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Gustavo Mayrink

Aprendi a gostar de Caetano 40 anos após ele xingar meu pai de burro

Gustavo Mayrink prepara podcast com a versão do cantor sobre o episódio

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Gustavo Mayrink

Jornalista, publicitário e editor do site www.geraldomayrink.com.br

[RESUMO] Publicitário passou anos sem ouvir Caetano após o cantor xingar seu pai, o jornalista Geraldo Mayrink, chamando-o de burro em entrevista em 1978, episódio que se tornou meme. Décadas depois, ao reunir os textos do pai em um site, ele teve a ideia de produzir um podcast com a versão de Caetano sobre o caso e acabou se rendendo à música do artista.

"Há quanto tempo você não ouvia essa ao vivo?", indagou uma amiga com quem dividíamos a mesa no Espaço das Américas, em São Paulo, durante o primeiro show da nova turnê de Caetano Veloso na cidade. Ela flutuava entre os acordes de "You Don’t Know Me", música gravada em Londres em 1971, durante o exílio, e minha inesperada afirmação de que fazia "uns 45 anos, mais ou menos" merece algumas notas preliminares nesse concerto de outono.

Cresci nos anos 1980 e 1990 rodeado por discos e fitas cassetes que chegavam em casa pelas mãos do meu pai, o escritor e jornalista Geraldo Mayrink (1942-2009), e minha mãe, que era assessora de imprensa e de divulgação —hoje se fala PR (public relations).

Enquanto Gil, Elis, Chico e Rita se revezavam na vitrola, pouco se ouvia Caetano, tão badalado, pelo menos fora de casa, quanto o resto da turma. "Ele brigou com seu pai em um programa de televisão. Troca o disco", alertava meu tio enquanto colocava um Djavan para embalar o almoço de sábado.

Caetano Veloso durante show da turnê 'Meu Coco' em SP
Caetano Veloso durante show da turnê 'Meu Coco' em SP - Espaço das Américas

Mesmo sem entender o contexto da tal briga, assimilei o recado e segui minha formação musical em busca de novas descobertas, tal qual uma trilha sonora internacional de novelas. Como nunca tive notícias de qualquer entrevero entre meu pai e integrantes do The Clash ou do UB40, Caetano seguia cada vez mais pausado no toca-fitas lá de casa até que entrasse profundamente em modo soneca.

Ele tentou ser despertado algumas vezes por meio de amigos e namoradas que insistiam em me convidar para os shows do cantor baiano e para festas de música brasileira. "MPB para mim é música popular britânica", dizia com a empáfia jovial de quem não entendia nem de música e nem de pessoas —o inglês era nota 7.

Superada a fase niilista, eu tentava expandir meu repertório sonoro à medida que o cerco tropicalista ia se intensificando. Em 2010, eu estava em Paris e fui convidado por um casal de amigos brasileiros para um festival de artes e música em La Défense, distrito financeiro da cidade, uma espécie de Berrini com vale do Anhangabaú, só que em euros. Na saída do metrô, cartazes indicavam o caminho para o evento e destacavam a atração principal do dia: monsieur Caetano Veloso.

Guardei as desavenças televisivas do passado em uma pochete e me propus a desfrutar aquela experiência franco-brasileira sem preconceito de sons. Afinal, eu estava de férias, havia uma Copa do Mundo em andamento, época em que o mundo fica 30 dias mais eufórico —Amaury Jr. diria "lubrificado"—, especialmente se a sua seleção ainda não tiver sido eliminada. Além disso, o período eleitoral no Brasil seria só dali a alguns meses, algo que me deixava democraticamente estabilizado. "Haja croissant!", diria o Galvão deles.

Circulávamos pelo festival sem grandes preocupações, e, mesmo afastados do palco, a música incidia sobre nossas conversas como uma agradável trilha de fim de tarde. "E o Kaká, hein, será que engrena?", lançou alguém durante um intervalo nas apresentações. Faltou algo a mais para o meia-atacante naquela Copa (não só para ele), ao contrário do som que enfim começava a empolgar, lembrando-me que eu estava em um festival de música e que era hora de ver alguém tocar.

No caminho para o palco, ainda sem identificar a banda, avistei jovens impetuosos performando uma sonoridade que muito me agradava. Bateria seca e potente, linhas de baixo marcantes, riffs tropicais e aquele clima festivo que só um show ao vivo consegue proporcionar. "Très bon!", balbuciei mentalmente para treinar o meu francês, imaginando estar de frente com a nova sensação da cena parisiense de rock indie. Ledo engano. Pardon my french!

O guru daqueles guris era justamente Caetano Veloso, o artista que eu não podia gostar e que acabara de aparecer em cena, para minha surpresa. Ele se apresentava com a banda Cê, formada por Pedro Sá, Marcelo Callado e Ricardo Dias Gomes, jovens músicos que trouxeram novas referências musicais ao injetar pós-rock com samba, distorções e outras experimentações no repertório do compositor de "O Leãozinho" e que gravaram três discos com ele.

Aquela mistura sonora me pegara de jeito, e eu me sentia como os "subversivos" que assistiam aos jogos da seleção de 1970 e achavam os gols lindos, mas politicamente inconvenientes. Para disfarçar, eu ficava de lado para o palco, mas na direção das caixas de som, o que gerava movimentos involuntários e eventualmente sensuais nos meus pés, ombros, na minha cintura e cabeça.

