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Arlene Clemesha

Tréplica: Autora refuta críticos à tese de limpeza étnica por Israel

Avritzer ignora pesquisas de Ilan Pappé e historiadores palestinos; Magnoli o usa para fabricar acusações caluniosas

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Arlene Clemesha

Professora de história árabe da USP, tradutora de Edward Said e autora, entre outros livros, de "Marxismo e Judaísmo" e "Palestina 1948-2008"

[RESUMO] Autora de artigo que sustenta que a expulsão de palestinos de suas terras em 1948 foi um objetivo deliberado de Israel afirma que Demétrio Magnoli emprega argumento sem originalidade, difundido há um século pela extrema direita sionista, que iguala qualquer crítica ao Estado confessional judeu a antissemitismo. O jornalista se baseia em réplica de Leonardo Avritzer que, segundo a pesquisadora, expõe alegações já contestadas pela historiografia recente e ignora que, mesmo se um plano de limpeza étnica não tivesse sido formulado, palestinos foram expropriados e massacrados por milícias israelenses da mesma forma.

Em resposta ao meu artigo "Historiadores veem expulsão de palestinos em 1948", Demétrio Magnoli volta a lançar acusações, mas procede pela via nada sofisticada da fabricação de amálgamas e deturpações.

A narrativa histórica exposta por mim acerca da Nakba palestina (parcial na visão de Leonardo Avritzer, que será retomada mais abaixo) seria equivalente aos Protocolos dos Sábios de Sião, nada menos que "Sábios de Sião, parte 2". Uma afirmação que situa no mesmo plano um debate histórico apoiado em documentos e um libelo baseado em falsificações propositais, destinado a justificar uma política estatal assassina e antissemita —a do regime czarista russo.

Soldados israelenses prendem os últimos combatentes na frente do Negev em novembro de 1948 - AFP

Certamente, nós não poríamos no mesmo plano os amálgamas, inclusive indecentes, praticados por um colunista em um jornal importante e os amálgamas de um chefe de Estado em uma tribuna oficial com consequências sobre a vida e a morte de milhões de pessoas. Não deixa de ser interessante, no entanto, verificar certa semelhança metodológica. Vejamos.

Em outubro de 2015, no 37º Congresso Sionista Mundial, realizado em Jerusalém, o premiê israelense Benjamin Netanyahu fez referência ao encontro ocorrido na Alemanha em novembro de 1941 entre Adolf Hitler e o mufti (líder religioso) palestino Hajj Amin al-Husayni.

Netanyahu sustentou que Hitler não queria exterminar os judeus, mas "apenas" expulsá-los da Europa. Segundo Netanyahu, o Holocausto teria sido sugerido ao führer pelo mufti para evitar o aumento da imigração de judeus da Europa e o estabelecimento de um Estado judeu na Palestina. A absolvição relativa e retroativa de Hitler e do nazismo pelo Holocausto veio do lugar mais inesperado.

A chancelaria alemã reagiu, declarando que a responsabilidade do Holocausto era da Alemanha (esposando a polêmica tese da culpabilidade coletiva do povo alemão). O líder da oposição israelense, por sua vez, qualificou as palavras de Netanyahu como "uma deformação histórica perigosa" que "minimiza o Holocausto, o nazismo e a participação de Hitler no terrível desastre do nosso povo". O representante da Autoridade Palestina lamentou que "o líder do governo israelense odeie tanto o seu vizinho a ponto de estar disposto a absolver o mais notório criminoso de guerra da história, Adolf Hitler, pelo assassinato de 6 milhões de judeus durante o Holocausto".

A historiadora Dina Porat, diretora do memorial Yad Vashem em Jerusalém, disse que as declarações de Netanyahu não eram historicamente exatas: "Dizer que o mufti foi o primeiro a mencionar a Hitler a ideia de matar ou queimar os judeus não é correto". "A ideia de livrar o mundo dos judeus era um tema central na ideologia de Hitler muito, muito tempo antes de ele conhecer o mufti."

Passando ao largo da questão acerca de quem exatamente (e quando) deu a ordem de execução do Holocausto, a culpabilização dos colonizados palestinos por esse fato revelou um regime político, o israelense, próximo a um estado de delírio.

Conheci Dina Porat no congresso sobre os 50 anos da Segunda Guerra Mundial celebrado na USP em 1995. O admirável trabalho sobre o Holocausto judeu e a guerra que ali apresentou se encontra no volume publicado na ocasião, "Segunda Guerra Mundial: um Balanço Histórico" (Xamã). O trabalho, digno de uma historiadora que honra sua qualificação, deveria ser lido por Magnoli.

Na época, eu realizava a pesquisa de mestrado que resultou no livro "Marxismo e Judaísmo" (Boitempo). Esse trabalho se baseou em boa parte na documentação obtida nos restos extraordinários dos arquivos da Amia (Associação Mutual Israelita-Argentina), que foram excepcionalmente abertos para nós por membros da gentilíssima comunidade judaica de Buenos Aires.

