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Sheila Leirner

Soulages, morto aos 102, transformou telas negras em refletores de luz e cores

Último grande mestre francês da pintura foi quem mais usou o pigmento negro em toda a história

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Pierre Soulages no Centro Pompidou, em Paris Fred Dufour - 13.out.09/AFP

Sheila Leirner

Crítica de arte e escritora, foi curadora-geral das 18ª e 19ª Bienais de São Paulo. Autora de "Como Matei Minha Mãe" (ed. Iluminuras)

[RESUMO]Pierre Soulages, morto aos 102 anos em fim de outubro, construiu sua obra no contraste entre o pigmento negro e o fundo claro, fazendo da superfície da tela um refletor de luz, o que inscreveu seu trabalho em plena e autêntica modernidade.

Aos 102 anos, morreu em 26 de outubro Pierre Soulages, o último grande mestre francês da pintura do nosso século, artista que ocupava nas artes plásticas francesas o mesmo lugar de Matisse nos anos 1950.

Em 1996, a França assistiu a uma rara consagração de artista vivo. A grande retrospectiva de Soulages no Museu de Arte Moderna de Paris, visitada por mais de 100 mil pessoas, foi inaugurada pelo então presidente Jacques Chirac, pelo prefeito da capital francesa e pelos três últimos ministros da Cultura.

Pierre Soulages no Centro Pompidou, em Paris - Fred Dufour - 13.out.09/AFP

Naquele mesmo ano, Soulages, figura imponente de cabelos brancos nascida em Rodez, traços e sotaque marcados, esteve no Brasil para a mostra "Noir Lumière" (negro luz), apresentada no Masp.

Fomos em grupo para, em seguida, viajar pelo país junto com Colette, sua mulher, e a artista suíça Pierrette Bloch (1928-2017). No Rio, levados por Marcus Lontra, chegamos a visitar uma obra sua, pertencente ao acervo do MAM, oferecida aos brasileiros pelo presidente francês Giscard d’Estaing. Outro trabalho de Pierre Soulages encontra-se na coleção do MAC, em São Paulo.

A exposição no Masp era uma escolha precisa de quase uma centena de obras, de 1947 até as mais recentes, revelada por meio de uma cronologia às avessas, que colocava em evidência o seu aspecto radical: pintar "no" negro, assim como Matisse cortava "na" cor. O que inscreveu seu trabalho em plena e autêntica modernidade.

"Negro Luz", título nascido de uma necessidade poética, sintetizava essa retrospectiva de cortar a respiração. As telas, em sua maioria gigantes, haviam sido escolhidas a dedo entre cerca de 2.000 pinturas e mais centenas de trabalhos sobre papel, que compunham mais de meio século de rigor e lúcida reflexão pictórica.

O percurso provocava a sensação de flutuar em um espaço permeado de planetas recobertos de sombra e resplandescência. Não havia nada além do branco e do negro e, ao mesmo tempo, nada que encerrasse tantas cores de uma só vez.

A pintura do mestre é a reificação do objeto-pintura em sua pura materialidade (os títulos se resumem à técnica, dimensão e data) e, ao mesmo tempo, trata da sacralidade desse objeto em sua filiação espiritual com o artista. Cada planeta é um mundo ambivalente, de realidade e abstração, que faz nascer outro planeta e todos eles, pelo que são e pelo que revelam, dialogam entre si.

Soulages foi o artista que mais utilizou o pigmento negro em toda a história da pintura. Pode-se entender a problemática dessa cor em sua obra também tendo em vista a conjuntura teórica da arte contemporânea e a especificidade do pintor face a artistas como Malevich, Rodchenko e Ad Reinhardt. Pierre Soulages, ao contrário deles, utilizava o negro para extrair-lhe a luz, que é a sua verdadeira, extraordinária e deslumbrante matéria.

"Ah, o negro e o branco, você segura a pintura pelos chifres!" Com essa frase dita em 1942, o escritor Joseph Delteil declarou sua admiração pelo artista, que enfrentava a pintura no que ela tem de mais ameaçador. A entrada do mestre nessa arte se inscrevia, de fato, sob o signo de uma tripla ruptura: com a sua infância, com o ensinamento acadêmico e com a situação social que se oferecia a ele como proteção contra os "chifres do touro".

Pierre Soulages nasceu em 24 de dezembro de 1919. Tinha 5 anos quando seu pai, um condutor de carruagens, morreu. Foi criado por sua mãe e sua irmã, em uma rua que concentrava tudo o que a sociedade possui de mais sinistro: Palácio da Justiça, banco, hospital, prisão, caserna, asilo de loucos, polícia. Nada a princípio que o predispusesse a ser artista, senão o sentimento de rejeição, cujos traços encontramos desde os primeiros tempos de sua educação artística.

Soulages começou a pintar após a Segunda Guerra. A recusa da descrição tornou-se o centro desse início e provocou algumas decisões fundamentais, como a escolha de uma gama restrita de instrumentos ou de materiais específicos em um momento em que a paisagem artística francesa estava dominada pelas cores vivas da Escola de Paris.

De 1947 a 1956, realizou pinturas com resina de nozes e óleo, baseadas no contraste do pigmento escuro e do fundo claro. O tempo tornou-se fundamental em relação ao espaço e ficou clara a sua vontade de realizar obras que pudessem ser vistas "de uma só vez", longe de todo discurso ou anedota.

Em seguida, até o fim dos anos 1960, com os grandes formatos, recobriu as cores de negro, para fazê-las reaparecer, sob a matéria raspada em segmentos. Após 1979, começou a pintar com o único pigmento negro que transforma a superfície da tela em um refletor de luz.

Da mesma forma como nos vitrais da abadia de Conques —nos quais o artista capta as cores da luz por meio de vidros opalescentes pesquisados durante 11 anos—, ele não teve outro recurso senão um único pigmento acromático. Ali, ele nos oferece uma visão especular, na qual adivinhamos e criamos a cor por meio de reflexos que não são parasitas, como nas telas habituais, mas constituem parte essencial da obra.

Assim, em 17 anos, Soulages realizou praticamente 400 pinturas "monopigmentárias". Nessas telas, ele propunha a reflexão, no sentido próprio, de uma questão fundamental e, portanto, inédita: como pintar o pintado?

A França está de luto, mas a arte também. O último dos grandes se foi.

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