Descrição de chapéu
Carlos Benedito Martins e Maria Claudia Coelho

Goffman, nascido há 100 anos, usou teatro para explicar relações sociais

Sociólogo mais influente dos EUA no século 20 destacou pequenas regras cerimoniais que sustentam relações face a face

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Carlos Benedito Martins

Professor titular do Departamento de Sociologia da UnB (Universidade de Brasília)

Maria Claudia Coelho

Professora titular do Instituto de Ciências Sociais da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

[RESUMO] Nascido há cem anos, Erving Goffman, nome mais influente da sociologia dos EUA no século 20, desafiou teorias hegemônicas e desbravou caminhos ao analisar os processos de interação de indivíduos quando estão frente a frente, tendo como referência a metáfora teatral.

Não deixa de constituir um paradoxo que um dos pensadores mais influentes da sociologia norte-americana do século 20 seja de origem canadense. Erving Goffman (1922-1982) nasceu na pequena cidade de Manville, estado de Alberta, no interior de uma família de judeus imigrantes da Ucrânia.

Curiosamente, sua formação acadêmica inicial não foi em sociologia; após concluir o ensino médio, em 1939, dirigiu-se à Universidade de Manitoba para estudar química, mas não terminou o curso.

O sociólogo Erving Goffman em foto oficial de seu mandato como presidente da ASA (Associação Americana de Sociologia) - Divulgação

Trabalhou por um curto período no National Film Board, em Ottawa, e nesse período travou amizade com o futuro sociólogo Dennis Wrong, que o incentivou a dedicar-se à sociologia.

Em 1944, iniciou seus estudos na disciplina na Universidade de Toronto, ingressando no ano seguinte no prestigioso Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago, onde trabalhavam Herbert Blumer, Everett Hughes, Louis Wirth, Lloyd Warner, entre outros.

Apesar das diferenças teóricas de seus integrantes, esse grupo encontrava-se em oposição ao mainstream da sociologia americana, representada pela escola estrutural-funcional, de figuras como Talcott Parsons e Robert Merton.

Goffman se tornou um personagem proeminente em um círculo de jovens estudantes treinados no ambiente intelectual de Chicago, que viria a ocupar uma posição de destaque no contexto da sociologia norte-americana. Entre seus companheiros estavam Howard Becker, Ralph Turner, Joseph Gusfield, Helena Lopata e Kurt Lang.

Esses futuros pesquisadores adotaram uma postura cética com relação à vertente estrutural-funcional e sua ambição de desenvolver uma teoria geral sobre a sociedade. Também procuraram se distanciar da utilização de procedimentos quantitativos em suas pesquisas. Com seus trabalhos, contribuíram para o florescimento de uma sociologia interpretativa, conduzida por investigações calcadas em minuciosas observações empíricas.

Ao longo de sua trajetória intelectual, Goffman transformou de forma criativa ideias de autores como Émile Durkheim, Radcliffe-Brown, Georg Simmel, Charles Cooley, George Herbert Mead, Alfred Schutz, Kenneth Burke, Herbert Blumer e Everett Hughes, utilizando-os como referências tópicas para o desenvolvimento de seus próprios argumentos —e não se deixou enquadrar em nenhuma tradição sociológica existente.

Sua sociologia foi construída em um veemente exercício de pensar com liberdade suas preocupações intelectuais e, apesar de ter sido associado à abordagem interacionista, na qual foi formado, não aceitou a filiação a essa abordagem.

Em uma das raras entrevistas que concedeu, marcou sua posição de distanciamento com relação ao interacionismo simbólico, à etnometodologia e ao construtivismo social.

Vários de seus trabalhos tornaram-se obras clássicas na sociologia contemporânea, tais como "A Representação do Eu na Vida Cotidiana", considerado pela Associação Internacional de Sociologia um dos dez livros mais importantes produzidos na disciplina no século 20, bem como "Manicômios, Prisões e Conventos", "Relations in Public" e "Frame Analysis".

Embora tenha tratado de vários temas, como a vida opressiva nas instituições totais, teorias dos jogos, estigma, construção social do eu, comportamentos dos indivíduos em espaços públicos, análise da conversa, entre outros, Goffman privilegiou como ponto central de seus trabalhos a análise da interação entre os atores sociais quando estão frente a frente e enfatizou que as interações face a face constituíam um objeto específico a ser desbravado pela sociologia.

Tal como Talcott Parsons, ele estava preocupado em analisar uma questão clássica: o problema hobbesiano da ordem social.

