Descrição de chapéu Independência, 200

Brasil devastou quase 90% da mata atlântica e 20% da Amazônia depois da Independência

País dilapida patrimônio natural único e ignora urgências da crise do clima

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'Invasão de Demônios a Pindorama, após Jean de Léry, Joãozinho Trinta, Tuiutí e Mangueira' (2019), óleo sobre tela de Thiago Martins de Melo Divulgação

Marcelo Leite

Colunista da Folha e autor de livros como “Promessas do Genoma” (Editora Unesp, 2007) e “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (Fósforo, 2021)

[RESUMO] A preocupação com o desmatamento é tão antiga quanto a Independência, mas José Bonifácio foi derrotado por oligarquias escravistas em suas tentativas de disciplinar a exploração e a derrubada de florestas. Dois séculos depois, o Brasil de Bolsonaro retrocede à versão mais primitiva do mito do berço esplêndido e trata o ambiente, na contramão da emergência climática, como se fosse fonte inesgotável de riquezas para pilhar.

Em 1822, o patrimônio ambiental do território que se tornava o Império do Brasil não diferia muito do que portugueses haviam encontrado três séculos antes. A devastação da mata atlântica, primeira vítima natural da colonização, prosseguia a ferro e fogo, mas concentrada no entorno de poucos centros urbanos, muitos canaviais, áreas de pecuária e a lavoura incipiente de café.

O mesmo não se pode dizer dos povos indígenas, vários já extintos naquela altura. No século 16, eles contavam algo entre 2 e 8 milhões de indivíduos, calcula-se. Sobreviveram à frente colonial os que se internaram nos sertões da caatinga, do cerrado e da floresta amazônica, deixando a costa para o domínio do branco e a labuta dos escravizados da África.

'Invasão de Demônios a Pindorama, após Jean de Léry, Joãozinho Trinta, Tuiutí e Mangueira' (2019), óleo sobre tela de Thiago Martins de Melo - Divulgação

São hoje 305 povos indígenas remanescentes, segundo o IBGE. No Censo de 2010, somavam 897 mil pessoas, menos de 0,5% da população, das quais 572 mil em áreas rurais (sobretudo aldeias) e 325 mil em cidades.

No mesmo recenseamento, mais de 82 milhões de habitantes se declararam pardos (43,1% do total). Outros 15 milhões se identificaram como pretos (7,6%), perfazendo assim uma maioria de brasileiros descendentes dos 4,8 milhões de negros sequestrados na África.

Essa deriva populacional é indissociável da história do meio ambiente no Brasil. A dizimação de povos indígenas acompanhou a marcha predatória para oeste no século 20, com meios técnicos bem mais poderosos que a limitada força produtiva da legião de escravizados.

Na virada do século 19 para o 20, logo após a Abolição (1888), estima-se que a mata atlântica ainda tinha cerca de 90% da cobertura original de pé, mesmo após quatro séculos de predação. Hoje, 130 anos depois, restam apenas 12,4% da vegetação do bioma. No início do século passado, Amazônia, cerrado e caatinga estavam quase intocados.

A tríade genocídio, escravização e desmatamento compõe a matriz da exploração do território forjada no período colonial, com reflexos até os dias de hoje. A crítica à forma peculiar de atraso, embora atual, não emergiu com a consciência ambiental nos anos 1970, mas já com a própria nação brasileira.

Na proa do ambientalismo precoce esteve José Bonifácio de Andrada e Silva, alcunhado patriarca da Independência, como detalha o historiador José Augusto Pádua no livro "Um Sopro de Destruição: Pensamento Político e Crítica Ambiental no Brasil Escravista, 1786-1888".

Andrada passou a maior parte da vida adulta em Portugal, para onde partiu aos 20 anos. Formou-se na Universidade de Coimbra sob influência do Iluminismo e do naturalista italiano Domenico Vandelli, professor da universidade e crítico da destruição ambiental no país e em suas colônias. Só em 1819, aos 56, retornou ao Brasil, onde se tornaria ministro do Império.

Pádua destaca no livro quatro elementos essenciais da obra de Andrada: visão de mundo fundada na economia da natureza, defesa do progresso econômico como instrumento civilizatório, apologia da racionalização das técnicas produtivas pela aplicação pragmática do conhecimento científico, crítica da exploração destrutiva dos recursos naturais.

Antes mesmo da Independência, ele foi chamado pelo príncipe regente, futuro Pedro 1º, para chefiar o gabinete de ministros. Passou a defender ideias avançadas para a época, como emancipação gradual de escravizados, assimilação de indígenas, educação popular e imigração estrangeira.

