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Vladimir Safatle

Safatle: Críticas a livro comprovam que esquerda morreu

Se resta à esquerda apenas gerir crises do capitalismo, é melhor chorar, rebate escritor

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Vladimir Safatle

Professor titular de filosofia da FFLCH-USP

[RESUMO] Vladimir Safatle, escritor e professor de filosofia da USP, responde a críticas após afirmar em entrevista à Folha que a esquerda morreu. No texto a seguir, ele reafirma que a esquerda entrou em colapso no mundo todo, abrindo mão de seu papel transformador para ser gestora de um "centro democrático" que não existe mais, enquanto a extrema direita é uma força organizada que mobiliza o cidadão comum para rupturas na sociedade.

Há algumas semanas, a Folha publicou uma entrevista comigo a respeito de meu novo livro, "Alfabeto das Colisões" (Ubu, 2024), na qual eu defendia, entre outras, a tese da morte da esquerda e da consolidação da extrema direita como única força política atualmente, pois é ela quem define a agenda dos debates, prendendo o campo progressista em uma dinâmica reativa e defensiva.

Pouco depois, a Folha publicou três artigos críticos, um de Celso Rocha de Barros, outro de Fábio Palácio e um terceiro de José Luiz Portella. Agradeço pela interlocução, principalmente no caso dos dois primeiros, pois trazem questões relevantes. Gostaria de aproveitar esta ocasião para tentar explicar melhor o que tenho em mente.

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Manifestação de grupos e partidos de esquerda contra o então presidente Jair Bolsonaro, na av. Paulista, em São Paulo, em 2021 - Mathilde Missioneiro/Folhapress

Eu havia enunciado a tese da morte da esquerda pela primeira vez há quatro anos. Ela seguia uma análise que apresentei de forma mais sistemática em um livro de 2017 sobre os impasses da política brasileira, "Só Mais um Esforço", que foi posteriormente republicado em versão atualizada em 2022.

Na ocasião, o diagnóstico referia-se principalmente ao esgotamento do ciclo histórico da esquerda brasileira devido às contradições internas do lulismo, assim como a nossa nova posição de gestora preferencial do sistema de pactos e paralisias da Nova República.

Essas contradições diziam respeito a um modelo de desenvolvimento socioeconômico que procurava, a sua maneira, capitalizar os setores mais pobres da sociedade preservando os ganhos da elite rentista nacional e a dinâmica monopolista da economia brasileira.

No fundo, isso acabou por mostrar involuntariamente os limites de qualquer projeto de racionalização do capitalismo local. Limites esses que se referiam às contradições internas do modelo, sua incapacidade de realizar o que ele próprio prometia.

Mas com o tempo ficou cada vez mais evidente para mim que não se tratava de um diagnóstico sobre a esquerda local. Esse era apenas um caso, talvez o mais dramático, de um fenômeno global de colapso da esquerda mundial e de sua capacidade de transformação estrutural. De onde se seguiu então a defesa de uma morte da esquerda.

Desde a crise de 2008, a política mundial foi para os extremos. Os acordos de classe que produziram a democracia liberal, tal como ela apareceu após a Segunda Grande Guerra, com seus esboços de macro-estruturas de proteção social, não existem mais. As respostas globais à crise socioeconômica de 2008 apenas mostraram o aprofundamento de dinâmicas de concentração de renda e acumulação primitiva.

Nesse processo, vimos paulatinamente populações procurarem saídas de ruptura institucional como forma de reposta ao aumento da precariedade e da vulnerabilidade social. Uma análise honesta de situações concretas globais mostra que a política deixou de ser feita a partir da "conquista do centro".

O acirramento dos conflitos sociais devido ao aumento real da insegurança econômica foi o verdadeiro responsável por isso, e não alguma forma de "regressão" populista que cresceria a partir de um pretenso obscurantismo das massas, com suas explosões de ressentimento e ódio.

Esse inflacionamento do discurso psicológico na análise de fenômenos políticos apenas demonstra incapacidade crônica de setores do mundo acadêmico em encarar de frente impasses socioeconômicos reais.

Por isso, seria o caso de dizer que não há nem haverá mais centro. Atualmente, ou ele se move para a extrema direita, como vemos, por exemplo, na França de Macron, um laboratório mundial privilegiado da degradação do discurso centrista, ou quem fica no centro funciona apenas como uma barragem precária contra o retorno dos extremos, como estamos a ver nos EUA.

Nesse contexto, a pior coisa que pode acontecer é só existir um extremo ideologicamente organizado. No entanto, é isso que ocorre atualmente, e esse extremo é a extrema direita. Para existir, a esquerda precisaria fazer um movimento similar, o que ela se recusa por acreditar na viabilidade de ser gestora de um "centro democrático" simplesmente inexistente.

