Cidades podem reconstruir a natureza, afirma urbanista italiana

Paola Viganò defende que coexistência entre humanos e não humanos será o pilar da transição socioecológica

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Eduardo Sombini
Eduardo Sombini

Doutor em geografia pela Unicamp, é repórter da Ilustríssima

[RESUMO] Professora de design urbano sustenta, em entrevista à Folha, que o pensamento sobre a cidade deve incorporar as relações entre atores humanos e não humanos, como o solo, a água e a biodiversidade. O momento atual é crucial para moldar como viveremos no futuro, e profissionais da área devem propor soluções radicais para transformar as cidades em espaços de reconstrução da natureza, diz.

Paola Viganò, 60, tem pensado muito no solo das cidades ao longo da sua carreira —e também na água, na biodiversidade e em outros sujeitos não humanos.

Seguindo as trilhas abertas pelo urbanista Bernardo Secchi, com quem fundou em 1990 um premiado estúdio, Viganò defende que esses atores devem ser trazidos para a mesa de decisões do planejamento urbano.

Para ela, não é mais possível tratar o território como objeto, uma tela abstrata que pode ser rasgada por linhas desenhadas em um prancheta. "O território é o sujeito: tem uma identidade, uma morfologia, uma especificidade que o torna único", argumenta.

Paola Viganò com rio ao fundo
Retrato da arquiteta e urbanista Paola Viganò - Triennale Milano, no Facebook

Em entrevista à Folha por videochamada, de Milão, Viganò afirma que será preciso refletir sobre a utopia da coexistência —com as heranças do passado ou os riscos ambientais intensificados pelas mudanças climáticas do presente. "Quando você começa a olhar para as cidades desse jeito —com a ideia de coexistência entre humanos e entre humanos e não humanos—, você projeta de uma maneira diferente."

Em sua avaliação, os urbanistas devem passar a conceber as metrópoles como espaços de renaturalização, laboratórios de uma transição socioecológica de cima para baixo, com base em uma mudança cultural profunda. "A própria produção do espaço da cidade pode ser um dispositivo que gera e regenera a vida."

Viganò proferiu, na última segunda-feira (2), a conferência de abertura do 16º Seminário Internacional da Escola da Cidade, realizado em parceria com o Sesc São Paulo.

A sra. comparou recentemente a criação da cidade do futuro ao processo de escrita de “Em Busca do Tempo Perdido” por Marcel Proust. Pode explicar essa analogia? Um crítico literário francês, Gérard Genette, escreveu um ensaio muito bonito, "Proust Palimpsest".

Proust é o palimpsesto. Na opinião dele, dentro de "Em Busca do Tempo Perdido ", há todos os materiais —literários, claro—, temas, estilos, expressões. Tudo está lá dentro, como se a memória que Proust está processando da sua própria vida também fosse uma memória coletiva —de palavras, frases, tipos de romance, estilos literários.

Por isso, você tem a impressão de que não há originalidade de Proust. Ele estava usando palavras e frases já formadas. No entanto, temos um clássico incrível. Vamos continuar lendo o livro e, a cada vez, perceber quão única é essa obra monumental.

A metáfora do palimpsesto também é muito usada para as cidades. Acho que é muito fértil quando queremos entender a dinâmica que está moldando as cidades, com essa ideia de múltiplas camadas.

Para mim, a cidade do futuro é um pouco como "Em Busca do Tempo Perdido". Não será um objeto novo, não será algo que se faz do zero. Uma cidade não é algo que se possa projetar de forma autônoma. Talvez seja assim em alguns casos, mas a cidade é a soma, o processo, e a cidade do futuro —da transição ecológica—, será o resultado de uma nova interpretação da cidade existente, um monumental e único palimpsesto, como a obra de Proust.

Hoje, nós entendemos a cidade como uma acumulação enorme de energia —não só energia social, mas energia incorporada e recursos, muitas vezes de fontes não renováveis. É muito importante que comecemos a reutilizar e valorizar [o meio construído] em vez de imaginarmos demolir tudo.

É um processo de metamorfose em vez de substituição radical, minimizando o consumo de energia e maximizando a reutilização. O que existe nos lugares é a maior parte do que será a cidade do futuro.

A história do urbanismo no século 20 é uma história de grandes utopias. Quais utopias podem conduzir o pensamento e o desenho das cidades nas próximas décadas? Gosto muito de utopias e acho que, sem utopias, o trabalho que faço não tem sentido. O que é utopia? Acho que devemos voltar ao primeiro protótipo, de Thomas More, que começa com uma crítica muito severa à situação existente. Precisamos desse tipo de crítica aguçada.

