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Bolsonaro deturpa base de dados do Bolsa Família e Auxílio Brasil

Mudanças ameaçam capacidade de Cadastro Único reunir informações precisas e orientar programas sociais

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[RESUMO] O Cadastro Único, base nacional de dados socioeconômicos essencial para operacionalizar diversos programas sociais, vem sendo deturpado pelo governo Bolsonaro. O pagamento, no Auxílio Brasil, de R$ 400 mensais por família, independentemente do seu tamanho, incentiva pessoas que moram juntas a se cadastrar individualmente, o que compromete a capacidade de focalizar a transferência de renda e ameaça duas décadas de um projeto reconhecido internacionalmente.

Com a criação do Auxílio Brasil, especialistas e gestores de políticas de combate à pobreza lamentaram que o exitoso Bolsa Família tenha dado lugar a um programa social maldesenhado. Naquele novembro de 2021, não sabíamos que outra perda imensurável se avizinhava: a do Cadastro Único para Programas Sociais.

Auxiliar de cozinha trabalha em restaurante em Curralinho, no Pará; moradores sofrem com com falta de informação sobre o Auxílio Brasil - Karime Xavier - 12.dez.21/Folhapress

Um grande talento de pouca fama

Embora pouco famoso, o Cadastro Único é das tecnologias sociais mais reconhecidas na identificação da população vulnerável. Uma grande base de dados nacional, alimentada diariamente pelas áreas de assistência social de todos os municípios, com as informações sobre quem são, onde moram e como vivem as famílias de baixa renda do Brasil.

As famílias buscam os escritórios da assistência social de sua cidade para se cadastrar e, conforme seu perfil, podem acessar diversos programas sociais: o extinto Bolsa Família, o desconto na conta de energia elétrica, o atual Auxílio Brasil, entre outros.

A base contém nome, documentos, escolaridade e ocupação de cada pessoa da família. Possui dados sobre condições de saneamento básico do domicílio e grupos tradicionais ou específicos de população, como indígenas, quilombolas e pessoas em situação de rua.

É a única base de grande alcance e fácil disponibilidade com informações socioeconômicas e de composição das famílias de baixa renda. Extremamente útil ao desenho e à implementação de políticas públicas, é um grande mapa multidimensional da pobreza e um dos maiores feitos da política social brasileira ao longo dos últimos 20 anos.

Da intenção ao reconhecimento

O cadastro foi criado em 2001, na gestão Fernando Henrique Cardoso (PSDB) para possibilitar a integração dos programas de transferência de renda com condicionalidades e direcionar a atuação do poder público aos mais vulneráveis. Esse objetivo, no entanto, não se concretizou de uma hora para outra —levou bastante tempo e envolveu a dedicação de dezenas de servidores públicos na esfera federal e outros milhares em todos os municípios e estados brasileiros.

A expansão do cadastro ocorreu principalmente a partir de 2005, quando o governo federal passou a apoiar financeiramente os municípios para essa atividade e a fortalecer as estratégias para melhorá-lo. Desde então, o cadastro começou a ser cruzado com outras bases do governo para identificação de possíveis erros, e as pessoas com informações inconsistentes passaram a ser chamadas aos escritórios da assistência social para verificação.

As melhorias ampliaram o interesse pelo cadastro e, em 2010, além do Bolsa Família, cerca de dez outros programas o utilizavam para seleção de público ou monitoramento das ações.

Fruto de um trabalho técnico de cinco anos, uma nova versão do cadastro foi lançada no final do segundo governo Lula (PT). Contava com um novo formulário de coleta de dados, feito em parceria com órgãos de excelência, como o IBGE e o Ipea, e municípios. Todos os milhares de cadastradores foram capacitados, e essa versão foi implantada entre 2010 e 2011, em um sistema online, que possibilitou a atualização da base nacional no mesmo momento do registro municipal da informação.

Essa evolução permitiu que, durante a gestão Dilma Rousseff (PT), o cadastro concretizasse seu objetivo de ser a direção das políticas públicas aos mais vulneráveis, e mais de 20 programas sociais passaram a utilizá-lo para selecionar ou acompanhar seu público. Onde instalar as cisternas de captação da água da chuva no semiárido? O cadastro dizia onde estava cada família sem acesso à água. Como ampliar o Luz para Todos? O cadastro dizia onde estava cada casa sem energia elétrica.

A ideia de 2001, que requereu o trabalho de tanta gente por mais de dez anos, enfim virava realidade. O cadastro ficou mundialmente conhecido, e o Brasil serviu de exemplo para muitos países.

Isso significa que não havia problemas?

Claro que havia. Por exemplo, muitos homens não estavam no cadastro de suas famílias, e os motivos disso deveriam ser examinados para a devida correção. Havia ainda a necessidade de integrar sistemicamente o Cadastro Único com outras bases do governo, permitindo ao cadastrador já saber se alguém da família recebia um benefício previdenciário ou tinha um salário mais alto no emprego formal que o informado.

Essa integração é boa para o Estado, porque melhora a qualidade dos dados, e também para quem vai se cadastrar, porque evita que seja preciso repetir informações já conhecidas pelo poder público.

Passava da hora de se construir uma nova versão do cadastro, remodelando as perguntas e estabelecendo um sistema em linha com as possibilidades abertas pelas novas tecnologias, inclusive de identificação e acesso digital pelo cidadão.