E só, o resto do corpo estava sob controle. Tecnicamente eu ainda não estava vendo um show do Caetano, mas fiquei empolgado em descobrir que além de Odara ele também poderia ser guitarra.

De volta ao Brasil, comecei um projeto pessoal que voltaria a me colocar de frente com o compositor. Eu iniciara um trabalho de pesquisa, para um site que pretendia criar, de grandes textos que meu pai havia escrito ao longo de 50 anos de carreira, homenagem pessoal e um tributo ao jornalismo. Ironicamente, durante esse processo, passaram a me marcar em postagens nas redes sociais para um conteúdo com o nada digestivo título de "Caetano detona Geraldo". Mesmo antes de assistir, eu já previa o enredo.

Era o fatídico vídeo de uma edição do programa Vox Populi, da TV Cultura, de 1978, em que Caetano respondia em estúdio perguntas gravadas previamente. Uma delas era do meu pai, que em tom provocativo questionou quem o havia prendido em 1968, se a radiopatrulha ou a patrulha ideológica. Perguntou também, em função da conturbada relação do artista com a crítica, se a imprensa era feita apenas para elogiar.

O começo da resposta de Caetano pode ser encontrado em vídeos, gifs, figurinhas de WhatsApp, pichações e nos mais variados memes: "Como você é burro, cara! Que loucura!".

Já o restante da fala não caberia em um muro e era ainda mais agressivo, refletindo a indignação em relação a uma resenha sobre "Muito", do mesmo ano, em que meu pai dizia ser um disco com má poesia alheia e do próprio Caetano e que, apesar de "parecer durar uma eternidade a mais", conseguia surpreender em "Eu te Amo" e especialmente em "Sampa", "a música mais bonita do ano".

"Eu quero tirar gente incompetente e desonesta, como você, do serviço. Eu vou trabalhar para pessoas como você perderem seu emprego", finalizou o transtornado entrevistado.

Meu pai havia virado "o burro do Caetano", e, finalmente, eu entendia porque os presentes de Natal de 1978 em diante deram uma minguada lá em casa, mesmo sem ele ter sido demitido. "Atitude preventiva", despistaria minha mãe, se indagada fosse. Eu seguia pesquisando e juntando peças para colocar o site no ar, mas o episódio memético ainda me incomodava.

Foi quando resolvi procurar ajuda de especialistas, também conhecidas como Paula Scarpin e Flora Thomson-DeVeaux (ninguém pronuncia tão majestosamente esse nome quanto o próprio Caetano) da Rádio Novelo e dos ótimos "Praia dos Ossos", "Retrato Narrado" e "Crime e Castigo".

Expliquei que estava lançando um site com algumas reportagens históricas e que uma delas, a que originava o episódio com Caetano, poderia render um podcast —e provavelmente novos memes. Elas toparam e logo começaram as primeiras pesquisas e entrevistas para o projeto. O objetivo final era encontrarmos o homem e ouvir sua versão sobre o caso mais de quatro décadas depois, o que ocorreu um ano após nossa primeira troca de emails.

Este texto não pretende dar mais pistas sobre o encontro (o podcast vai ao ar no segundo semestre), mas sem ele eu certamente não estaria no Espaço das Américas para o meu primeiro show ("segundo", diriam os franceses, sempre querendo polemizar), agora oficial e assumidamente.

De volta à mesa no Espaço das Américas e com o hiato musical devidamente esclarecido, era hora de vivenciar aquele aguardado momento. Caetano Veloso entrou no palco flutuando como um ícone pronto para uma noite de glória. Saudado com reverência em um cenário de luzes e elementos minimalistas, o cantor iniciou sua apresentação privilegiando músicas de "Meu Coco", disco lançado no ano passado, como "Anjos Tronchos" e "Não Vou Deixar", destilando alta fidelidade sonora e demonstrando total domínio do corpo.

Assim como na banda Cê 15 anos atrás, a formação com jovens músicos, como Lucas Nunes, multi-instrumentista e produtor do disco, comprova que, aos 79 anos, Caetano nunca deixou de ousar e experimentar o novo.

Para diversão dos paulistanos, falou do "R" retroflexo em "A Outra Banda da Terra", embora sem muita desenvoltura para um sotaque mais "aRRastado". Correu para o abraçaço com "Reconvexo", "Sampa", "Baby" e outros hits, sempre seguro, afinado e com um discreto sorriso no rosto.

Caetano, que já foi criticado em algumas ocasiões por não se posicionar politicamente —e também por tomar partido—, proferiu um "Fora, Bolsonaro!" sem ter que levantar bandeira alguma. Foi aplaudido e ovacionado, o recado estava dado.

Sozinho ao violão ou acompanhado de sua banda, fez questão de reverenciar parceiros e formações que o acompanharam nos últimos 50 anos e são responsáveis pela imensidão de horizontes musicais que o ajudaram a se tornar um dos compositores mais celebrados do mundo. Ao final da noite, nem ele nem a plateia tinham o direito de estar decepcionados.

Acho que vou fazer um NFT desse meme. Que loucura, cara!

Erramos: o texto foi alterado

Os nomes de Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado foram grafados incorretamente.

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