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Andrew Curran e Kenneth David Jackson

Diderot antecipou Darwin, atacou Deus e escravidão e inspirou Machado

Escondida pelo autor francês, sua obra ainda soa moderna e explosiva quase 300 anos depois

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'Os Macacos de Diderot' (2017), do artista ucraniano Alexander Roitburd (1961-2021) Wikiart/Reprodução

Andrew Curran

Professor de humanidades na Universidade Wesleyan, em Connecticut (EUA), e autor de "Diderot e a Arte de Pensar Livremente" (Todavia)

Kenneth David Jackson

Professor de português na Universidade Yale, autor de "Machado de Assis: a Literary Life"

[RESUMO] Ícone da liberdade de pensamento, influência marcante para nomes como Marx e Machado de Assis, o francês Denis Diderot (1713-1784) desafiou dogmas políticos e sociais de seu tempo, foi crítico veemente da escravidão e previu com espantosa exatidão temas hoje em voga, como a crise ambiental e a polarização política.

O escritor francês Denis Diderot (1713-1784) provavelmente não é conhecido por muitos no Brasil. Os que já ouviram falar dele devem associá-lo, sobretudo, ao trabalho como editor da primeira enciclopédia verdadeiramente abrangente, um projeto maciço para o qual escreveu espantosos 7.000 artigos. Diderot, porém, continua a ser pertinente ao Brasil de maneiras que transcendem de longe seu papel de simples compilador de palavras e conceitos.

Os amigos de Diderot não o descreviam como um filósofo, mas como "o filósofo". Parte disso se devia à sua legendária fome de conhecimento. Voltaire (1694-1778) o considerou um "pantófilo", um pensador que se apaixona desesperadamente por cada tema que estuda. No caso de Diderot, isso significava matemática, ciência, medicina, filosofia, política, antiguidade clássica, teatro, literatura, musicologia e as belas-artes.

Machado de Assis (na cadeira) e o francês Denis Diderot - Daniel Lannes

Parece um interesse sobre-humano, mas ele ainda ia além. Diderot foi o maior proponente do poder emancipador da filosofia e literatura, da arte de pensar livremente. "Se você me proibir de falar sobre religião ou o governo", ele disse certa vez, "não terei mais nada a dizer".

Algumas de suas ideias mais ousadas podem ser encontradas em sua "Enciclopédia". Em uma época, o século 18, em que questionar a monarquia era um delito passível de punição, Diderot declarou sem rodeios: "Homem algum recebeu da natureza o direito de comandar outros homens. A liberdade é uma dádiva dos céus, e cada indivíduo da espécie tem o direito de desfrutá-la tão logo seja capaz de raciocinar".

Ele também questionou crenças sagradas cristãs. Veja, por exemplo, as referências cruzadas irônicas oferecidas para a palavra antropofagia ou canibalismo: elas direcionam o leitor aos verbetes eucaristia, comunhão e altar. Não surpreende que a publicação da "Enciclopédia" tenha sido proibida duas vezes, empurrando a obra à clandestinidade.

Perseguição e vigilância foram constantes na vida de Diderot. Algumas de suas primeiras obras não chegaram a ajudar. Em 1748, para vencer uma aposta, ele publicou "As Joias Indiscretas", um texto de pornografia leve em que um anel mágico persuade as "joias" das mulheres a relatar suas aventuras eróticas.

No ano seguinte, lançou uma obra de filosofia muito mais séria e provocativa, "Carta sobre os Cegos para Uso dos que Veem", em que refutou a existência de Deus. Este livro lhe valeu três meses de prisão.

Quando foi libertado, Diderot optou por esconder seus textos em um baú para as gerações futuras: para nós, na verdade. Fato que não chega a surpreender, seu legado mudou radicalmente depois que seu tesouro de escritos começou a vazar. O célebre escritor alemão Goethe (1749-1832), que encontrou um desses manuscritos, previu que as opiniões e inovações literárias de Diderot explodiriam como bombas. Não se equivocou.