Ilustração - Danilo Zamboni

Utopia não é algo que você tem que copiar, não é uma visão. Para mim, é um dispositivo fundamental para esclarecer que as coisas podem ser diferentes, mas isso não significa que inclua tudo o que você gostaria de ver realizado.

Uma utopia não é um projeto detalhado, é um mundo imaginado. Como esforço de imaginação, é muito útil para esclarecer a distância entre o que você está criticando e o que poderia ser totalmente diferente. Ao definir essa lacuna, você pode então procurar uma visão.

Pode dar um exemplo? Acabei de trabalhar em uma utopia para Veneza com estudantes de mestrado, que chamamos "Anfíbia". Veneza é uma metáfora planetária, como diz Piero Bevilacqua, uma espécie de referência quando se pensa em riscos ambientais e resiliência e também um lugar onde grandes infraestruturas estão sendo criadas para proteger a cidade.

Essas infraestruturas são extremamente caras e delicadas, e é muito provável que a elevação do nível do mar vá ultrapassar as proteções construídas, o que pode torná-las obsoletas em algumas décadas. A questão, então, é como salvar Veneza.

Ninguém tem uma solução, nem mesmo os cientistas. Por isso, é preciso aprender a viver de forma resiliente, o que significa aceitar o fenômeno e se organizar para lidar com o ritmo de idas e vindas da água. Essa é a verdadeira resiliência: a adaptação rítmica, a mudança que pode ser gerenciada.

Riscos relacionados à água são cada vez mais frequentes em muitos lugares do mundo, como no Sul e no Sudeste da Ásia. Esses países são anfíbios: grande parte da população aprendeu a conviver com a água e parou de resistir a ela. A resiliência está relacionada à coexistência e à tolerância.

Temos que refletir nos próximos anos sobre a utopia da coexistência, seja com o risco de inundação ou com o risco de uma pandemia.

Acho que a ideia de coexistência é a base para uma reflexão sobre a resiliência, que é um tipo de educação para viver com riscos e a multiplicidade de pessoas. Esse tipo de flexibilidade passa pela ideia de aceitar o outro, seja qual for o outro: a água, as pessoas, os animais. Temos realmente que rever a ideia de como nos manter juntos.

As estratégias de design urbano que a sra. desenvolve são muito generosas com espaços abertos e verdes. A experiência coletiva do confinamento durante a pandemia vai reforçar esse tipo de abordagem? Do meu lado, sim. Este período tem sido terrível, mas também aprendemos muito. Muitas pessoas me disseram que nunca foram tão livres como durante a pandemia, que podem ir para as montanhas e trabalhar de lá. Digamos que há um novo tipo de liberdade que nos mostrou que é possível desmontar muitas camadas da ordem contemporânea.

Acho que este período será crucial e que cada cidade, grande ou pequena, pode trabalhar nessa experimentação. A transição socioecológica não vai ser resultado de uma estratégia de cima para baixo. Precisamos de uma mudança cultural, em que cada um entenda seu engajamento, porque ela não será dirigida só pelo Estado e por organizações internacionais.

O conceito de porosidade urbana é um dos mais importantes do seu trabalho. Pode explicá-lo? Nós usamos esse termo com Bernardo Secchi, quando estávamos trabalhando com a Grande Paris. Achamos interessante percorrer a complexidade dessa grande metrópole com um conceito bastante simples.

É também uma metáfora, usada por Walter Benjamin para falar de Nápoles, tanto do ponto de vista social como geológico. A porosidade está relacionada à capacidade de infiltração de líquidos em rochas, dependendo do tipo delas. Daí, falamos de porosidade social, imaginando cidades onde a relação entre os diferentes grupos podem ser fluidas.

Se eu olhar para São Paulo, uma cidade que eu conheço superficialmente, vejo uma tremenda falta de porosidade, ainda que, suponho, exista um nível em que a porosidade e as trocas são possíveis, mas bastante limitadas. O que vemos cada vez mais nas cidades é uma redução da porosidade e fluxos e trocas muito difíceis entre partes da população.

A sra. também argumenta que a porosidade é um conceito-chave para promover uma nova relação entre humanos e não humanos em projetos urbanos. É possível imaginar a porosidade em termos de relações com o componente não humano, em que o fundamental é olhar todo o território como sujeito e habitado por sujeitos. Você precisa vê-los [não humanos] como sujeitos. Quando você faz isso, seu ponto de vista já mudou.