Todavia, ao contrário de Parsons, que formulou uma ambiciosa teoria geral para compreender as bases institucionais que possibilitam a ordem social, Goffman estava interessado em apreender os pequenos mecanismos que sustentam os processos da interação no momento em que os indivíduos se encontram em presença física imediata, utilizando para tanto a metáfora teatral.

Para ele, quando alguém projeta uma imagem de si em um encontro "in situ", de certa forma exerce uma exigência moral sobre os participantes da interação, pois espera que seja tratado de acordo com a categoria social à qual julga pertencer.

Ao mesmo tempo, os demais participantes estão constantemente interpretando a conduta do ator que realiza uma determinada performance social, mesmo que não tenham inteira consciência desse expediente.

Também simultaneamente, o indivíduo que está projetando uma determinada impressão de si mesmo procura aceitar, ainda que de forma insincera, a representação conduzida pelos outros.

O processo interacional repousa em um trabalho de produção de um consenso operacional construído conjuntamente pelos participantes nele envolvidos —por meio de sensibilidade diplomática, tato humano e saber fazer—, no qual tendem a apoiar a imagem e o valor social que um indivíduo projetou para si durante a relação face a face e, ao mesmo tempo, buscam evitar fatos que possam contradizer ou comprometer o "modus vivendi" que está sendo construído.

À medida que a sustentação do processo interacional deriva de um empreendimento coletivo, a unidade apropriada de análise não repousa no indivíduo isolado e no seu aparato psicológico, mas nas relações entre as diferentes pessoas presentes fisicamente.

Nessa perspectiva, Goffman reivindica uma sociologia das ocasiões, capaz de analisar a complexidade que permeia as relações face a face, uma vez que seu trabalho busca compreender não o homem em seus momentos, mas os momentos e os homens que dele participam em uma determinada circunstância.

Seu trabalho destacou a importância de pequenas regras cerimoniais que permitem a manutenção do vínculo social em uma relação face a face, pois elas possibilitam expressar o valor social que um indivíduo atribui aos outros e a si mesmo.

Goffman ressaltou como indícios dessas pequenas regras cerimoniais a importância das saudações durante os encontros, a prática de convites, elogios, pedidos de desculpas, demonstração de sentimento de estima e realização de pequenas bondades de uns em relação aos outros.

Ao mesmo tempo que enfatizou o caráter ordenado e recorrente das interações face a face, sua análise evidenciou a fragilidade, a precariedade e a instabilidade existentes e o enorme potencial de ruptura que as circunda e ameaça constantemente.

O momento de crise na interação surge quando ocorrem pequenos eventos involuntários dos indivíduos, como um "faux pas" ou uma gafe, que podem solapar a impressão que alguém procurava transmitir e minar os pressupostos que sustentavam determinada situação.

Em tais ocasiões, o pequeno sistema social que abrigava a interação entra em colapso, criando uma situação de anomia e causando desconforto entre os participantes. A obra de Goffman destacou a presença das emoções na vida social, notadamente durante o processo de ruptura interacional, quando engendra sentimentos de ansiedade, medo, hostilidade, vergonha e humilhação.

Entre esses sentimentos que acompanham o colapso do minúsculo sistema social, Goffman privilegiou o embaraço, que expressa a sensação de desnorteamento entre os indivíduos em uma determinada situação.

Para ele, o sentimento de embaraço possui relevância pois liga a conduta dos indivíduos no dia a dia aos nervos da organização social, exercendo uma atitude de coação nos encontros, de modo a evitar possíveis ações que possam desacreditar socialmente os indivíduos que participam de uma trama interacional.

O sentimento de embaraço possui também um significado moral, já que os indivíduos tendem a estar mais focados em evitar e minimizar possíveis riscos durante o processo interacional, desenvolvendo estratégias de autopromoção e autodefesa, do que em maximizar ganhos sociais.

Essa leitura pode nos servir como guia para comentar um aspecto que atravessa toda a obra de Goffman: a metáfora do "theatrum mundi", a vida como um teatro. Em seu livro clássico já citado, "A Representação do Eu na Vida Cotidiana", Goffman faz uma descrição do "modus operandi" da vida em sociedade repleta de imagens retiradas das artes cênicas.

Para ele, os indivíduos são atores que representam papéis, havendo em suas encenações cotidianas regiões de fachada e regiões de bastidores.

Há também plateias, e os indivíduos criam personagens específicos para cada uma delas, o que leva o sociólogo a formular os conceitos de "segregação de plateias" e "segregação de papéis" para dar conta da multiplicidade de personagens que o indivíduo comum encena ao longo dos vários "palcos" pelos quais transita.

