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Teixeira Coelho

Com crise climática e Guerra da Ucrânia, salvar o planeta deve ser prioridade da cultura

Em texto inédito, curador que morreu no último sábado diz que alertar pessoas com informação correta é ação cultural básica

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Ilustração André Stefanini

Teixeira Coelho

Professor titular aposentado da USP, foi curador-chefe do Masp de 2002 a 2015 e diretor do MAC de 1998 a 2002. Autor, entre outros livros, de "A Construção do Sentido na Arquitetura", "Dicionário Crítico de Política Cultural" e "Moderno pós Moderno"

[RESUMO] Curador e crítico de arte, que morreu no último sábado (4), concluiu em março este breve manifesto em que repensa a ideia de cultura no século 21, motivado por dois acontecimentos traumáticos, a Covid-19 e a Guerra da Ucrânia, que escancararam o papel subalterno que governos e mercado reservam às artes e humanidades em geral.

Tudo o que é imenso carrega em si uma maldição, advertiu Sófocles. E como agora enfrentamos dois acontecimentos imensos e seus desdobramentos, a maldição é exponencial. E todos revelaram o real lugar social da cultura, das artes e das humanidades.

Primeiro acontecimento imenso e primeira revelação

A cultura não é essencial.

Claro que a cultura é essencial. Sem ela simplesmente não há vida humana como a conhecemos, não há civilização. Não poderíamos nem mesmo conversar para nos colocarmos de acordo sobre o que fazer. A primeira essencialidade da cultura é a linguagem. Mas apenas da boca para fora tem sido dito por governantes e ministros, com escassa ideia do que falam, que a cultura é essencial.

Ilustração - André Stefanini

Primeiro acontecimento imenso e primeira prova da inessencialidade da cultura: a pandemia de Covid-19 de 2020. Tomemos para análise um país que não mexe com nenhum "parti pris" por aqui —a França, terra da cultura, inventora do Ministério da Cultura contemporâneo, hoje presidida por um homem, Emmanuel Macron, que estudou filosofia na prestigiosa Paris Nanterre e foi assistente de um destacado filósofo do século 20, Paul Ricoeur, antes de ir trabalhar para um banco e tornar-se ministro da Economia de François Hollande, quando de propósito deve ter esquecido tudo o que aprendeu de filosofia, se é que aprendeu algo.

Quando se percebeu que era preciso fechar tudo como modo de interromper o ciclo dos contágios da pandemia, tudo foi fechado na França, menos a prestação da saúde, os supermercados, os postos de combustível, transporte e o mais que se sabe.

Fechado foi todo o resto: lojas de roupa, escolas, bares, restaurantes, teatros, cinemas e livrarias. Em uma pequena livraria de bairro de Paris —cidade onde há ou havia até 2020 muitas e ótimas delas, não os fast food do livro que existem hoje—, em geral operada por uma só pessoa (não raro seu proprietário), não entram por hora mais de duas ou três pessoas, se tanto.

Não é suposição, vivi em Paris um par de anos. Essas livrarias, contudo, foram fechadas. No entanto, partidas de futebol continuaram a ser disputadas a portões fechados: bilhões de dólares estavam e estão sempre em jogo nas transmissões para a TV, exibindo os nomes e slogans de patrocinadores a ocultar o nome original do clube.

E não importa se os jogadores precisam atuar sem máscara e trocar saliva e suor: alguém tem de pagar o pato para que outros se divirtam e não pensem em coisas ruins, não é mesmo? Assim tem sido desde a Antiguidade.

As livrarias, porém, continuaram fechadas: cultura não é essencial, livraria é até lugar perigoso, com todas essas ideias estranhas que oferece. E essa história de que livro e cultura são vitais para o espírito é conversa para boi dormir em pé em época de eleição ou de inauguração de institutos e exposições mantidos pelas pessoas de bem.

Depois, aos poucos mais público foi admitido em estádios, cinemas, teatros, restaurantes, segundo certas cotas: tantos % da capacidade do local. E as livrarias? E os cinemas, que apenas sobrevivem com um número mínimo (alto) de assentos vendidos, mais o produto do bar? E o teatro?

Enquanto isso, os estádios de futebol iam se enchendo mais e mais: 10% de uma lotação de 30 mil, de 50 mil, de 60 mil e, depois, 30%, depois 50%, depois, como agora, lotação total. E quase ninguém com máscara nas arquibancadas.

