Chance de paz com Arafat e Rabin foi só começo de um triste fim

Tentativa de negociação após anos de conflitos chegou a alimentar esperanças

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Henrique Goldman

Cineasta, dirigirá clipe de uma faixa que estará no próximo trabalho de Brian Eno

[RESUMO] Cineasta de origem judaica, diretor dos filmes ‘Jean Charles’ (2009) e ‘O Nome da Morte’ (2017), Henrique Goldman rememora as marcas e impressões que o conflito histórico envolvendo Israel e Palestina deixaram ao longo de sua trajetória de vida, desde a infância no bairro do Bom Retiro até uma viagem feita a trabalho para a Faixa de Gaza durante a década de 1990

Incêndio provocado por bombardeio na Faixa de Gaza por tropas israelenses - Aris Messinis/AFP

Na manhã de um sábado hoje distante exatamente meio século, vejo minha própria imagem no espelho do meu quarto. Tenho doze anos e estou de péssimo humor porque minha mãe me forçou a vestir roupas chiques que detesto e ir com a minha família até o lugar mais chato da Via Láctea: a sinagoga da Rua da Graça no Bom Retiro, a poucas quadras de casa. É 6 de outubro de 1973 e é Yom Kipur, o Dia do Perdão.

Irritado com o insuportável lenga-lenga das rezas em hebraico arcaico e o constante senta e levanta de um ritual religioso ininteligível, dou um jeito de logo escapar com outros três meninos para bater uma bola no pátio de uma outra sinagoga na Rua Newton Prado. A pelada é interrompida por uma pequena multidão de adultos que, saindo do templo, de repente começa a invadir nosso campo na maior folga.

Vou percebendo aos poucos que eles parecem muito preocupados. Se entreolham em silêncio, atônitos.

Alguns choram. Me ligo quando ouço alguém dizer que tropas egípcias invadiram o deserto do Sinai e que, simultaneamente, tanques sírios já tomaram as colinas do Golã e estão se dirigindo à Haifa.

Parece que Moshe Dayan e Itzhak Rabin, nossos imbatíveis heróis da Guerra dos Seis Dias em 1967, foram pegos de calça curta. Conheço de cor o mapa da região. Se os egípcios estão avançando no Sinai, seguramente destruíram a inexpugnável linha de fortificações Bar Lev construída nas areias do deserto, na margem leste do Canal de Suez. Das alturas do Golã é muito fácil bombardear a Galiléia, avançar até a região da Natânia e separar o norte e o sul, estrangulando o país.

Os árabes têm mísseis SAM 6 soviéticos ultra-modernos capazes de destruir os caças israelenses Phantome Dassault Mirage. Em mim reverbera o trauma atávico dos ghettos e dos pogroms que meus avós trouxeram do leste europeu para o Brasil —um pavor do mundo que se consolidou com o Holocausto.

Não existe em mim ainda um lugar para a noção de que nós fomos vítimas da história mas ao mesmo tempo oprimimos os palestinos e sinto aquela invasão árabe na minha carne. É como se os exércitos de Anwar Sadat e Hafez Al Assad já tivessem atravessado o Jardim da Luz e agora, às portas da única e verdadeira terra prometida, o Bom Retiro, estão prontos para nos degolar.

Passo o final de semana colado no rádio e na televisão. De madrugada me torturo com a possibilidade do Brasil se aliar à Liga Árabe e também declarar guerra a Israel. Sei que não vai acontecer mas se desgraçadamente acontecesse eu não saberia por quem iria lutar. Caso ficasse do lado de Israel, poderia ainda assim continuar a torcer pelo Santos e pela seleção brasileira?

Minha mãe chora. É impossível telefonar para ter notícias do meu tio Itzke, que mora em Haifa. Ele é velhinho. Faz três anos desde que ficou viúvo, vendeu a lojinha de sapatos e a perua Vemaguete e se mandou para Israel para ficar perto do filho.

No elevador do nosso prédio onde só moram judeus, uma vizinha maluca sobrevivente do campo de concentração de Majdanek me encara ensandecida e berra, cuspindo no meu olho: "Israel tem sempre ‘razón’! O presidente Nixon é amigo dos yids e vai nos salvar porque o Henry Kissinger é da colônia!"

Na segunda-feira, sou um dos primeiros alunos na fila de voluntários do Colégio Renascença que se alistam para, divididos em grupos de cinco, ir às lojas, escritórios e tecelagens cujos proprietários são judeus e pedir doações para o exército de Israel comprar ambulâncias. A escola designa para o meu grupo a zona mais cobiçadas: a Rua José Paulino. Até o dono do mais mísero armarinho, um conhecido da família que segundo minha avó não tem nem onde cair morto, contribui com tudo o que tem dentro do caixa.