Propunha a superação do modelo agrícola colonial calcado no latifúndio, na monocultura e na destruição florestal. Tal prática deveria ser transformada com reforma agrária, difusão de métodos agronômicos modernos e ambientalmente equilibrados, relata Pádua.

Para o visionário, florestas eram fundamentais para manter a fertilidade da terra e a abundância de água. A venda ou a distribuição de terras pela Coroa deveria ficar subordinada à condição de manter um sexto da área com matas originais ou plantadas.

A carreira política de Andrada foi curta. Já em 1823, deixou o ministério, em julho; em novembro, foi preso e exilado na França, onde ficaria até 1829. Retoma os projetos em 1831, como tutor dos filhos do imperador, mas é deposto em 1833. Refugiou-se em Paquetá até a morte, cinco anos depois.

Oligarquias regionais, latifundiárias e escravistas jamais aceitaram o programa de Andrada. Sua derrota, assim como a consagração como estadista, da qual a historiografia omitiu, entretanto, o ideário ambiental, dizem muito sobre a indisposição da elite nacional, desde sempre, para tirar o país do atraso.

Pádua traça um paralelo com os Estados Unidos, outra nação jovem com vastos recursos naturais, mas não tropical, que também dizimou indígenas e explorou negros escravizados. As terras a oeste foram ocupadas cedo com levas de imigrantes, enquanto o Brasil permanecia dependente da escravidão.

Em 1822, a população brasileira era de 4,6 milhões de habitantes, contra 9,6 milhões de norte-americanos. Em 1900, éramos ainda 17,4 milhões, ao passo que, nos EUA, já viviam 76,3 milhões.

"A permanência desse olhar para um horizonte dotado de gigantescas formações naturais e aberto para um avanço futuro praticamente ilimitado, parecendo tornar desnecessários os esforços e os custos envolvidos na conservação e no uso cuidadoso das áreas já abertas, é possivelmente a marca central da história ambiental do Brasil", diagnostica Pádua.

É o que ele chama de mito do berço esplêndido, expressão tirada do primeiro verso da segunda parte do hino nacional, a menos cantada. Um mito ambíguo, que pôs a natureza exuberante no centro da autoimagem da nação que surgia, motivando as missões científicas de naturalistas patrocinadas pelo Império, mas também a pintava como recurso em aparência infinito a ser explorado.

"Somos definidos pela confluência de abundâncias, abusos e ganâncias", afirma Natalie Unterstell, do centro de estudos climáticos Talanoa e do Monitor da Política Ambiental, uma parceria com a Folha.

"O mito do berço esplêndido inscreveu uma perspectiva linear e cumulativa de expansão territorial progressiva", diz.

"O algoritmo original da nação brasileira, que foi infelizmente tão bem demonstrado na devastação da mata atlântica, nos impulsionou a acelerar a destruição ambiental, partindo do pressuposto de que nossa base de recursos é infindável e que o custo da conversão de biodiversidade é nulo."

Se o algoritmo já estava pronto e, por assim dizer, testado em 1,1 milhão de quilômetros quadrados da mata atlântica (13% do território nacional), demorou a ser aplicado em outros dois biomas florestais muito mais vastos: floresta amazônica (4,2 milhões de km2, ou 49%) e cerrado (2 milhões de km2, 24%).

O sopro de destruição de que fala Pádua só varreria o restante do território no século 20. O ímpeto modernizador que levou à Revolução de 1930 criou a noção de que era preciso ocupar o interior e levar o desenvolvimento para os sertões.

"Governar é povoar", dizia o presidente Afonso Pena (1906-1909). Washington Luís (1926-1930) aproveitou o mote e o ampliou quando ainda era governador de São Paulo: "Governar é abrir estradas".

Um século depois dos Estados Unidos, o Brasil iniciava sua Marcha para Oeste, que culminaria com a inauguração de Brasília em 1960. Em lugar de cavalos e carroções, seguiam caminhões, ônibus, tratores e automóveis da nascente indústria automobilística. O petróleo era nosso.

Dos anos 1880, década da Abolição e da República, até 1940, quase 5 milhões de imigrantes chegaram ao país. A população se multiplicou por dez ao longo do século passado, mas em 1950 o Brasil ainda era um país atrasado: apenas 36% da população de 52 milhões vivendo em cidades, 51% de analfabetismo, expectativa de vida de meros 43 anos.

Do ponto de vista ambiental, entretanto, o atraso e o gigantismo legaram ao país uma situação única: 99% da maior floresta tropical do mundo estava de pé na Amazônia, alimentando algumas das maiores bacias hidrográficas do planeta, a garantir água para a nascente potência agropecuária.