Aqui, a análise do embaraço se encontra com a metáfora teatral, uma vez que uma razão frequente para esse sentimento é justamente o encontro inadvertido entre "plateias" distintas, que flagram assim um mesmo indivíduo representando papéis diferentes e nem sempre congruentes.

A metáfora teatral nos permite ainda adentrar um outro aspecto da obra de Goffman: o problema da consciência que o ator social tem da encenação que faz para projetar uma imagem de si. O autor distingue dois tipos de relação do ator com sua encenação: "cinismo" e "sinceridade".

Ao contrário do que os termos sugerem, a distinção não tem um cunho moral, mas revela o tipo de consciência do indivíduo em relação às estratégias para convencer seu "público" da veracidade de sua representação.

O ator "sincero" seria aquele inteiramente mergulhado no papel que representa, ou seja, tão convicto da imagem que transmite que nem sequer se dá conta de estar acionando estratégias de representação.

Já o ator "cínico" guarda uma certa distância do papel, ou seja, está consciente de que tenta projetar uma determinada imagem de si e escolhe as estratégias que lhe parecem mais eficazes. A importância teórica dessa distinção reside em permitir trabalhar a consciência de si do indivíduo como um problema de teoria social.

A natureza filigranada das observações de Goffman sobre o cotidiano pode ser encontrada também em suas últimas obras, quando sua atenção se volta para a análise da conversa. Nessa última etapa de sua trajetória intelectual, ele esboça um sofisticado arcabouço conceitual para explicar a insuficiência dos conceitos de "falante" e "ouvinte" e para dar conta do que acontece em uma simples roda de conversa.

Para ele, aquele que "fala" pode não ser mais do que uma "caixa vocal", um "emissor de sons", que diz algo em nome de outro, como no caso, por exemplo, dos porta-vozes. Já aquele que "escuta" pode fazê-lo de variadas formas, e aqui a análise goffmaniana se torna muito requintada. Dois são os critérios que ele utiliza para esmiuçar as várias formas de participação em uma conversa: "ratificação" e "endereçamento".

A ratificação diz respeito ao reconhecimento, por parte daquele que fala, de que o ouvinte é um participante da conversa, ao contrário de outros "ouvintes", como aqueles cuja audição alcança o que é dito em um elevador lotado, por exemplo, mas sem que isso lhes dê o direito de retrucar ou intervir.

Já o endereçamento define a quem o falante se dirige, uma vez que é possível reconhecer a participação de ouvintes sem que lhes estejamos dirigindo uma elocução —como no caso de um professor que faz uma pergunta a um aluno específico em uma sala de aula lotada.

Ratificação e endereçamento podem ser estabelecidos por meio de estratégias de natureza explícita, como, por exemplo, o uso de vocativos, ou de maneira bem mais sutil, como o direcionamento do olhar.

É assim, por exemplo, que, em uma festa, se pode excluir alguém de uma roda de conversa negando-lhe sistematicamente o endereçamento do olhar —e qualquer um minimamente versado nos códigos "nativos" da polidez sabe que ser alvo do olhar de quem fala equivale a ser admitido em uma roda de conversa, da mesma maneira como ser visual e sistematicamente ignorado é uma situação insustentável.

De observações sutis e minimalistas como essas é feita a obra de Erving Goffman, que entre outros assuntos tratou ainda da conversa do sujeito consigo mesmo, elaborando perguntas tais como "com quem estamos falando ao dizer ‘ui’ ao dar uma topada" ou questionando a natureza da comunicação existente quando alguém emite em voz alta uma frase dirigida a um interlocutor imaginário com quem conversa mentalmente.

Goffman discute a natureza interdita do ato de conversar consigo mesmo e comenta, em uma passagem repleta de ironia, de resto tão comum em suas obras: "Na verdade, a má conduta não está tão ligada a fazer isso em público, mas a continuar a fazer isso em público. Temos todos, ao que parece, permissão para ser flagrados parando de falar com nós mesmos de vez em quando".

Talvez ninguém tenha formulado tão bem a natureza curiosa e inusitada do olhar de Erving Goffman sobre a vida cotidiana quanto o sociólogo Anthony Giddens. Insistindo que, apesar dos esforços do próprio Goffman em diminuir a relevância de sua obra, havia em seus escritos uma teoria social sistemática, Giddens compara Goffman a um de seus mais ilustres antepassados, Georg Simmel, afirmando terem, ambos, "mentes brilhantes e irrequietas".

É esse brilho inquieto, essa curiosidade indisciplinada que celebra agora seu centenário de nascimento e mantêm-se vivo em uma obra que continua influenciando sociologia, antropologia, psicologia, linguística, comunicação, entre outras ciências sociais.

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