Na sexta feira, celebramos o recebimento de mais de quase dois mil dólares. Nos campos de batalha, durante a semana o jogo de repente virou e Israel miraculosamente ganha a guerra. Vejo as tropas inimigas debandarem, atravessando fronteiras remotas, desaparecendo em uma outra margem de um rio que fica muito além do Tietê.

Em março de 1995 vivo em Londres. Sou cineasta e a Movimondo, uma ONG italiana, me propõem fazer um documentário para a União Europeia sobre programas de assistência social para jovens com deficiência física em regiões pobres do mundo. Quando me perguntam se eu toparia filmar em Gaza, respondo entusiasticamente que sim.

Desde 1993, quando Yasser Arafat, o líder da Organização para Liberação da Palestina, e o primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin assinaram o Acordo de Oslo, deu-se inicio a um processo de paz.

O conflito entre os dois povos entrou em uma nova e esperançosa fase.

Três dias depois, aterrisso em Tel Aviv e pego um táxi que me leva até o posto de controle de Erez, uma das portas de entrada de Gaza.

No controle de passaportes, um soldado israelense mal encarado lê o meu sobrenome e pergunta com um tom de desprezo: "Você não é judeu?". Respondo que sim. "O que então você quer fazer em Gaza?!", ele responde. Mostro uma carta da União Europeia e o meu passe de imprensa. Ele se entreolha com um outro soldado e ri dizendo: "Tomara que você volte inteiro".

Não quero ter medo mas, enquanto entro em Gaza, vêm à tona os oito Fedayeen que sequestraram e mataram os atletas israelenses durante as Olimpíadas de Munique em 1972, acompanhados pelos judeus mortos no sequestro de Entebbe em 1976, seguidos por uma fila interminável com tantos outros fantasmas. Me acalmo pensando que sou um cidadão brasileiro e que ninguém precisa saber que sou do Bom Retiro.

No covil dos meus piores inimigos, sou surpreendido por uma enorme demonstração de calor humano e hospitalidade. Na ONG, sou apresentado para Nuha, uma jovem cadeirante de 20 e poucos anos muito inteligente e extrovertida. Ela tem o sorriso amigo e o ar ensolarado de uma baiana debochada e caótica. Ela sonha em um dia estudar medicina na Universidade de Nablus, na Cisjordânia ocupada por Israel, mas isso só vai ser possível se a promessa da paz se concretizar. Ela fica louca para ser a personagem principal do meu documentário e eu não tenho como ou por que resistir.

Passo os dias seguindo a Nuha por Gaza. Ela tem oito irmãos e o pai é pedreiro. A mãe percebeu que eu gosto de charutinho de uva e em todas as refeições não desiste até que eu devore uma pilha de charutinho. O Brasil me deixa sentir absolutamente em casa com eles. Quando um dia resolvo contar que sou judeu, percebo que a minha grande revelação não é para eles mais do que um detalhe indiferente. Sou hóspede e, na cultura local, o hóspede é sempre um rei. Só no campo de refugiados de Jabalia vejo várias famílias muito pobres vivendo em casas rudimentares e sem saneamento básico.

Depois de duas semanas saio de Gaza entusiasmado e cheio de esperanças. Ligo para meus pais e amigos no Brasil para contar que os palestinos estavam muito mais perto do que as classes pobres brasileiras de se libertar da opressão. A paz já é uma realidade palpável e ela vai fazer um bem enorme também para Israel e os judeus da diáspora.

Menos de dois meses depois, em uma praça de Tel Aviv, um jovem israelense de vinte e cinco anos se mistura com a multidão em um enorme comício a favor da paz e da não violência. Seu nome é Yigal Amir e ele é ativista da direita religiosa e radical que está crescendo muito e se opõe à paz porque sonha em criar uma grande Israel com a anexação de todos os territórios ocupados e a expulsão da população palestina.

Yitzhak Rabin, o primeiro ministro e um dos artífices de Oslo, sobe no palanque e diz: "Sempre acreditei que a maioria de nós quer a paz e está disposta a, por ela, correr riscos". Rabin é muito aplaudido. Terminado o discurso, ele vai até o seu carro mas antes de entrar é atingido por dois tiros disparados à queima-roupa pela Beretta semi-automática de Yigal Amir.

Ouvindo ontem de manhã as primeiras trágicas notícias sobre a atual carnificina, corro para procurar na internet uma foto da época que ficou marcada na memória. Alguns dias depois do assassinato de Rabin, Yasser Arafat, o líder palestino, foi visitar Lea Rabin, a viúva, em sua casa para levar a suas condolências. Arafat e Rabin estavam ambos longe de serem líderes perfeitos, mas depois de décadas de inimizade, os dois se associaram ao redor da ideia da paz.

Estávamos ali. Foi uma quase possibilidade. Hoje sabemos que foi só o começo de um triste fim.

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