Os arquivos tinham sido muito afetados, semidestruídos (encontravam-se provisoriamente em um precário local da rua Ayacucho) pelo brutal atentado antissemita contra a Amia realizado em 1994 (com um saldo de 85 mortos e centenas de feridos, judeus e não judeus) e nunca esclarecido pelo governo ou pelo Judiciário argentinos.

Mas voltemos desgraçadamente a Magnoli, que não se limita a explícitas acusações caluniosas. Isso não é o bastante: há também calúnias sub-reptícias. Depois de equiparar nosso trabalho de reconstituição histórica da Nakba com os Protocolos dos Sábios de Sião, nos acusa, com igual método, de não "condenar atos desse ou daquele governo de Israel, mas de condenar inapelavelmente o próprio Estado judeu". Essa "propaganda anti-Israel" nos poria na mesma trincheira dos autores dos Protocolos, a saber, a dos partidários do extermínio ou da submissão à segregação ou escravidão do povo judeu.

O argumento, além de profundamente ofensivo, carece da mais elementar originalidade. Ele se baseia nos amálgamas que seguem: oposição à partilha da Palestina = oposição a um Estado de Israel (qualquer um); oposição a um Estado confessional de Israel = defesa do extermínio do povo judeu.

A extrema direita sionista, que hoje se encontra no governo de Israel, defende o mesmo argumento há um século —combatido, também há um século, pelos melhores representantes do judaísmo, das mais variadas correntes políticas e ideológicas, desde Albert Einstein a, atualmente, Noam Chomsky e os signatários do manifesto Declaração de Jerusalém sobre o Antissemitismo.

Se a oposição a um Estado confessional —ou seja, a defesa do laicismo estatal, única base possível para uma democracia— fosse equivalente a uma intenção exterminadora, caberia concluir, por exemplo, que os republicanos espanhóis eram partidários do extermínio de todos os cristãos do seu país, em que pese a presença de numerosíssimos cristãos entre eles.

O mesmo caberia dizer dos defensores republicanos do ensino laico na França do século 19, estes vitoriosos, o que tem algo a ver com a universidade pública onde Magnoli, acreditamos, se formou, e onde Avritzer leciona. É necessário um pouco de respeito pelos ancestrais.

No que concerne à história, que evidentemente desconhece, Magnoli remete a Avritzer. Este colega discorda de meu artigo devido ao fato de que, a seu juízo, a origem da tragédia palestina seria mais complexa e estaria situada, pelo menos em grande parte, na oposição árabe à partilha da Palestina, que seria legítima e legal porque adotada pela ONU em 1947.

Uma ONU com menos de 30% de seus membros atuais, pois a maioria dos países do mundo ainda eram colônias, como era, de fato, a Palestina, sob a forma de um mandato britânico. A mesma ONU, em 1975 e com muitos mais membros, determinou "que o sionismo é uma forma de racismo e discriminação racial", supomos que com a oposição (atual, claro, e perfeitamente legítima) de Avritzer.

Com ONU ou sem ela, a liderança sionista não teria elaborado, para Avritzer, qualquer plano de expulsão dos palestinos. Para tal alegação, Avritzer apoia-se na obra de 1987 de Benny Morris, mas estranhamente omite por completo a pesquisa posterior de Ilan Pappé.

Tivesse lido "A Limpeza Étnica da Palestina", Avritzer saberia que Pappé se mostra perplexo diante da posição dos historiadores israelenses tradicionais e de Benny Morris, que estavam muito longe da realidade ao retratar o caso de Haifa como "um exemplo de boa vontade sionista genuína para com a população local" palestina (2007, p. 78), em que pese certa demonstração de simpatia pelos palestinos por parte do prefeito de Haifa. Não foi ele, contudo, quem determinou o curso dos eventos.

Outro autor israelense estranhamente ignorado por Avritzer é Avi Shlaim, para quem "as evidências apresentadas no corpo do livro [de Morris] sugerem um grau de responsabilidade israelense muito maior do que o atribuído por Morris em sua conclusão" (1995, p. 296). Ou seja, a crítica que se faz a Morris é que suas conclusões distavam da evidência histórica apresentada em sua própria pesquisa.

Mas Morris, hoje é sabido, não estava preocupado em atribuir responsabilidades pela limpeza étnica da Palestina. Pelo contrário: para ele, o fundador de Israel, Ben-Gurion, "cometeu um sério erro histórico em 1948". "Se ele já estava envolvido na expulsão, talvez devesse ter feito um trabalho completo. [...] Minha impressão é que este lugar seria mais calmo e sofreria menos se o assunto tivesse sido resolvido de uma vez por todas. Se Ben-Gurion tivesse realizado uma grande expulsão e limpado todo o país — toda a Terra de Israel, até o rio Jordão."

Ou seja, a fonte preferencial de Avritzer é a mesma que defende a limpeza étnica total da Palestina, a expulsão de todos os nativos, subalternos colonizados, cujas vidas nada valem. Tampouco valem os trabalhos de seus historiadores, menosprezados, como fez Avritzer ao referir-se à obra do grande historiador palestino Walid Khalidi como algo "obscuro".