Os leitores de Diderot, então e hoje, nunca deixam de se espantar com sua modernidade. "A Religiosa" (1796, publicado postumamente) é um pseudolivro de memórias de uma jovem forçada a tornar-se freira que Diderot escreveu no intuito de chamar a atenção para os abusos físicos e sexuais que, a seu ver, eram frutos inevitáveis do celibato religioso e das vocações impostas.

Em "Jacques, o Fatalista" (1796, também póstumo), antirromance digressivo inspirado em Cervantes e Laurence Sterne, Diderot produziu reflexão hilária sobre o problema do livre-arbítrio. Lendo o livro, sentimos nitidamente sua alegria por encarar um dos maiores quebra-cabeças filosóficos da humanidade.

Diderot também deixou tratados políticos inéditos e secretos, escritos para a imperatriz russa Catarina, a Grande, grossos cadernos de crítica de arte e uma obra presciente de ficção científica, "O Sonho de D’Alembert" (1769), que, 90 anos antes de Charles Darwin e seu "A Origem das Espécies" (1859), imagina um mundo sem Deus, feito de manipulação "genética" especulativa e teoria protoevolucionária.

Finalmente, deixou sua obra-prima, "O Sobrinho de Rameau", cujo manuscrito tido como definitivo só foi localizado em 1891, um século depois da morte de Diderot. Nesse diálogo filosófico envolvente, o escritor francês apresenta um dos excêntricos mais memoráveis de toda a literatura: Jean-François Rameau, hedonista impenitente que prega a beleza do mal, as alegrias do parasitismo social e o direito de ser um indivíduo que defende seus próprios interesses.

É também nesse livro que Diderot declara, em tom de brincadeira, que se deixássemos um menino crescer totalmente sem educação, "ele com o tempo passaria a unir o raciocínio de uma criança às paixões do homem adulto. Estrangularia seu pai e dormiria com sua mãe". Não surpreende que Freud tenha virado seu fã.

À medida que foram descobertos, os textos de Diderot inspiraram pensadores notáveis como Hegel, Nietzsche e Marx —este o citou em duas ocasiões distintas como seu escritor favorito. No Brasil, Machado de Assis foi seu maior devoto.

'Os Macacos de Diderot' (2017) do artista ucraniano Alexander Roitburd (1961-2021) - Wikiart/Reprodução

Algumas das inovações mais radicais de Machado na ficção —usar o "delírio" de seus personagens para "revelar a verdade", entregar o palco ao anti-herói e criar um narrador que fala do além-túmulo— tiveram origem no escritor francês. Machado chegou a adotar a ideia da "Enciclopédia" de Diderot para produzir o inventário de autores mundiais citados ao longo de sua ficção.

Em sua advertência à coletânea de contos "Papéis Avulsos" (1882), Machado também ecoou as razões do filósofo francês para criar suas histórias: "É que quando se faz um conto, o espírito fica alegre, o tempo escoa-se, e o conto da vida acaba, sem a gente dar por isso".

Ao citar na introdução de seu livro esse elogio enganoso da narrativa de histórias, Machado também parece ter seguido o exemplo de Diderot, ocultando o teor crítico e subversivo de seus contos. Tendo possivelmente notado as consequências da franqueza do escritor francês —ou seja, a prisão—, Machado, como ele, converteu sua avaliação impiedosa dos valores da época em ficção, de modo que apenas os leitores mais perspicazes se dessem conta.

O que mais despertou o interesse de Machado por Diderot foi o modo como o francês se permitiu questionar os dois grandes ícones do próprio projeto iluminista: a razão e o progresso. Inspirado em "O Sobrinho de Rameau", Machado criou uma série de personagens-narradores que desprezam os padrões morais e sociais.

