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Guilherme Bueno

Pintor aclamado, Pancetti ganha leitura social em livro

Ensaio de Felipe Scovino renova interpretação da obra do artista, célebre por suas telas de praias

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Tela 'Mangaratiba', de José Pancetti, parte da exposição 'Modernidade Negociada: um Recorte da Arte Brasileira nos Anos 40', no MAM (Museu de Arte Moderna) de São Paulo Eduardo Knapp - 17.mai.07/Folhapress

Guilherme Bueno

Professor da Escola de Belas Artes da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais)

[RESUMO] Embora consagrado institucionalmente por suas marinhas, José Pancetti não encontrou produção intelectual proporcional sobre seu trabalho. A maior parte dos estudos data de uma época em que a questão do modernismo estava viva no debate sobre a arte e deixa o pintor em uma espécie de limbo, situação que o livro ora lançado trata de rever, com teses como a dimensão social de parte de sua obra.

Recentemente lançado, "Pancetti: o Moderno Periférico", de Felipe Scovino, curador, crítico, historiador da arte e professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), assinala um marco para os estudos de arte brasileira.

A aclamação do pintor, sua consagração institucional em destacados acervos (sempre é lembrado o fato de um quadro seu ter sido a primeira aquisição de Gilberto Chateaubriand, dono da mais ampla coleção de arte brasileira) e sua valorização mercadológica não foram, curiosamente, acompanhadas de uma produção intelectual na mesma proporção.

'Autorretrato', tela de José Pancetti - Reprodução

A listagem bibliográfica elencada no livro nos deixa ver o quanto, diferentemente do que ocorreu com Guignard, a maioria dos estudos sobre José Pancetti (1902-1958) foi produzida por uma geração de autores para os quais o modernismo, ou seu limiar histórico, ainda era uma questão viva e de apelo pessoal, não raro envolvendo testemunhos de primeira mão.

Como Scovino aponta, é significativo que ainda permaneça como obra de referência aquela organizada em 1979 por José Roberto Teixeira Leite.

O livro surge, portanto, como oportuna contribuição provinda de uma geração estabelecida no século 21, lançando novas luzes sobre uma produção canônica, mas insuficientemente discutida, e teorizando o modernismo a partir de um lugar intelectual integralmente contemporâneo em sua formação.

A tese de um Pancetti "social" —isto é, de algumas de suas pinturas requisitarem essa abordagem— é original e necessária. Que se volte a comparação com Guignard: a recepção e o perfil de ambos conviveram longamente com a imagem do lirismo "puro" e "ingênuo", constituindo uma mitologia duradoura acerca do artista moderno, sobrevivente graças à indulgência com a qual se transigia com ela como expressão da oposição entre liberdade criativa e ortodoxia acadêmica.

No caso de Guignard, ela teve seu contraponto na influência inculcada pelo mestre sobre seus alunos e por sua carismática presença nos circuitos que frequentou, garantindo-lhe o selo de detentor de um requintado repertório cultural. Pancetti, ao contrário, permaneceu no limbo do gauche, ao não dispor de um círculo que o reconhecesse como líder de escola.

Se esse ponto em si, a invenção da imagem do artista (sobretudo quando de origem proletária, como é o caso de Pancetti), abre espaço para a sua leitura como um artista (por vezes) social, é mister reconhecer que Scovino chama a atenção para um fato evidente —digamos que basta olhar para as telas e os desenhos—, porém não óbvio.

Mais de uma vez, os temas de Pancetti, sem exortarem o espectador (como pretendiam alguns de seus contemporâneos, dramatizando a realidade), colocam-no frente a esse outro ângulo da vida moderna nos trópicos: aos heróis de classe, desvalidos súplices, alegorias idílicas acalentadas por outros artistas, o pintor nos mostra, com sensibilidade, mas sem meneios, o estaleiro, o porto, a praia distante, esses estranhos lugares pertencentes a uma paisagem semi-industrial nem sempre convidativa (e não menos entrepostos por onde a modernidade europeia desembarcava), mas que simplesmente existem nessa nova visualidade do espaço urbano e suburbano.

No estaleiro de Pancetti, não há a apoteose do trabalho; em suas praias, não há os "inocentes do Leblon", do poema de Carlos Drummond de Andrade, nem a juventude festiva de Copacabana, apenas espaço e luz escaldante ou abafada como dados visuais, redução pictórica e concisão narrativa.

Suas favelas não são a Polinésia nem o norte da África dos românticos, nem a Ouro Preto da expedição modernista —nada de luxo, clama ou volúpia; tão somente um lugar concreto, tão real quanto o esplendor duvidoso da avenida Rio Branco.

Como se depreende na análise das obras feitas por Scovino, várias telas de Pancetti contrastam elementos da paisagem "popular" idealizada da década anterior com objetos que maculam a "alegria prova dos nove", com sua atmosfera da rotina entediante e impessoal do trabalho.