Um "match" frustrado e um clique arriscado

Tudo isso estava no radar da evolução contínua do cadastro até Osmar Terra assumir o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário na gestão Michel Temer (MDB) em 2016. Terra declarou que o Bolsa Família tinha erros e que o Cadastro Único demandava urgentemente um pente-fino. A retomada de discussões já pacificadas e a contestação das avaliações rigorosas existentes substituíram a evolução do cadastro.

No governo de Jair Bolsonaro (PL), parte da discussão sobre a evolução do cadastro foi resumida a "dar match" e outra buscou a rápida digitalização do cadastramento. A parte "match" objetivava construir um grande sistema a partir do Cadastro Único, pelo qual empresas ou pessoas físicas poderiam escolher uma família, dar um "match" e passar a ajudá-la com um emprego, um curso, doação de alimentos ou outra ação voluntária. O Tinder social, contudo, não saiu do lugar.

A digitalização do cadastramento deu um passo em tese certo e outro, neste momento, arriscado. Abriu-se a possibilidade de as famílias não cadastradas fazerem um pré-cadastro por aplicativo, que deve ser completado nas áreas de assistência social. Isso seria positivo, porque diminuiria o tempo gasto na entrevista presencial. Porém, municípios relatam que essa economia de tempo não tem ocorrido, pois os dados estão sendo preenchidos incorretamente pelas famílias, e que atravessadores têm cobrado das pessoas pobres para fazer o pré-cadastro digital.

O passo arriscado está na nova possibilidade de as famílias com cadastro desatualizado dar um clique no aplicativo para confirmar que não houve alteração em nenhuma informação e, assim, o cadastro ser considerado atualizado. Entretanto, com a pandemia, as atividades de atualização cadastral foram praticamente paralisadas, e, atualmente, as pessoas esperam meses para conseguir uma vaga de atendimento presencial, ao mesmo tempo que a desatualização cadastral pode levar à suspensão dos benefícios que recebem.

Entre a espera e um simples clique, muitos tendem a preferir o clique, ainda que ele não traga a informação correta sobre suas vidas. Com isso, a qualidade do Cadastro Único fica prejudicada.

Famílias partidas no Auxílio Brasil

A determinação presidencial de que cada família do Auxílio Brasil receba no mínimo R$ 400 por mês já nos traz um programa social maldesenhado, no qual uma pessoa morando sozinha recebe o mesmo valor que uma mãe solo com 2 filhos pequenos. Porém, aqui, nos interessa abordar o problema que isso traz ao nosso mapa de pobreza.

Sabendo que os R$ 400 serão pagos inclusive a quem diz morar sozinho, há um incentivo para pessoas que moram juntas se cadastrarem como se vivessem separadas e, em razão de uma informação inverídica, o benefício passa de R$ 400 para R$ 800.

Não sabemos em que medida as pessoas respondem ao incentivo e entendem por completo a estrutura dos benefícios pagos, mas a mensagem dos R$ 400 por família foi nítida e disseminada em um contexto em que milhões de pessoas já haviam tido a experiência de se cadastrar isoladamente para solicitar o auxílio emergencial por meio do aplicativo. Mais ainda, isso acontece em um contexto de empobrecimento e inflação galopante, em que R$ 100 não compram nem um botijão de gás.

O tamanho das famílias em pobreza e extrema pobreza inscritas no Cadastro Único indica que essa deturpação de informações está acontecendo: após o anúncio dos R$ 400, o número médio de pessoas por família nessas faixas de renda, historicamente em torno de 3,1, vem caindo mês a mês e chegou a 2,8 em maio deste ano.

Nos cadastros mais recentes, de famílias hoje na fila do Auxílio Brasil, essa média está abaixo de 2. Não há mudanças nas taxas de mortalidade e fecundidade que expliquem tamanha redução em tão pouco tempo.

Duas décadas em 12 meses

O Cadastro Único é a única base brasileira com dados identificados de composição familiar, renda e condições do domicílio das pessoas em situação de vulnerabilidade. Os programas sociais que o utilizam dependem dessas informações para que atendam a quem devem atender. A deturpação de seus dados é péssima para a focalização da transferência de renda e compromete toda a capacidade do Cadastro Único funcionar como mapa da pobreza que direciona os programas sociais.

É possível argumentar que o poder público deveria ter condições de saber se as pessoas declararam o mesmo endereço ou se realmente moram onde informaram, ainda mais com as tecnologias atuais de identificação geográfica. Hoje, isso não é possível e depende de mudanças complexas, porque os endereços de locais pobres ou isolados não seguem o padrão muitas vezes e há muitos casos de famílias diferentes que vivem em um mesmo endereço.

Por isso, juntar essas famílias partidas vai requerer um imenso trabalho de revisão de milhões de cadastros. O tempo e o dinheiro necessários para esse conserto tomarão o lugar da evolução.

Em uma ironia trágica, é o governo que se diz pró-família o responsável por destruir as informações que permitem atender adequadamente as famílias mais vulneráveis do país. Essa perda não é irreparável, porque só a morte faz jus a esse adjetivo, mas é imensurável para o Estado brasileiro —e mais uma prova de que a irresponsabilidade de um governo pode, em alguns meses, solapar conquistas de duas décadas.

Letícia Bartholo

Socióloga, é especialista em políticas públicas e gestão governamental e ex-secretária nacional adjunta de Renda de Cidadania (2012-16, governo Dilma)

Lúcia Modesto

Ex-diretora do Cadastro Único para Programas Sociais

Ellen Sampaio

Ex-diretora do Cadastro Único para Programas Sociais

Joana Mostafa

Ex-diretora do Cadastro Único para Programas Sociais

Cláudia Baddini

Ex-diretora do Cadastro Único para Programas Sociais

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