Artistas, escritores, produtores denunciaram o descaso e a discriminação contra a cultura, mas o governo continuou no seu ritmo e indiretamente deixou claro que cultura não é essencial; esse negócio de cultivar o espírito, a mente, é tudo bobagem.

É para que entendamos bem: cultura não é essencial, cultura continua a ser, de fato, a cereja do bolo. Havendo bolo, coloca-se a cereja –geralmente, de gelatina tingida.

Segundo acontecimento imenso e segunda revelação

Os de sempre, mas agora em cores mais fortes: o dinheiro, dinheiro para rodar a economia, dinheiro para as pessoas pagarem aluguel, alimentação, prestação do carro (escola, nem pensar: que vá todo o mundo para casa contentar-se com o engodo da educação pela internet, o grande faz de conta do século 21).

Como a França ainda é um dos poucos países do bem-estar social, o Estado sabe que deve assegurar saúde, educação e proteção a preço zero ou quase. O governo francês definiu ajudas extraordinárias que Macron daria "custasse o que custasse" (em $). E deu: recursos em dinheiro, desburocratizados, para pagar salários de trabalhadores temporariamente desocupados, cobrir perdas em vendas comerciais, ticket combustível, ticket eletricidade, recursos para pagar aluguéis comerciais (até de livrarias!) e um leque de outras medidas que evitaram que a água entrasse pela boca abaixo do cidadão-contribuinte e o afogasse para sempre.

Isso foi feito, necessário reconhecer. E até a cultura ganhou sua parte —não por ser cultura, nem por essencial, mas como fato econômico. Como qualquer outro fato econômico.

Terceiro acontecimento imenso e terceira revelação

Entra em cena, pisando forte, um ator que nela já estava há algum tempo, ator farsesco e que encarna um dos piores papéis que a economia impõe à sociedade: a "economia criativa", expressão aberrante a pôr em evidência a ignorância dos que a empregam e propagam ao deixar claro que ou não sabem (ou fingem não saber) que toda ação que modifica a natureza de uma coisa ou matéria em outra é um ato criativo —um filme (bom) tanto quanto um avião (que não caia nos primeiros voos), um bom sapateiro artesão que produz um "belo" sapato tanto quanto a indústria automobilística.

Um avião de hoje é uma obra de criação máxima, com seus milhares de quilômetros de fiação embutida, sensores por todo lado e tudo o que se possa imaginar e que nem se imagina —tanto quanto algum encantador espetáculo teatral de primeira linha. Não há espaço aqui para retornar a Platão e Aristóteles e recordar que tudo, escrever um poema ou construir um avião, são casos de poièsis (construção), a diferença sendo que um poema (bom, uma obra de arte) vai além do que está escrito no papel e leva o leitor para destinos que não podia imaginar, ao passo que um belo avião a jato contemporâneo leva o viajante de São Paulo a Paris, e só: tira-o de onde ele sabe que está e leva-o aonde ele diz querer ir.

Quando abro um livro de poesia (boa, de arte), não sei nem onde estou, nem para onde vou. Aquele mesmo avião que foi de São Paulo a Paris pode seguir para Pequim com outra tripulação e talvez outros viajantes (se forem tolos o suficiente para fazê-lo hoje), mas se trata apenas de mais do mesmo.

Tudo o que a ação do homem (de propósito não uso o termo "trabalho") transforma é obra de economia e criação —salvo o trabalho alienado, mas desse ninguém se ocupa. Se o resultado é bom, médio ou desprezível, é outro problema.

No entanto, um avião a jato de hoje não tem o mesmo valor existencial de uma peça de Sófocles encenada hoje —e sabemos, desde a primeira aula de aritmética, que não podemos somar coisas de natureza diferente (maçãs e peras) e pô-las numa mesma sacola sem antes transformá-las em algo que as una por meio de um conceito. Em cesto onde estão 3 maçãs e 2 peras, existem apenas 3 maçãs e 2 peras, ou 5 frutas (o conceito). Conceito é tudo. Sem ele, não há conhecimento, nada.

A "economia criativa", expressão mais infame das últimas décadas, é até esperta e serve-se de um conceito para unificar coisas diferentes; esse conceito é o dinheiro. Um livro custa, na França, digamos que 20 euros, e um Airbus médio, algo ao redor de 90 milhões de euros. Ambos, porém, se igualam em uma coisa, seu máximo divisor comum: o dinheiro.