Insistiria nesse ponto diante das colocações de Fábio Palácio a respeito das frentes amplas contra a extrema direita. Em todo lugar onde elas foram implementadas, não duraram ou levaram, ao final, a um paradoxal fortalecimento do que combatiam. Nessa situação, a extrema direita joga em um jogo perfeito, onde mobiliza o discurso do homem simples contra a casta política.

Ao final, por mais que nossas vitórias sejam pontuais, a extrema direita retorna. Exemplo pedagógico aqui foi fornecido pela Itália, com suas frentes amplas contra Berlusconi, depois contra Salvini e, por fim, sem força para impedir a ascensão de um governo ligado ao fascismo histórico e comandado por Giorgia Meloni.

Crises ingerenciáveis

Por isso, acho também bastante sintomáticas as posições defendidas por Celso Rocha de Barros em seu artigo. Primeiro, seria o caso de esclarecer que não se trata de reeditar, pela enésima vez, o debate sobre reforma e revolução. Já escrevi várias vezes sobre a inanidade da dicotomia.

A questão é outra e diz respeito ao desaparecimento de um "pensamento longo", do comprometimento real com um horizonte de expectativas (como lembra bem Paulo Arantes) que possa forçar continuamente o campo do que aparece como possível.

Vivemos em um mundo no qual a esquerda nos propõe a luta diária em defesa de conquistas de décadas que quase desapareceram, enquanto a extrema direita, como vimos na Argentina, começa o governo apresentando 600 medidas econômicas para mudar estruturalmente o estado e a economia.

Ou seja, enquanto jogamos o jogo da conservação das pretensas conquistas de décadas, a extrema direita aparece como força revolucionária. Eu realmente acho prudente perguntar onde isso vai terminar.

De toda forma, o artigo de Celso Barros tem a virtude de colocar efetivamente o problema onde ele está. Creio que tal retração é fruto da crença de devermos aprender a gerir as crises do capitalismo, pois não haveria nenhum modelo de socialismo minimamente pronto para ser implementado sem risco de derivas autoritárias. Da minha parte, eu não teria formulação melhor para descrever o que entendo por morte da esquerda.

Afirmo isso porque, se sobrou à esquerda gerir as crises do capitalismo, a única coisa que posso dizer é: melhor estocar lenços de papel, pois só nos restará choro e ranger de dentes.

A posição de Celso Barros pode parecer realista, mas é a mais irrealista que consigo imaginar. Uma perspectiva de esquerda mais consequente consistiria em assumir que essas crises são simplesmente ingerenciáveis. A esquerda nunca se viu como gestora de crise do capitalismo por saber que a crise é a forma normal de governo e de acumulação do capitalismo.

Como se não bastasse, estamos falando de uma crise de outra natureza. Nunca as crises do capitalismo se demonstraram tão claramente imbrincadas em um sistema de crises conexas: crise ecológica, política, social, econômica, demográfica, psíquica e epistêmica.

Há mais de 50 anos sabíamos que algo dessa natureza iria ocorrer. Só para lembrar um dado, no começo dos anos 1970, um grupo de economistas organizados no Clube de Roma publicou um relatório intitulado "Os Limites do Crescimento", no qual alertava que a dinâmica de crescimento exponencial do capitalismo levaria ao colapso e à instabilidade de todo o sistema.

Celso Furtado, em um de seus trabalhos absolutamente geniais, "O Mito do Desenvolvimento Econômico", tirou as consequências dessa situação: a ideia de sociedades periféricas participarem do mesmo grau de desenvolvimento de sociedades do capitalismo central é um mito. O modelo não pode ser exportado em escala global sem inviabilizar todo o sistema. Lembro-me desse debate no livro que lancei agora.

Ou seja, essa crise conexa que então se anunciava e que agora se tornou realidade não pode ser resolvida nos marcos do próprio sistema que a gerou. Até porque esse sistema não mudará seu princípio de desenvolvimento e progresso, ele não mudará seu regime de acumulação e de produção de valor.

Antes, ele vai aprofundar essa mesma lógica suicida, levando ao extremo suas duas maiores ilusões: a crença no caráter inesgotável de extração de valor da terra e do trabalho.

Vimos isso com a transformação do Brasil em fronteira global fundamental para a devastação ecológica e para a consequente produção de valor a partir da terra. E vimos o mesmo processo através da brutalização das condições de trabalho e do colapso psíquico de nossa população, com suas taxas recordes mundiais de depressão (13,5%) e de transtornos de ansiedade (9,7%).

Nesse sentido, usar a ausência de modelos de socialismo minimamente prontos para justificar nossa inação me parece uma proposição desprovida de sentido. Modelo não é algo que cai do céu ou dá em árvore. Ele é fruto de processos concretos de governo e de generalização de lutas.