Os humanos frequentemente subversivos e irracionais que enchem a ficção machadiana também revelam ser produtos de uma sociedade brasileira iludida, patriarcal, gananciosa; remetem, sem dúvida, a alguns dos personagens de Diderot.

Em "Quincas Borba", temos Rubião, o professor do interior que fracassa no papel de grande capitalista; Cristiano Palha, capitalista verdadeiramente ávido que devora a fortuna de Rubião; e o próprio Quincas, cuja grande síntese de todo o conhecimento na teoria Humanitas é sua grande ilusão. E há, sobretudo, Brás Cubas, narrador do além-túmulo que se gaba de sua vida marginal e parasitária, e o herdeiro mimado Bento Santiago, de "Dom Casmurro", que escreve suas memórias para ocultar seus crimes e suas inadequações.

Uma das coisas que Machado não sabia sobre Diderot era que o escritor francês acabou sendo o crítico setecentista mais veemente da colonização e escravidão europeias no Novo Mundo, incluindo no Brasil.
Como neto de escravos alforriados, Machado certamente teria se surpreendido com esse aspecto importante do pensamento de Diderot.

Era impossível saber disso, contudo, apenas pela leitura dos 111 artigos sobre o Brasil colonial que Diderot publicou na "Enciclopédia". Ao lê-los, Machado provavelmente teria suposto que o filósofo era um homem de seu tempo, um criador de dicionários sobrecarregado de trabalho que reproduzira algumas das ideias mais comuns da época.

Tome-se, por exemplo, o texto profundamente redutivo e recheado de estereótipos que Diderot escreveu com o título de "Brasil": "O interior do Brasil é habitado por povos selvagens e idólatras que desfiguram seus rostos para parecer mais assustadores a seus inimigos; as pessoas dizem que são canibais. Os mais conhecidos são os Topinambous, Majargas e Onetadcas. Essa parte do Novo Mundo é muito rica".

Ele foi ainda mais longe no artigo "Homem", em que citou uma fonte que alegava que as mulheres brasileiras eram capazes de conceber filhos sem serem sujeitas à menstruação.

Mas eis o que Machado ignorava sobre o filósofo francês; aliás, todos ignoravam. Vinte anos depois de ter reciclado esses mitos e estereótipos para a "Enciclopédia", em cuja fase de produção redigia mil artigos por ano, Diderot apresentou uma visão muito mais crítica das ações da Europa no mundo colonial.

No quase um terço que escreveu do livro "História das Duas Índias" —elaborado por vários autores, mas publicado anonimamente em 1770 e atribuído apenas ao abade Guillaume Thomas Raynal (1713-1796) anos depois—, Diderot não apenas criticou os europeus amargamente pelos pecados que cometeram em suas colônias no ultramar como defendeu os direitos dos oprimidos.

ais memoravelmente, deu a palavra no livro a um imaginário africano escravizado que afirmou o direito de ser livre e previu o dia em que escravos caribenhos se ergueriam em armas contra seus senhores.

Esse texto, redigido em 1779, uma década antes dos acontecimentos em São Domingos (atual Haiti) que lhe dariam razão, é um dos momentos mais notáveis na história "pós-colonial" do século 18. Como era comum em sua vida, Diderot não experimentou o reconhecimento público por isso —sua colaboração crucial na "História das Duas Índias" só foi constatada quase 200 anos depois, por volta de 1950.

Neste livro —enciclopédia sobre o comércio entre Europa, América, África e Índia Oriental, espécie de best-seller na época—, Diderot também tem várias questões específicas a dizer sobre a colonização do Brasil. Na verdade, foi nele que escreveu mais detidamente sobre o país.

Ele declarou que os europeus que chegaram a essa parte enorme da América do Sul pouco passavam de "tigres domésticos" com sede de sangue e ouro. Em parágrafo espantoso, argumentou que a única maneira de colonizar um território como o do Brasil seria pela miscigenação racial: enviando "algumas centenas de rapazes e moças" a essa região para se casarem com membros dos povos indígenas, uma vez que o parentesco consanguíneo faria de europeus e indígenas "uma mesma e única família".