Mas um divisor comum só é comum quando opera com coisas iguais, e avião e livro não são iguais. O que ocorre nesse caso é a redução de um (o livro) ao outro (o avião), já que o avião nunca se reduzirá ao livro. O avião não pode entrar na conta da indústria cultural do livro (denominação ainda apropriada que algum esperto achou melhor "atualizar" para "economia criativa"), nem o livro influir na balança comercial dos aviões.

E se a coisa for pensada em termos de política cultural, fica ainda mais complicado. A criação de uma bela joia pode ser obra de arte e criativa, além de custar caro e movimentar riqueza; mas nenhuma política cultural decente irá apoiar a produção de joias raras e caras, mesmo se "de arte" —embora para desenvolver um avião novo as grandes construtoras aéreas peçam e ganhem bilhões de euros do dinheiro público, cujos resultados econômicos (na forma de bônus e prêmios) vão para os bolsos de alguns dirigentes e acionistas, mesmo se um ou dois aviões novos caírem e matarem 400 pessoas no curto intervalo de dois meses. Nenhum livro novo com defeito mata nem sequer uma pessoa.

E um grande problema entre os grandes problemas e blefes da "economia criativa": a expressão mesma é um atentado à ética da terminologia científica —e se um gestor da cultura não seguir a ética científica, especialmente em países onde se fala em ética o tempo todo, como este e outros (mas não todos), comete um grave erro de pensamento, conceituação e, portanto, de resultados.

O que diz a ética da terminologia científica: cada coisa (objeto, referente) deve ter uma só denominação (signo, termo, palavra), de tal modo que, alterando-se esse objeto, o termo correspondente será outro, e vice-versa. Quando tudo é designado pelo mesmo termo, tudo é "economia criativa", nada fica fora desse campo —não há conhecimento, apenas fake news.

E a "economia criativa" reforça a mesma revelação já apontada: cultura não é essencial, a economia sim; cultura não conta em si, conta como peça da máquina de gerar dinheiro e manter a economia viva. Só que, como conta muito pouco, o resultado é o que se viu na França, esse distante país do norte. E com isso nega-se o valor intrínseco e específico da cultura, trocado pelo valor econômico.

A justificativa é velha e falida: convencer governos e iniciativa privada de que "cultura dá trabalho", gera recursos, alimenta o turismo, move a economia. Esse argumento vem desde a metade dos anos 1980 do século passado e nunca deixou marca positiva. Turismo cultural é turismo puro e duro com um cartaz colorido onde está escrito cultura, pendurado no pescoço de um guia que diz coisas para pessoas que querem cair no mar.

Cultura não é fato físico, como um avião ou um monitor de TV; cultura é, não há outro termo, algo metafísico. E, como tal, tem de ser reconhecida. Ou desaparecerá. Como já está.

Quarto acontecimento imenso e quarta revelação

A invasão assassina e não provocada da Ucrânia pelo governo da Rússia mostra a derrocada da cultura e das humanidades e aponta para outro conceito prioritário de cultura hoje. Não entrarei em questões políticas e ideológicas. Reparem apenas que Putin não usa mais, há tempos, a expressão capitalismo para designar seu inimigo (mesmo porque ele próprio é um capitalista, e a Rússia pratica o capitalismo de Estado, com os prejuízos indo para o Estado e os lucros para os amigos do czar). Ele fala em Ocidente: é o que está em jogo, um modo de vida, uma ideia de política. Ponto.

A Guerra da Ucrânia está sendo alimentada por bombas, balas e fake news. Releiam "1984", de George Orwell, com sua novilíngua: "Fazemos a guerra porque queremos a paz"; "eu, que estou invadindo, é que estou sendo invadido". E aqui surge um conceito fundamental de "cultura" para o século 21, que já o era antes, mas agora com evidência total: cultura é informação (correta).

Em certos momentos da vida e do mundo, prioridades devem ser definidas. Não é o momento para a cultura alimentar jogos identitários adversativos que cobram seus tributos em sangue, como mostra esta guerra da Rússia contra a Ucrânia e como o escritor italiano Claudio Magris escreveu no livro "Danúbio"; o mundo é um só e é pequeno, e a humanidade, uma só, feita de seres humanos com destinos unidos e indeslindáveis.