Aí sobreveio a ditadura militar (1964-1985), com o ímpeto do chamado milagre econômico e um novo lema territorial: "Integrar para não entregar". O mito do berço esplêndido passou a alicerçar a paranoia militar da cobiça internacional sobre a Amazônia.

O que era, até aí, uma vocação para destruir, apesar do ufanismo naturalista dos tempos do Império, ganhou escala e impacto com a grande aceleração do pós-guerra, como assinala o historiador José Augusto Pádua.

A população cresceu para mais de 214 milhões de pessoas. A produção de ferro pulou de 9 milhões de toneladas em 1950 para cerca de 400 milhões atualmente. A produção de grãos saltou de 39 milhões, em 1975, para cerca de 210 milhões de toneladas. A taxa de urbanização avançou a 85%.

Esse crescimento teve um lado muito positivo. Com a criação da Embrapa em 1973, na pior fase da ditadura, a agricultura mudou de patamar, ganhou produtividade e conquistou o planalto central para a soja, o milho e o gado bovino.

A produtividade agrícola brasileira subiu à taxa de 3,6% ao ano entre 1975 e 2010, segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) –o dobro da velocidade observada nos Estados Unidos no mesmo período.

O Brasil chegou em ótima posição ao boom de commodities dos anos 2000. Surfando na abundância de recursos, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) criou o Bolsa Família e o ProUni e turbinou o Fies. Cotas raciais foram implementadas. A pobreza diminuiu, e a escolaridade aumentou.

Em contrapartida, o ambiente sofreu. Na euforia do pré-sal, cresceu a produção de petróleo e gás (para não falar da corrupção associada), combustíveis fósseis que agravam o aquecimento global.

A usina de Belo Monte desfigurou para sempre o emblemático Xingu. O rio dá vida e nome ao parque indígena (1961) dos irmãos Villas-Bôas, continuadores do indigenismo benigno do marechal Cândido Rondon. Ali vivem 16 etnias, algumas atraídas para a área para abrir espaço às companhias colonizadoras.

Aliada à incúria do poder público, a mineração de metais, outro setor impulsionado pelo apetite voraz da economia chinesa, desencadeou as hecatombes de Mariana (2015) e Brumadinho (2019). Ao todo, 289 mortos.

O crescimento da população urbana se deu de maneira desorganizada. As cidades incharam, sem saneamento básico, com muito trânsito, favelas e poluição atmosférica.

Quase metade (45%) dos brasileiros não tem acesso à rede de esgoto, e só metade do que se coleta passa por tratamento —o restante chega in natura aos rios, volume de dejetos equivalente a 5,3 milhões de piscinas olímpicas por ano, segundo o Instituto Trata Brasil. É mais que improvável cumprir a meta de universalizar água e esgoto até 2033.

A derrubada do cerrado avançou, e a devastação dessa savana brasileira com enorme biodiversidade ultrapassou metade da cobertura original. A floresta amazônica, que viu as taxas de desmatamento recuarem de 27.779 km2 a 4.571 km2 entre 2004 e 2012, voltou a crescer até alcançar 13.235 km2 em 2021, acumulando 20% de perda da vegetação ainda intacta na época da Independência.

"Na economia, usa-se o termo ‘voo de galinha’ para descrever os ciclos de desenvolvimento, e na área ambiental pode-se usar a mesma analogia", diz Natalie Unterstell, do Instituto Talanoa.

"Depois de recordes de descaso, reduzimos drasticamente o desmatamento na Amazônia entre 2004 e 2012, a maior ação de mitigação de emissão de gases de efeito estufa da história contemporânea, mostrando do que o Brasil é capaz quando trabalha sério para implementar uma política pública."

Em paralelo, avançavam no mundo negociações para mitigar o aquecimento global e o pior da mudança climática. O governo brasileiro evoluiu de posições refratárias para algum protagonismo, a partir da Cúpula da Terra no Rio (1992) e do Protocolo de Kyoto (1997), o que se esboroaria de vez com Jair Bolsonaro (PL).

A destruição da Amazônia se tornou tema mundial em 1988, no governo de José Sarney (PMDB, 1985-1990), poucos anos após o fim da ditadura que cortou a região Norte com a rodovia Transamazônica. Queimadas se multiplicavam nos sensores de satélites, chamando a atenção da opinião pública mundial para a frente de ocupação predatória que resultaria na morte do líder seringueiro Chico Mendes.

