'Precisamos sonhar para sobreviver'; leia trecho de livro inédito de Nastassja Martin

Depois de 'Escute as Feras', que narra ataque de urso, antropóloga francesa explora modo de vida dos evens da Sibéria

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Homem pesca às margens de rio da Sibéria, na Rússia Ilya Naymushin - 10.dez.18/Reuters

[SOBRE O TEXTO] Em novo livro, Nastassja Martin investiga como os evens, nômades assentados em fazendas coletivas durante a era soviética, se reaproximaram das florestas da península de Kamchatka, no extremo oriental da Rússia, e tentaram recuperar sua autonomia nos anos seguintes à dissolução da URSS. "A Leste dos Sonhos", que a editora 34 publica no Brasil neste semestre, aponta a persistência das cosmologias indígenas em meio às violências da colonização e a importância dos sonhos na reconstrução dos vínculos com a natureza.

A leste dos sonhos

É inverno, luzes tênues do amanhecer despontam no interior da cabana. Dária remexe as brasas no forno e fecha a porta em frente ao seu rosto corado pelo calor. Estou sentada diante dela, os olhos no horizonte, ainda perdidos nas imagens da noite. O que você viu?, ela me pergunta com doçura. Nada de interessante, estou padecendo de uma psicose climática, digo, forçando um sorriso. Conte mesmo assim, sussurra ela novamente. Somos duas mulheres, eu e uma desconhecida, estamos correndo numa floresta labiríntica, fugindo de alguma coisa, um fogo, um deslizamento, não me lembro. Chegamos a um barranco abrupto que descemos escorregando. Ali um bote nos espera, para nos levar a outra margem. Do outro lado do braço de mar, há um encontro político que acontece numa ágora gwich’in. Entramos no bote e o condutor começa a remar. Na sua opinião, ele pergunta à minha companheira de viagem que vai coordenar o encontro gwich’in e está atrasada, na sua opinião, seria melhor inundar primeiro a Antártica ou o Ártico? Claro que a Antártica, ao menos para começar, porque lá não tem ninguém. O condutor tira o tampão do fundo do bote, a água invade lentamente, sinto meus membros congelarem. A desconhecida entra em pânico. O condutor joga os remos na água e com uma voz solene, diz: isso é o que acontece quando se afunda, isso é o que se sente quando a água sobe. Meus membros se intumescem. Nós afundamos, estou debaixo da água congelante, nado com os olhos fechados, encosto na terra com a ponta dos dedos, agarro ramagens e tufos de mato, respiro. Escalo o barranco como dá, percebo que não consegui salvar minha mochila. Perco o fôlego e acordo.

Barco navega em rio da Sibéria, na Rússia - Ilya Naymushin - 22.dez.15/Reuters

Dária suspira. Está bem, mas você não encontrou ninguém nessa noite. Você se voltou para dentro de si. Tem que tentar ir mais longe. Fora do seu mundo. Senão, não vai obter nenhuma informação sobre o que realmente está acontecendo lá fora. Dessa vez dou uma risada espontânea. Mas eu tinha avisado que era uma psicose! Bom, talvez realmente esse clima estranho esteja me transformando também! Agora é Dária que dá risada. Talvez, mas neste caso, é apenas o resultado do que você viu misturado às suas lembranças do Alasca. Você não encontrou mais ninguém, ela repete. E você, viu o quê? Eu também me voltei para dentro de mim essa noite, ela responde. Sonhei com minha pedra. Somente a vi, ela estava lá, eu me lembrei, e dei voltas ao redor dela como da primeira vez, aos seis anos. Que pedra? A pedra do meu nascimento. Quer que eu lhe conte? Inclino a cabeça em sinal de aprovação.