Em seus retratos, por sua vez, não há o acúmulo de indícios que exaltem a aquisição da modernidade (o vestido da última moda, o automóvel particular), mas uma modernidade que se revela na psicologia conturbada dos retratados (o único documento moderno a que Pancetti recorre em seu autorretrato é um livro sobre os "ismos").

Sem ser reduzido ao realismo, Pancetti inscreve nossa pintura moderna em uma realidade arredia à retórica pasteurizada de palavras de ordem.

Pancetti, sem saber, teve desejos mais modernos que se esperaria entre nossos modernistas: quis ir para os Estados Unidos em vez de se contentar com Paris; marinheiro, antes mesmo de se assumir pintor, teve a experiência de rodar, ver e testar o mundo, algo longe de ser práxis entre seus inúmeros pares geracionais.

Em suma: se o crítico Antonio Bento supusera que o olhar impressionista de Manet fora inoculado pela luz tropical de sua viagem adolescente ao Brasil, podemos parafrasear a ideia e dizer que o de Pancetti seria devedor das variações de paisagens que sua errância lhe proporcionara.

O que mais nos diz a hipótese do Pancetti "social", a qual inclusive mostra o quanto sua imagem lírica e desajustada guarda um quê de recalque, ao deslocar o estranhamento intrínseco às suas paisagens e tipos e optar pelo outro extremo, o da libertação que o "exotismo" ofereceu aos modernistas?

A comparação feita por Scovino com Lasar Segall e Oswaldo Goeldi, dois artistas que registraram a sombra de nossa luz solar, é providencial: assim como em ambos, o cenário da modernidade periférica ganha relevo; ele é menos reificado que anotado.

A melancolia discutida pelo autor é também a ambiguidade dessa paisagem, oscilante entre, a um só tempo, dizer muito —por vezes assombrar, por vezes encantar— ou parecer irrelevante e apenas existir, na qual a interpretação direcionada está ausente.

Há outro ponto de convergência, identificável na luz de suas telas. Pancetti explorou a luz e a cor de um modo só encontrado posteriormente em outro moderno em desconforto, Iberê Camargo: se a paleta aberta e tropical do modernismo procurava estourar a luz e a cor em sua vibração mais alta, Pancetti obteve em mais de um quadro uma luminosidade intensa, conquanto rebaixada, direcionando-as para um tom mais profundo, bastando constatá-lo pelo modo como o pintor regula as cores a partir da sombra (o que Goeldi fez pelo "negativo" do corte na madeira, e Segall com o trabalho em torno dos cinzas).

Por sua vez, o desenho composicional, organizado por rebatimentos de planos (silhueta da montanha versus faixa de mar, por exemplo), ganha uma autonomia decorativa merecedora de ser cotejada com os arabescos de contornos de Guignard.

Uma parte de relevância especial no ensaio é a presumível influência da pintura brasileira da virada do século 19 para o 20 em sua obra, algo sabido tanto efetivamente quanto por várias lendas circulantes no Núcleo Bernardelli, agrupamento de artistas atuantes no Rio de Janeiro na década de 1930 e frequentado por Pancetti.

As marinhas, estabelecendo o vínculo mais amplo entre Pancetti e Castagneto, enunciam um indício de modernidade não restrito ao tema "psicológico" do mar e sua volubilidade, mas na disponibilidade do artista moderno em flexibilizar sua técnica (do despojamento das pinceladas ao uso de outros instrumentos, até o dedo) e de suportes.

Se Castagneto, conforme Gonzaga Duque reproduz uma anedota, pintou até sobre um bacalhau, Pancetti, entre outras situações, formou sua técnica pintando paredes e cascos de navio, ou seja, seu repertório de recursos decorreu do acúmulo de aprendizados incomuns e involuntários, muito distantes dos manuais retransmitidos por professores treinados (e que lhe seriam repassados por colegas). Sua técnica tem um quê de "popular" por nascer de um ofício artesanal, mas não tradicional.

Como pode, enfim, um artista que jamais teorizou abrir margem para uma leitura social? Aqui o livro traz uma contribuição ímpar. Assim como a pintura de Pancetti não se vincula às primeiras gerações modernistas, o estudo de Scovino se desvencilha desse fenômeno editorial que, para o bem ou para o mal, a cada dez anos celebra a Semana de 1922.

Para nossa história da arte, Pancetti permanece um desafio: sua obra não dispõe de manifestos que de pronto a "expliquem".

Para um meio intelectual como o brasileiro, que lê muito, mas vê pouco, discutir seus quadros é abrir um caminho crítico —razão entre outras para Paulo Venâncio Filho falar de um "novo" Pancetti na introdução ao livro— no qual precisamos nos debruçar sobre obras sem apelar ao encaixe fácil e ilustrativo em ansiedades declamatórias garantido pelos manifestos ou pelas juras de fidelidade de epígonos.

O texto, em seu preciso recorte, indaga o modernismo brasileiro sem cair na tentação de pendores grandiloquentes —uma discrição inusual, arguta e sensível sobre quantos modos diferentes de ser moderno houve e precisam ser debatidos.

Pancetti: o Moderno Periférico

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