Demorou uma década para a diplomacia e a Presidência da República se darem conta da oportunidade do país valorizar seu patrimônio florestal ímpar como capital político (soft power). E, também, para auferir créditos de carbono e pagamentos por serviço ambiental de matas que absorviam gases do efeito estufa da atmosfera.

O governo de Dilma Rousseff (PT) assumiu compromissos voluntários relativamente ambiciosos de diminuição de emissões de carbono para o Acordo de Paris (2015). O Brasil se prontificou a reduzir em 43%, até 2030, o lançamento de gases-estufa gerados, principalmente, pelo desmatamento.

Apesar de pequenos repiques nas cifras de devastação amazônica de 2013 a 2015, a média anual nesse triênio ainda estava em 5.700 km2. À luz da experiência na década anterior, não parecia assim tão difícil cumprir a meta assumida.

Tudo mudou após o impeachment da presidente, em 2016, que contou com amplo apoio da bancada ruralista no Congresso. Já naquele ano o desmate subiu para 7.893 km2 na Amazônia —e não parou mais.

A eleição de Jair Bolsonaro disseminou o retrocesso por todas as frentes. O presidente de extrema direita está cumprindo a promessa de não demarcar um centímetro das 265 terras indígenas ainda em estudos (do total de 725 identificadas).

Bolsonaro diz que não vai acatar eventual decisão do Supremo Tribunal Federal contra o chamado marco temporal, tese de que só têm direito ao reconhecimento de territórios povos que os ocupavam em 1988. Ou seja, os esbulhados antes da Constituição assim permaneceriam.

Políticas para prevenir desmatamento e mudanças climáticas também foram desmontadas, assim como se manietaram os órgãos de fiscalização Ibama e ICMBio. O Planalto inviabilizou o Fundo Amazônia e congelou R$ 3 bilhões para projetos de preservação e desenvolvimento sustentável, doados por Noruega e Alemanha.

"A falta de inteligência e criatividade, assim como a ganância de curto prazo e a preguiça política, podem gerar um cenário cada vez mais trágico no país, ao invés de aproveitar as oportunidades que a conjuntura histórica possa estar apresentando", lamenta Pádua.

"É claro que o crescimento da grande exportação primária tem peso essencial, mas creio que não explica tudo. O sinal verde para os interesses de curto prazo de agentes econômicos locais, como garimpeiros e madeireiros, também é fundamental. O que espanta é o grau de atraso e a falta de inteligência estratégica na visão ambiental do atual governo. É como se décadas de debate sobre o imperativo da sustentabilidade fossem simplesmente ignoradas."

A ideia de que repousamos como potência verde em um berço esplêndido de carbono, sem nada precisar fazer para gerar créditos, também é uma ilusão bolsonarista, aponta Natalie Unterstell. "Não somos uma Arábia Saudita do carbono: é preciso muito esforço para acabar com o desmatamento e, assim, conseguir gerar redução de emissões."

Só depois da Constituição de 1988, mais de 743 mil km2 de floresta amazônica foram ao chão (quase 18% do bioma), ou o triplo da área do estado de São Paulo. Em meros 34 anos, os habitantes do berço esplêndido destruíram na Amazônia quase o mesmo tanto de mata atlântica que levaram cinco séculos para dizimar.

Só essa derrubada na Amazônia contribuiu com cerca de 32 bilhões de toneladas equivalentes de dióxido de carbono (GtCO2e), principal gás do efeito estufa, para agravar o aquecimento global. Para comparação: em um ano (2020), todas as atividades humanas no Brasil geram um total de 2,16 GtCO2e.

Incluindo tudo que se desmatou antes de 1988, um quinto da floresta amazônica já virou fumaça. O restante vai sendo degradado por garimpo, madeireiros ilegais e estradas clandestinas, além do aumento de temperatura e do ressecamento impostos pelo aquecimento global.

Chegando a um quarto de perda, o bioma deve entrar em colapso, prevê a ciência. A tragédia viria com a interrupção da maior célula terrestre de produção de chuvas no planeta, gerando impacto negativo na agricultura do país todo.

Se depender de Bolsonaro e da bancada ruralista incrustada no centrão, é o futuro que nos espera —para o qual fomos alertados há 200 anos pelo patriarca da Independência.

Texto integra série Frente e Verso

Este texto sobre o meio ambiente do Brasil nos últimos 200 anos é a segunda publicação da série Frente e Verso, que pretende discutir erros e acertos na trajetória do país ao longo desse período e indicar as perspectivas de futuro. O primeiro texto, em abril, tinha como tema a economia do país. Saúde e educação estarão entre os próximos assuntos abordados.

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