temos na praça um gênio capaz de achar outra saída melhor. Em casa onde falta pão, todos gritam e ninguém tem razão.

UM TEÓRICO São as sístoles e diástoles do capitalismo, contra as quais não podemos nada. Buscar culpados é regredir para o pensamento mágico.

O BOBO (entrando) Isso aqui prometia alguma coisa, tinha charme e até aspectos avançados. Mas agora não promete mais nada. As sanguessugas que enriquecem à nossa custa pensam duas vezes antes de mandar os filhos a nossas escolas, mesmo as mais caras. Muito menos querem passar os fins de semana ou as férias em nossas cidades caindo aos pedaços. Pesquisem por aí e verão que todos estão comprando apartamentos em Miami ou Portugal. Daí minha pergunta indiscreta. Vocês, meus compatriotas queridos, vão se conformar com essa elite vagabunda, com as universidades falidas, indústrias atrasadas, trabalhadores despreparados, polícia anti-povo, exército idem, gangsterismo difuso, tudo a cavalo da massa submetida e ignorante? Até outro dia nós não éramos tão desqualificados, embora – vamos admitir – o desastre estivesse pintando há tempo.

O COISO O palhaço ali está chamando os incautos à revolta contra o meu projeto. Mas não adianta desmerecer a vitória da direita, porque não pega mais. Nós viemos para ficar. Não me envergonho do apoio da gente rica, sejam finos, sejam malfeitores. A direita internacional também nos apoia. E daí? Qual é o inconveniente? Eles não mandam no nosso movimento, que é popular, autêntico e brazuleiro pra ninguém botar defeito. Na verdade, jamais fomos tão independentes como agora. A nossa coragem, quando damos uma banana para a hipocrisia das Nações Unidas, chega a me dar vertigem. Não é para se orgulhar? Acabou-se a ditadura dos veados, da mulherada, dos vulneráveis, das raças inferiores, do povo desarmado. O nosso cristianismo é dos fortes. O Cristo que vem aí é impiedoso, de revolver na mão, e não brocha. Ninguém de nós fez voto de pobreza.

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