Uma guerra contra a Ucrânia pode, neste instante, acabar com o mundo antes que o aquecimento global reduza a Terra a um novo Marte seco. A ação cultural básica hoje é garantir a informação correta. Coisa difícil, mas não impossível.

Grupos de trackers sabem hoje onde estão os grandes iates dos oligarcas russos que escondem suas fortunas em paraísos fiscais —e esses iates podem ser confiscados e usados como forma de pressão e redução do sofrimento de milhões de ucranianos feridos ou expulsos de seu país. É a guerra por outros meios, mais justos.

E outros trackers conhecem o paradeiro dos jatos executivos. O difícil é deixar a política e a ideologia de lado e buscar apenas isso que ainda existe: a informação correta, a verdade. A verdade existe. A ação cultural prioritária de hoje é a ação informativa organizada, correta, tão objetiva quanto possível: ali está tal objeto assim e assim e mais além, aquele outro; e o que este governante está dizendo é falso, a verdade é X.

Não é tão difícil assim. Informação é cultura, cultura é informação. Hoje, prioritária. Sem informação, não há cultura. E sem cultura não há informação, há apenas mensagem, palavras de ordem. Se for preciso escolher entre uma "produção" cultural ou artística mais ou menos, que satisfaça o ego de um artista ou grupo, e a geração e veiculação de informação (correta), não há escolha: a segunda se impõe.

Se o mundo parar de produzir arte e cultura novas ou "novas" por um ano ou dois ou dez, há um enorme estoque de arte e cultura não aproveitado e não conhecido a explorar como se fosse novidade. E é.

A guerra contra a Ucrânia mostrou, mais uma vez, que as humanidades são uma ideia fantasma que não se materializa mais em quase lugar algum. Esperar que um governante dê mostras de humanismo e humanidade é dar sinais de demência política. Mas ver a quantidade de pessoas comuns que não demonstram qualquer sinal de terem um dia se exposto às ideias das humanidades, e hoje buscam defender o indefensável, como maestros e artistas de reputação, é um desencanto total com o fracasso (planejado) de um sistema básico que ainda se denomina com o termo equivocado "educação" e que deveria ser, de fato, um processo de aculturação do ser humano.

Mas como a cultura não é essencial, e como muita gente que olha para a música, ou para as artes visuais, ou para o cinema não enxerga o fundo do olho do fenômeno, o que resta mesmo são esses montes de imagens sem conteúdo aplaudidas por cegos codificados.

Quinto acontecimento imenso e quinta revelação

Fenômeno também não de agora, mas que agora, com ameaças de uso de armas atômicas conectadas ao efeito estufa, torna-se ainda mais dramático e mesmo, trágico: o fim da Terra e, com ela, do ser humano e tudo o que tem e fez de maravilhoso.

De novo, não é este o lugar para voltar a Platão e Aristóteles e recordar como aquilo que constituiu uma unidade, ser humano-natureza, foi quebrado como se quebra uma molécula em química, colocando-se cada termo em um lado da inequação, até que o ser humano prevaleceu sobre a natureza e a destruiu, a pretexto de dominá-la para sobreviver.

Prioridade número um da cultura: o planeta. Ação cultural prioritária: usar a informação (correta) para alertar as pessoas, já que os governantes só conseguem pensar em termos de "economia criativa" e manter a roda girando tal como está, à custa de fake news e distorções promovidas pelas mídias antissociais —que precisam voltar a ser o que nunca foram: sociais.

Isso todos podemos fazer, se de fato quisermos um futuro para nós e nossos filhos. E não precisamos de política econômica, nem de política cultural, nem de Ministério da Cultura, nem de subsídios, nem de incentivos fiscais, nem de editais: temos celulares, tablets, internet, podemos agir.

Este é um brevíssimo manifesto cultural, com algumas reflexões aparentemente heréticas, para a ideia da cultura no século 21 à beira de um duplo cataclismo. Enfrentar prioritariamente esse desastre em movimento é a prioridade cultural número 1 e está ao alcance de todos, organizados. Por nossa conta. Sem convocações e palavras de ordem.

Quando mais de 1 milhão de berlinenses se reúnem espontaneamente ao redor do portão de Brandemburgo, em Berlim, para protestar contra a invasão da Ucrânia, é sinal de que ainda há vida e alma em algum lugar. Não se pode desperdiçar essa oportunidade. Uma das últimas —se ainda.


Ilustração de André Stefanini, artista gráfico e ilustrador.

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