Quando era pequena, eu não sabia de onde vinham os bebês. Um dia, minha mãe me levou a um lugar na floresta, perto de onde tinha sido colocada a iurta no momento do meu nascimento. Uma grande pedra estava posicionada em meio às árvores, era maior do que eu naquele momento. Dária leva as mãos na altura da cintura para me mostrar o tamanho. Minha mãe me disse, aí está, esta é a sua pedra. É daí que você veio. Em seguida, ela foi embora, deixou-me sozinha durante várias horas com a pedra, e me disse para pensar naquilo. Dei voltas e voltas em torno daquela pedra, perguntando-me o que minha mãe queria dizer. Como eu podia ter saído daquela pedra tão pesada, se não conseguia nem mesmo levantá-la? Minha mãe voltou mais tarde. Nós nos sentamos perto da pedra e ela me contou. Quando você nasceu, ela me disse, você se recusou a comer, chorou durante dois dias sem parar. Appa, o último xamã que tivemos aqui, veio à nossa iurta no terceiro dia. Passou a noite conosco, cantou e depois sonhou. De manhã, ele me contou o que viu. Você estava com o nome errado. Eu queria ter te chamado de Ouliana, mas esse não podia ser seu nome. Ele disse que em sonho tinha encontrado minha mãe, que morrera algumas semanas antes do seu nascimento. Disse então que eu devia dar a você o nome dela, para que seu choro cessasse, e você escolhesse viver. Dária levanta os olhos para mim, esboça um sorriso. Por isso eu me chamo Dária. Porque Appa encontrou minha avó naquela noite. E a pedra? Qual é a relação com a pedra? Não sei bem, respondeu-me Dária. O sonho de Appa ainda vive nessa pedra, foi tudo o que minha mãe disse. A pedra guarda a lembrança do sonho. Como uma memória das circunstâncias do seu nascimento? Sim, é isso. Um ponto fixo ao qual retornar quando você esquece como você veio. É por isso que quando em sonho vejo a pedra, eu me lembro.

Mais tarde, ao voltar para casa e refletir sobre o que Dária me contou a respeito de sua sobrevivência após um nascimento difícil, que se aferrara ao tênue fio do sonho de Appa, voltei a pensar em Hallowell e nos relatos parecidos que ele apresentou. Que um corpo nasça de outro corpo, tanto para Dária quanto para o interlocutor Ojibwa de Hallowell, não significa necessariamente que a alma nele se ajuste de imediato. Quando o recém-nascido vai mal, às vezes é preciso que um xamã faça um trabalho de pesquisa —por meio do transe e depois do sonho— para entender os motivos desse não ajustamento da alma ao corpo: "Algumas pessoas dizem que escutaram recém-nascidos urrando sem parar até que alguém reconhecesse o nome que eles estavam tentando pronunciar. Ao lhes darem esse nome, eles paravam de chorar. Quando isso acontece, significa que alguém que já viveu na terra está tentando voltar à vida" (Alfred Irving Hallowell, "The Ojibwa self and its behavioral environment".) Hallowell comenta essa história dizendo que a reencarnação é bastante frequente entre os ojibwa, e que trazer à lembrança a vida pré-natal pode ser primordial em alguns casos. A sobrevivência do bebê só é então confirmada quando o "nome correto" lhe é atribuído. No caso de Dária, Appa é quem explora essa memória pré-natal por meio do sonho, no qual ele se relaciona com a alma daquela que partiu, mas que ainda está presa em algum lugar "entre dois mundos", para usar as palavras de Dária.

Naquela manhã, fiz uma pergunta a Dária. A resposta dela mudaria para sempre minha percepção de nossas noites em Tvaïan, nelas infundindo um peso e uma eficácia não simbólicos e etéreos, mas históricos e pragmáticos. Não existem mais xamãs?, perguntei a Dária. Não, Appa, o do meu nascimento foi o último. Ele morreu quando eu tinha seis anos. Appa, o velho que você conhece, que vive sozinho em uma toca embaixo de uma ramagem na montante do rio, é filho dele. Ele ainda sonha, e aliás é por isso que mora lá no alto, sozinho como uma raposa, mas não ajuda mais ninguém. Tudo isso acabou. Então, como fazer para ir ao encontro das outras almas das quais você diz que precisamos para sobreviver em certos casos, quando sabemos que sozinhos não conseguiremos? É simples, me diz Dária. Temos que sonhar sozinhos, sem os xamãs. É preciso treinar para sonhar. Não apenas com os espíritos dos mortos que às vezes nos visitam, e que podem nos ajudar, sobretudo no momento das mortes e dos nascimentos; mas também com os outros, se quisermos poder sobreviver na floresta. Os animais? Sim, os animais. Precisamos tentar sonhar com eles para compreender o que fazem e para onde vão. Por quê?, Dária ri novamente. Para saber o que nós vamos fazer!

Episódio registra encontro de Nastassja Martin e Ailton Krenak

A autora de "Escute as Feras" é a convidada do segundo episódio da série Conversa na Rede, que estreia às 10h deste domingo (5) no canal do YouTube do Selvagem - Ciclo de Estudos sobre a Vida. A conversa, gravada no Rio de Janeiro logo depois da participação de Martin na Flip 2022, aborda o consumismo, a crise climática e a cultura dos evens da Sibéria e de outros povos originários. Concebido por Anna Dantes, produzido por Madeleine Deschamps e orientado por Krenak, o Selvagem busca articular conhecimentos a partir de perspectivas acadêmicas, indígenas e de outras espécies.

Tradução de Camila Boldrini

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