Ao redor de uma mesa onde as decisões são tomadas, digamos, os planejadores urbanos e territoriais também estão representando esses interesses, e esse território não pode mais ser visto como uma tela abstrata ou um objeto. Ele é o sujeito: tem uma identidade, uma morfologia, uma especificidade que o torna único. Por isso, cada projeto deve passar por essa busca de argumentos coerentes com o sujeito que você tem diante de si.

Considero a água um sujeito, por exemplo. A racionalidade da água na cidade tem que ser entendida, não só como um elemento funcional que você pode redefinir como quiser, mas como um sujeito que está trazendo seu próprio modo de pensar e seu próprio comportamento.

O solo, também o das cidades, é um sujeito. Estou trabalhando muito com solos urbanos, aqueles que normalmente são considerados os piores. Há inúmeros solos descobertos e impermeabilizados nas cidades, poluídos ou ainda férteis, e eles têm uma quantidade enorme de funções e desempenham serviços ecossistêmicos.

Quando você começa a olhar para as cidades desse jeito —e, de novo, volto para a ideia de coexistência entre humanos e entre humanos e não humanos—, você projeta de uma maneira diferente e entende como as mudanças que introduzimos devem ser muito refletidas.

Quero ser mais clara. Nós sempre imaginamos as cidades como engrenagens de desperdício —de solos, de água de boa qualidade, de materiais etc. Portanto, a cidade como um dispositivo que produz resíduos.

Acho que temos que transformar essa relação: uma cidade, com suas próprias engrenagens, que também promova restauração, regeneração, renaturalização. Dessa forma, a própria produção do espaço da cidade pode ser um dispositivo que gera e regenera a vida.

Quando você trabalha ao mesmo tempo com as duas dimensões [humanos e não humanos], você faz um projeto diferente.

Em cidades como São Paulo, parques e a questão ambiental não são normalmente uma prioridade de governos, sob o argumento de que existem necessidades mais urgentes, como infraestrutura e moradia. É possível conciliar essas demandas com uma abordagem ecológica? É possível se você concordar com o que eu disse antes: há claramente uma mudança cultural importante [a ser feita], porque nós não estamos realmente prontos para considerar os sujeitos não humanos.

Essa é uma mudança muito grande, e, provavelmente, vamos levar algum tempo para completá-la. De qualquer forma, acho que temos que conceber as cidades como uma oportunidade para reconstruir a natureza e não só destruí-la, como sempre aconteceu até hoje. É preciso reverter esse processo, também em São Paulo, conectando as questões de habitação e infraestrutura acessíveis com a preservação e a reconstrução da natureza.

Eu me lembro que gostei de muitas coisas em São Paulo, como a relação incrível entre o museu da Lina Bo Bardi [Masp], de um lado, e a mata atlântica, do outro. A presença desse fragmento de floresta dentro da cidade é sublime, mas isolada.

Para repensar a relação entre uma cidade e os não humanos, eu começaria pelos principais elementos da sua geografia —a mata atlântica, o grande rio [Tietê]— e os usaria para reimaginar toda a cidade, que eu interpretei como o resultado da especulação imobiliária extrema.

Claro, eu sei que uma cidade como São Paulo não pode ser o resultado de uma visão construída por uma ou duas pessoas, mas acho que deveria haver um debate sobre uma nova relação entre esses grandes elementos da geografia da cidade e a própria cidade —uma cidade que tem sido o resultado de muitas decisões individuais, dispersas e sem coerência fundamental, já que cada um decidiu por si ou por sua família.

Não é mais esse o caso. Sistemas rígidos de poder substituíram o campo inicial da livre iniciativa e, hoje, São Paulo é uma cidade muito dividida. É o momento de decidir que há algo em comum, e isso pode ter o papel de federar essa entidade maior.

A sra. mencionou o parque Trianon, na avenida Paulista. Os espaços verdes se concentram nos bairros de alta renda da cidade, e há uma grande dificuldade em estender esse tipo de qualidade urbana para a periferia. Há pistas para mudar esse padrão urbanístico? Não é uma questão fácil, porque não se pode imaginar resolver o problema das desigualdades, que são tão fortes no Brasil e na América Latina, só criando mais parques.

As relações entre as diferentes populações, as distâncias construídas por meio do espaço, os condomínios fechados —todo esse aparato não pode ser facilmente desmontado simplesmente criando aqui e ali alguns parques.

