Leia 'Tantas Outras', conto inédito de Noemi Jaffe

Escritora prepara coletânea inspirada inspiradas em citações famosas

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Noemi Jaffe

Escritora e criadora do centro literário Escrevedeira. Autora de 'Lili' e do ainda inédito 'Escrita em Movimento', pela Companhia das Letras

[SOBRE O TEXTO] O conto abaixo faz parte de uma coleção de histórias, inspiradas em citações famosas, que se tornarão um livro.

Tantas outras

quero ainda ver
nas flores do amanhecer
a face de um deus.
(Bashô)

Tenho dois olhos, um nariz e uma boca, duas orelhas, cabelos pretos, o queixo, as bochechas, a língua, as pálpebras; minha forma é circular, mas o círculo não é perfeito; tenho algumas pintas e uma verruga sob o olho direito; muitas rugas nas laterais dos olhos e da boca, mas a testa lisa; as sobrancelhas são finas e compridas, cobrindo a extensão dos olhos; eles são amendoados e azuis, mas com um tom esverdeado sob a luz; no momento eles estão caídos, assim como os cantos da boca; uso óculos de armação fina e preta, o que me rejuvenesce um pouco; as mandíbulas são salientes, por causa da herança italiana; sei que já fui bonita, mas agora não mais e acho isso bonito também; o triângulo dentro do círculo é uma figura geométrica sagrada e é isso o que sou; nada pode me descrever verdadeiramente, porque nada, nem o melhor escrito, a melhor pintura ou escultura, a fotografia mais fiel, nada poderá descrever o que é me conhecer e conhecer a mim junto ao corpo, meus cheiros e movimentos mais lentos ou então febris, dividir o ar que eu respiro e os vazios que se formam entre mim e os outros; como dizer os meus olhos entreabertos, querendo dizer "nunca viu, não?" ou então fechados com força, indicando um sonho ruim? sou como um deus indizível, cuja presença só acontece pela presença e ela mesma é sempre outra. ontem, por exemplo, meu companheiro descobriu uma nova pinta em meu lóbulo direito e ainda de manhã percebi que os cremes têm surtido efeito, porque as bochechas estão mais viçosas; o que acontece comigo durante o sono ninguém sabe, nem mesmo o eu que mora em mim, mas a cada manhã acordo diferente e, dependendo da luz, posso ficar irreconhecível; nunca me reconheci em nenhuma foto de documento e é como se ali se descobrisse uma pessoa que eu não sabia que sou; e também já me vi muito mais bonita, por causa de maquiagem e de um bom ângulo fotográfico; mas qual é a verdadeira, a verdadeira mesmo, isso não dá pra saber; sei criar tantas expressões quanto eu queira, sei pedir, ameaçar, assustar, implorar, acarinhar, acalmar, enraivecer, odiar, ironizar, pedir pra parar, alegrar, espionar, sei amar e chantagear ao mesmo tempo, sei rir e me lamentar de uma vez só e quem me conhece sabe ver em mim o que nem eu mesma sei que estou mostrando; quanto mais envelheço, menos e mais me reconheço, lembrando de como eu era, saudosa dos olhos mais redondos e da pele mais elástica mas interessada nessa nova velha, mais séria, tranquila e enrugada; sei, assim, o quase infinito.


comigo, no ônibus, viajam as tantas outras faces dele, cada uma como eu invisível, onisciente e indizível.

mas onipotente não, porque a mim isso não interessa e a quem isso interessa não acredito que seja, como a minha, uma face de deus.

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