Também não havia modelo de governo algum minimamente pronto no começo do século 20, e isso não impediu ninguém de avançar. Nossa tarefa seria criar o que ainda não existe, usando nossa imaginação política para identificar experiências onde elas estão e trazê-las para a constituição de um modelo.

Em várias partes do mundo, tentam-se saídas (construção de processos de democracia direta, dinâmicas de autogestão e ocupação de fábricas, lutas contra modelos extrativistas), mas a classe intelectual brasileira acredita ser melhor não forçar nossos governos.

Na verdade, diria que estamos tentando gerenciar as crises do capitalismo desde o começo do ciclo dos governos de esquerda no Brasil. Faço minha as teses de Fabio Barbosa dos Santos e Daniel Feldmann para dizer que o máximo que se consegue, nesse caso, é acelerá-las.

Os resultados limitados, feitos para serem limitados, aumentam em médio prazo a insegurança de boa parte das classes populares, pois as levam a acreditar momentaneamente em uma promessa de ascensão social que se mostrará frágil. A extrema direita se alimenta dessa frustração real, e ganharíamos muito mais se analisássemos sua força a partir das frustrações reais produzidas por nossos governos.

Dois esclarecimentos

Gostaria de terminar esclarecendo dois pontos levantados em várias ocasiões desse debate. Eu falara que a morte da esquerda levou à ocupação de seu lugar por uma "constelação de progressismos". Não quero dizer com isso que questões de gênero e de raça se colocaram no lugar de questões de classe, como muitas vezes se defende atualmente. Quem ler "Alfabeto das Colisões", principalmente o verbete "Identidade", verá que essa, em definitivo, não é minha posição.

O que penso é algo diferente. Os dois eixos fundamentais de definição da esquerda são a defesa da igualdade radical e da soberania popular.

Igualdade radical significa ausência de hierarquias e sujeição nos três eixos constitutivos de toda forma de vida —desejo, linguagem e trabalho. Uma sociedade radicalmente igualitária é aquela que abole hierarquias e sujeições no campo da circulação dos corpos desejantes, que permite a multiplicação de linguagens e epistemes e que elimina as dinâmicas de hierarquia e espoliação no trabalho.

Esses três campos funcionam como aquelas figuras de nó borromeano, ou seja, três círculos juntos de forma tal que, a tirar qualquer um deles, os outros dois se separam. Uso essa imagem para dizer que, quando um desses três campos não é igualmente objeto de lutas pela igualdade, os outros dois perdem a força. Não há campo mais importante, ou determinação de última instância, como se costumava dizer. Há uma profunda interdependência entre os três.

No entanto, é claro que a igualdade radical no campo do trabalho desapareceu do debate atual, não é um objeto agonístico nessa constelação de progressismos. Basta pensar há quanto tempo não ouvimos mais expressões como "autogestão da classe trabalhadora", "ocupação de fábricas", entre outras.

O mesmo poderíamos dizer sobre a noção de soberania popular, que não está ligada a melhor "representatividade", mas é uma destituição soberana da representação em prol da constituição do poder popular como força direta de decisão e deliberação. Sei que nada disso aparece por pensamento mágico ou por decreto, mas seria minimamente honesto reconhecer que, a parte grupos aguerridos e minoritários, esse horizonte sumiu da constelação hegemônica da esquerda.

Por fim, gostaria de responder algo sobre a eterna acusação de desejar alguma forma insidiosa de autoritarismo. Para os que dizem isso, se você entende que uma função maior do pensamento crítico atual é fornecer a crítica sistemática do capitalismo, mostrando como suas dinâmicas de crescimento exponencial são indissociáveis de catástrofes (como a crise ecológica que vivenciamos atualmente), que seus processos de acumulação e concentração são indissociáveis da produção de sofrimento, instabilidade e espoliação, você só pode estar a defender alguma forma de projeto autoritário com direito a partido único e, como afirmou José Luiz Portella, "sovietes" de intelectuais.

Para os que pensam assim, deve haver alguma ligação mágica e indestrutível entre capitalismo e liberdade, pois insistem em que a crítica ao capitalismo só pode ser um convite ao autoritarismo.

É triste que o debate tenha chegado a esse nível de fantasmagoria. Eu poderia lembrar como a história do século 20 foi atravessada pela reflexão crítica profunda, por parte da própria esquerda, dos descaminhos do socialismo real, de seus impasses e de suas criações perdidas. Qualquer pessoa interessada poderá encontrar vasta bibliografia nesse sentido.

Mas é evidente que alguns tentam nos impor a ideia de uma espécie de escolha forçada: ou capitalismo ou servidão; ou a defesa da democracia liberal como temos hoje ou o autoritarismo.

Eu tenderia a pensar que esse tipo de raciocínio simplista binário voltou atualmente por medo. É como dizer: você pode não estar gostando do presente, mas nem tente sair daqui porque será muito pior. Definitivamente, podemos fazer muito mais que isso.

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