Nesta véspera de Natal (24), ao completar o centenário de sua existência, o pintor e escultor francês Pierre Soulages é festejado também como o último mestre vivo da pintura do nosso século. Artista que ocupa agora o mesmo lugar de Matisse, nos anos 1950. Neste mês, é o museu do Louvre, em Paris, que lhe presta homenagem com uma exposição para a qual, com a sua força e amor pelo trabalho, terminou há pouco três novas telas.
Em 2009, o Centro Pompidou realizou a retrospectiva; em 2014, o então presidente François Hollande inaugurou em Rodez o museu que leva o seu nome. Mas, já em 1996, havia-se assistido em Paris a uma rara consagração: a exibição histórica no Museu de Arte Moderna da cidade, inaugurada pelo então presidente Jacques Chirac, o prefeito e os três últimos ministros da Cultura.
No mesmo ano, o mestre esteve no Brasil. O MAM do Rio possui um de seus trabalhos, oferecido pelo ex-presidente Valéry Giscard d'Estaing; o MAC, em São Paulo, também. A mostra Noir Lumière ("Negro Luz"), apresentada no Masp, colocava em evidência o aspecto radical que inscreve a sua obra em plena e autêntica modernidade: pintar "no" negro, assim como Matisse pintava e cortava "na" cor.
Todas as suas exposições fazem reter a respiração. Compõem-se de telas recobertas de sombra e resplandescência, em sua maioria gigantes, escolhidas entre milhares de pinturas e trabalhos sobre papel que formam quase um século de rigor e lúcida reflexão pictórica. Não há cores além do branco e negro e, ao mesmo tempo, nada que encerre tanto cromatismo de uma só vez. Um pouco como ocorre nos vitrais da abadia de Conques, ao sul da França, nos quais o artista capta os matizes da luz por meio de vidros opalescentes.
Trata-se da reificação do objeto-pintura em sua pura e transcendente materialidade. E, ao mesmo tempo, da sacralidade dele em seu liame espiritual com este artista que mais utilizou o pigmento negro em toda a história da pintura. A constante problemática da cor é interna à obra, mas também tem relação com a conjuntura teórica da arte contemporânea e a peculiaridade de Soulages face a artistas como Malevitch, Rodtchenko e Ad Reinhardt. Ao contrário deles, o pintor utiliza o negro para extrair a luz que passa a ser sublime "matéria" pictórica.
Entretanto, não são todos que reconhecem essa obra ímpar. Até mesmo na França existe ainda o "oceano de incultura" do qual Luc Ferry costuma falar, e no qual ele próprio mergulha. O filósofo francês, que acaba de fechar a temporada do ciclo Fronteiras do Pensamento em São Paulo, chegou a demolir a pintura de Soulages no jornal Le Figaro com argumentos e anedotas de botequim de quem jamais visitou um museu de arte e ignora as teorias e correntes estéticas da modernidade.
O conhecimento dos chamados "intelectuais franceses" em matéria de arte visuais não raro é bem inferior ao de literatura. Isto se deve, sem dúvida, à sua incompleta educação, da qual Ferry —hoje também palestrante em cruzeiros marítimos para milionários— foi ministro por algum tempo. Como escreveu um crítico na ocasião, "da ignorância à incompreensão e desta ao desprezo, a passagem é rápida."
Pierre Soulages, pelo contrário, aos 20 anos já estudava a pintura rupestre e os menires esculpidos. Fica o seu legado de gigante hoje centenário, obra cujo fio invisível, do ancestral ao contemporâneo, a torna renovada e atual. Longa vida, mestre!
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