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Otavio Frias Filho discursou contra ditadura militar

Em sua formatura na Faculdade de Direito da USP, diretor de Redação, morto há cinco anos, adotou tom crítico ao regime

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[RESUMO] Nos cinco anos da morte do jornalista Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha, o jornal publica o discurso lido por ele em sua formatura na Faculdade de Direito da USP, em 1979. Em tempos de repressão, fala surpreendeu pelas críticas à Justiça no país e à ditadura militar.

Otavio Frias Filho nunca atuou como advogado, embora tenha se formado na faculdade de direito da USP, em 1979. Seu pai, o empresário Octavio Frias de Oliveira (1912-2007), era um dos proprietários da Folha, o que levou Otavio a optar pela carreira de jornalista. Cinco anos depois de formado, assumiria o cargo de diretor de Redação do jornal, função que exerceu por 34 anos.

Nesta segunda (21), completam-se cinco anos da morte de Otavio.

O senso crítico, a objetividade e o rigor que consagraram o jornalista –responsável, com o pai e o irmão, Luiz Frias, atual publisher do jornal, pela criação do Projeto Folha– já eram evidentes no estudante de direito, que se formou com 22 anos.

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Otavio Frias Filho em sua sala na Folha, em 1985, pouco depois de assumir o cargo de diretor de Redação do jornal - Silvio Ferreira/Folhapress

Escolhido por seus colegas da faculdade do largo São Francisco, em São Paulo, para ser o orador da turma, ele fez um discurso com críticas à Justiça no país e à ditadura militar. Em ocasião que costuma ser festiva, Otavio optou por uma fala de contundência incômoda.

"Foi um anticlímax, um discurso muito contrário ao bom-mocismo que se esperava daquela época", diz o advogado e colunista da Folha Luís Francisco Carvalho Filho, que se formou na mesma faculdade no ano seguinte.

Embora o país estivesse na fase final da ditadura, sob a Presidência de João Baptista Figueiredo, os estudantes ainda enfrentavam, lembra Carvalho Filho, um "clima repressivo bastante evidente".

Em agosto de 1979, quatro meses antes da formatura, Otavio e Mário Mennucci, colega da São Francisco, foram presos no centro da cidade quando participavam de um ato da campanha eleitoral de Fernando Henrique Cardoso e Eduardo Suplicy, respectivamente candidatos a senador e a deputado estadual pelo MDB.

Como registrou a edição da Folha de 31 de agosto, os estudantes foram detidos por policiais e levados para a central de operações da Rota. Foram rapidamente liberados.

Foi uma "cana mole", nas palavras de Carvalho Filho, punição que não pode ser comparada às torturas sofridas por tantos outros colegas de movimentos estudantis na época.

Leia a seguir o discurso de Otavio na Faculdade de Direito da USP.

Senhores componentes da mesa; senhores pais, parentes e amigos,

É surpreendente constatar que, nesta solenidade de formatura, não se encontram presentes aqueles que teriam, de acordo com a doutrina, interesse especial em presenciá-la e em nos ver concluir o bacharelado: os injustiçados e oprimidos de toda ordem. Pois não existe o direito para promover a Justiça e impedir a opressão? Não é isto o que lemos nos livros e o que nos legaram os grandes juristas do passado?

Nossa experiência na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo está, agora, definitivamente incorporada ao nosso próprio passado, e como o presente contém todo o passado não haveria melhor oportunidade que esta para avaliarmos o significado do curso que ora encerramos e das "verdades" que aprendemos.

Nas salas de aula, assimilamos a técnica jurídica, apoiada sobre um conjunto de dogmas cercados de respeito quase religioso. Ao mesmo tempo em que aprendíamos que os direitos são iguais para todos, sentíamos em nossa própria pele as contradições de uma sociedade dividida. Aprendíamos que os direitos garantem a integridade pessoal dos indivíduos e convivemos com a prática sistemática de torturas e assassinatos.

Diziam-nos que a lei assegura ao homem os meios para conquistar sua felicidade e conviver em paz com seus iguais, e nos diziam tudo isso sob o nariz da ditadura, protagonista do capitalismo reconhecidamente selvagem, do capitalismo de rapina.

Já é tempo de colocar na berlinda as concepções jurídicas tradicionais. Senhoras e senhores: o direito não é justo, na acepção rigorosa do termo; nessa acepção, nenhum direito pode ser justo porque todo direito nada mais é que o modo pelo qual uma sociedade organiza a violência que exerce sobre si própria.

Vamos descobrir o novo e vamos desengavetar as verdades. Não podemos compreender o direito a partir daquilo que o direito pensa de si mesmo. Olhar a realidade jurídica de um ponto de vista crítico significa reconhecer que o seu papel fundamental é apenas disciplinar a forma desumana sob a qual os homens estão organizados. Como podemos afirmar, assim, que o direito é uma instância imparcial?

Recebemos tantos conselhos, pelos quais somos realmente gratos, que perguntamos agora: que conselho devemos a nós mesmos? Sejamos preconceituosos e parciais: tomemos sempre um partido em cada relação jurídica com que nos defrontarmos; tomemos o partido das maiorias oprimidas e das minorias subjugadas.

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O jornalista Otavio Frias Filho em evento em 1983, um ano antes de assumir a direção de Redação da Folha - Folhapress

Assim como optamos pela anistia irrestrita, pelas liberdades de organização e manifestação, pela crítica do formalismo jurídico e do tecnicismo do ensino autoritário; assim como nos alinhamos com aqueles que exigem melhores condições de vida e trabalho para a população, assim também tomemos o partido da sociedade nova contra a sociedade velha.

Chega de leitura de códigos e chega de saber lei sem saber ler. O direito é parcial e ambíguo, mas sua ambiguidade e parcialidade são o nosso espaço de crítica.

O exercício da crítica não é idealista, não é desilusão e não quer abafar ninguém. A universidade autoritária e, portanto, anticientífica não nos desilude e não nos ilude, assim como não nos surpreendem os linchamentos, a violência policial e o tédio da burocracia judiciária.

É verdade que aprendemos e aprenderemos a conviver com a humildade porque, diante disso tudo, não será muito o que poderemos fazer. A sociedade que criticamos tende a se reproduzir dentro de nós mesmos, e sabemos das nossas limitações, especialmente agora que saímos da escola para entrar no mercado.

Queremos —não resta dúvida de que queremos— uma nova sociedade, onde a fome só exista nos dicionários e na qual a tristeza seja apenas uma opção. Nossa prática cotidiana estará extraordinariamente distante desse horizonte, mas nós sabemos que um dia ele poderá e deverá se realizar. Nosso campo, porém, é o da dogmática jurídica; vamos navegar em um mar de contradições e tomara que possamos manter até o fim o conflito entre o que nos diz a lei e o que nos diz a nossa consciência do real.

A lei não é justa e, dentro dela, nossa alternativa será escolher corajosamente entre o mais injusto e o menos injusto. Politicamente, poderemos optar por um caminho que nos aponte uma sociedade sem opressão, construída pelos seus setores majoritários e que garanta em concreto os direitos sociais de subsistência digna, de cooperação livre e de liberdade individual.

O que temos para comemorar é apenas a nossa própria convivência, que certamente nenhum de nós desprezará. Mas, por todas as razões, não podemos deixar de ter uma visão crítica sobre o nosso ensino, sobre nosso passado, sobre nossa sociedade e sobre nós mesmos.

Colegas: hoje quem cala consente.

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