Desnecessário dizer que poucas pessoas na Paris do século 18 acreditavam que uma política coordenada de miscigenação pudesse ser a solução de qualquer problema.

Diderot especulou sobre questões como essas no Novo Mundo sem jamais deixar sua sala de trabalho em Paris. Mesmo assim, não se sabe como, conseguiu prever as consequências e os desafios do avanço europeu nas Américas.

'A Declaração da Independência', de John Trumbull (1756-1843), que retrata a declaração da independência dos EUA, ocorrida em 1776 - Reprodução

Em 1780, pouco após a independência dos EUA, lançou um alerta a seus líderes. Disse a eles que a maior ameaça ao país não viria de sua antiga senhora, a Inglaterra. Anteviu que o verdadeiro desafio resultaria do sucesso futuro norte-americano e de sua consequente riqueza.

"Habitantes da América do Norte, que o exemplo de todas as nações que os precederam, e especialmente o de sua pátria de origem [a Inglaterra], lhes sirvam de lição. Cuidado com a fartura de ouro que traz em sua esteira a corrupção da moral e o desprezo pelas leis; cuidado com uma distribuição desequilibrada da riqueza que dê lugar a um número pequeno de cidadãos opulentos e uma multidão de cidadãos na pobreza, uma situação que engendrará a insolência de alguns e a miséria de outros", escreveu.

O aviso lançado por Diderot a esses pioneiros democráticos de que uma abundância de dinheiro poderia enfraquecer a moral e o respeito pelas leis, sem falar em dividir o país, parece hoje tremendamente presciente.

Ele previu que a riqueza ilimitada inevitavelmente resultaria não apenas em conflitos de classe e corrupção política, mas também na ascensão de um autocrata cínico que daria as costas aos valores democráticos do país. Palavras mais verdadeiras que essas nunca foram proferidas.

Diderot frequentemente parece um profeta de nossa era. Perto do final de sua vida, ele também profetizou a chegada de um dia em que a população mundial, cada vez maior, suscitaria sua própria derrocada. As cidades enormes do mundo, ele acreditava, estavam se convertendo em "monstros na natureza", colossos cujo ar, água e terras inevitavelmente ficariam cada vez mais infectados e poluídos.

A única maneira de a raça humana sobreviver e prosperar, ele disse, seria se criássemos um exército de trabalhadores ambientais, uma parcela significativa da sociedade que se dedicasse a "conservar" o mundo à nossa volta. Se isso não acontecer, previu, "a expectativa de vida diminuirá; a felicidade na vida deixará de ser sentida; os horrores da fome serão generalizados" e sofreremos com "doenças paridas por epidemias".

Diderot tem ainda uma última e importante mensagem crítica que pode nos orientar no ambiente político e social instável e caótico de hoje, uma era em que as redes sociais e as fake news tomaram o lugar de vozes de mérito reconhecido, como sua própria "Enciclopédia".

É bom dar ouvidos às palavras que ele disse em múltiplas ocasiões ao longo de sua carreira —e que proferiu pela última vez na noite antes de morrer: "O ceticismo é o primeiro passo em direção à verdade".

Denis Diderot (1713-1784)

Filósofo e escritor francês, se tornou célebre por escrever milhares de verbetes e coordenar a edição da "Enciclopédia", uma das obras fundamentais do Iluminismo, que expressava posições contrárias à monarquia e aos dogmas católicos. Publicou em vida livros em que criticou a moral dominante do seu tempo e se debruçou sobre a biologia e a química, antecipando ideias da teoria da evolução. Boa parte da sua obra, porém, só veio a público postumamente, como o romance "A Religiosa" e o diálogo satírico "O Sobrinho de Rameau".


Tradução de Clara Allain.

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