Acho que é preciso algo mais importante que só uma política de espaços verdes, algo que faça a conexão na grande escala, que permita atravessar as partes ricas e pobres da cidade. Acho que dá para trabalhar nessa escala com transporte coletivo, equipamentos públicos, espaços abertos, tipos de economia compartilhada e entidades geográficas.

Estes arranjos espaciais podem representar melhor a ideia de justiça espacial e ambiental para federar uma cidade completamente fragmentada e dividida enquanto regenera os tecidos existentes, incluindo as favelas.

Neste período, precisamos de decisões e escolhas radicais em relação às cidades. A ideia não é continuar fazendo mais ou menos o que fazíamos no passado, mas usar todas as oportunidades, pequenas e grandes, para afirmar essa transição com a qual teremos que lidar.

A ideia de todos os projetos como laboratórios urbanos. Exatamente. Todas as intervenções são importantes, pequenas e grandes. Em meu trabalho, eu tento trazer essa questão não só nas grandes operações, mas também na pequena transformação cotidiana. Acho que esse aspecto de laboratório é importante, mas tem que ser apoiado por visões fortes.

Há muitas ideias sobre como mudar a situação atual, mas é difícil engajar governos e a sociedade civil nesse tipo de transformação. O que pode ser feito? Acho que nunca opus o lado institucional ao informal, porque você precisa trabalhar tanto com instituições quanto com pessoas. É por isso que estou usando o termo projeto biopolítico, no sentido de que temos discutido como vamos sobrevive e viver no futuro. A vida é terrivelmente crucial e deve estar no centro da nossa reflexão sobre o design das cidades.

Estamos falando das relações entre espaço, política e vida. O projeto biopolítico moderno do passado se foi, o do presente não funciona, e os planejadores urbanos não trouxeram nada nítido o suficiente. É preciso reformular a relação entre os três termos (espaço, política e vida). Como fazer isso? É difícil. Eu pertenço àqueles que imaginam que a democracia é o melhor caminho que temos. Vejo que até pessoas próximas a mim começam a duvidar, mas eu não quero [risos].

É importante que a sociedade civil esteja presente. Toda abordagem de design urbano só pode ser enriquecida por essa discussão. Tenho alguns problemas com os políticos, porque me parece que eles não percebem o quão crucial é o momento em que estamos. Por isso, sou muito aberta às iniciativas que vêm de fora, de baixo para cima.

O urbanismo da transição não será o urbanismo feito só por instituições —será também feito com os cidadãos. Essa mudança cultural tem que afetar todos.

Se você se engajar na ideia de uma visão comum, você tem a oportunidade de fazer esse debate. Acabei de terminar um trabalho sobre o futuro da Grande Genebra, como fiz para as regiões metropolitanas de Paris, Bruxelas e Moscou. Essas reflexões são sempre importantes, ainda que não sejam imediatamente transformadas em ações.

Mesmo assim, elas podem gerar uma nova discussão e inspirar muitas ações. São sempre oportunidades para produzir mudanças em como pensamos a cidade depois da construção desse impulso. Há um nível diferente de debate que pode ser imaginado.

Visões coletivas são só uma parte da solução, mas acho que elas realmente funcionam em vários níveis e também revelam o que já está mudando e se adaptando: da construção de uma visão dos grandes problemas diante de nós até as pequenas ações, existem incentivos para construirmos momentos de elaboração comum.


Paola Viganò, 60

Arquiteta e urbanista e professora de teoria urbana e design urbano na Escola Politécnica Federal de Lausanne, na Suíça, e na Universidade Iuav, em Veneza. Em 1990, fundou com o urbanista Bernardo Secchi, morto em 2014, o Studio, que desenvolveu diversos projetos urbanos e planos metropolitanos na Europa, como Grande Paris, Bruxelas 2040, Lille 2030 e Montpellier 2040. Viganò recebeu o Grande Prêmio do Urbanismo da França, o título de doutora honoris causa na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, e a Medalha de Ouro da Trienal de Milão por sua carreira.

16º Seminário Internacional da Escola da Cidade - Cidades em debate: olhares e práticas contemporâneas

Realizado em parceria com o Sesc São Paulo, o evento tem coordenação dos professores Sabrina Fontenele e Silvio Oskman e se propõe a refletir sobre as novas relações entre práticas sociais e o ambiente construído.

Cinco conferências compõem a programação, incluindo a conferência de abertura de Paola Viganò na segunda-feira (2) às 18h30.

Programação completa no site da Escola da Cidade. Inscrições no site do Sesc São Paulo.


Ilustração de Danilo Zamboni, ilustrador.

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