Vemos crescer no campo da direita e da extrema direita sionista a tendência a se admitir com enorme facilidade que a Nakba foi intencional, mas que infelizmente ela foi incompleta em 1948. Vislumbram dessa forma a possibilidade de que novas levas de palestinos sejam expulsos, seja da Cisjordânia, de Jerusalém ou de Israel propriamente dita.

Ou seja, trata-se de uma nova elaboração discursiva a favor da continuidade da limpeza étnica da Palestina. Nas palavras do notório escritor Elias Khoury, essa seria uma "nova história sionista israelense", para a qual "as atrocidades de 1948 são lidas em uma chave teológica que justifica a limpeza étnica como uma necessidade para evitar uma nova Shoah" (2012, p. 264).

Avritzer defende que o "êxodo" palestino teria começado apenas em abril de 1948. Essa também é uma falsa alegação recorrente em fontes da história oficial de Israel e já contestada por boa parte da chamada nova historiografia israelense. Em março-abril, os ataques das milícias sionistas tornaram-se de fato mais intensos, mas não começaram nessa data. Basta lembrar que, de dezembro de 1947 a março de 1948, foram expulsos 250 mil palestinos.

Bairros inteiros das porções árabes de Jerusalém, de Jaffa, além da já mencionada Haifa, foram esvaziados nos três primeiros meses de 1948. Foram vários episódios que levaram a população palestina a abandonar a cidade, até que, em abril de 1948, sobrassem apenas 4.000 dos 75 mil habitantes palestinos originais de Haifa. Ou seja, abril marca a intensificação e praticamente o encerramento da limpeza étnica de Haifa, não o seu início.

Ilan Pappé defende a existência de um plano para a limpeza étnica, mas, já que Avritzer estranhamente resolve ignorar por completo a obra de um dos principais historiadores israelenses e menosprezar os escritos de um dos mais importantes historiadores palestinos, Walid Khalidi, vamos supor, por um instante, que seja possível deixar de lado a historiografia para empreender um breve exercício de livre raciocínio.

Este nos diria que, para expulsar e expropriar um povo ou a maioria dele de sua terra, não é necessário plano nenhum. Bastam a intenção e os meios, e estes a liderança sionista tinha ou obteve, como demonstram inúmeros registros históricos.

Adel Manna, autor palestino, prefere se abster da discussão sobre se o Plano Dalet era um mero plano de guerra ou um plano de limpeza étnica, como defende Ilan Pappé. Manna diz que o que importa é que a imensa maioria dos palestinos de Haifa e da Galileia foram aterrorizados, massacrados, incitados pelas milícias sionistas a fugir antes mesmo de iniciada a primeira guerra árabe-israelense e impedidos de retornar. Suas casas, terras, pertences, todos os seus bens foram expropriados, como demonstra a volumosa obra de Michael Fischbach "Records of Dispossession".

Avritzer afirma, em apoio à sua tese, que "o êxodo palestino levou a fortes protestos dos partidos de esquerda em Israel, especialmente pelo Mapam, que tinha vínculos com a ex-União Soviética". O termo "êxodo" supõe (erroneamente) um exílio voluntário; Avritzer deveria levar em conta que Êxodo era o nome de um navio vindo de Marselha, em 1947, transportando 4.500 sobreviventes judeus de campos de concentração, que não eram em absoluto exilados voluntários.

O Êxodo foi interceptado e seus passageiros, autoritariamente devolvidos em Haifa por navios de guerra britânicos, impedindo-lhes o acesso ao território palestino. O argumento de Avritzer, na verdade, testemunha contra sua tese: por que o Mapam protestaria veementemente se não estivesse em curso uma operação de desterro palestino em massa?

O protesto do Mapam, por outro lado, não foi mera formalidade. As violências praticadas contra a população palestina foram de tal calibre que um dirigente do partido, Aharon Zisling, declarou em novembro de 1948 no Conselho de Ministros de Israel: "Agora alguns judeus se comportam como nazistas e todo meu ser se estremece".

A discussão sobre as causas da Nakba é, de fato, complexa e envolve também a conduta dos líderes e governos árabes no período, tema brilhantemente desenvolvido por Eugene Rogan e Avi Shlaim em "The War for Palestine". Envolve, notadamente, a conduta do Reino Unido e das grandes potências emergentes da Segunda Guerra Mundial, os EUA e a URSS.

Avritzer não aprofunda essa análise e tampouco pode-se exigir que o faça no espaço de um breve artigo. Ele, no entanto, ignora que o meu artigo constitui a reconstrução de um debate histórico e resolve criticar uma suposta falta de complexidade elencando episódios esparsos.

Não obstante, pode-se dizer que é direito de Arvitzer criticar a "ausência de complexidade" de meu artigo, o que significa afirmar que ele seria simples ou simplista. Mas não deveria Magnoli transformar "simplista" em "enviesado", pois o contrário de complexo não é enviesado. Esperamos que Avritzer, academicamente, desautorize sua instrumentalização por um enviesado e pouco dotado candidato a discípulo.

E, já que Magnoli afirma que meu "artigo [sobre 1948!] é sobre a guerra atual", teria sido bom se, nos seus artigos, o crítico e o caluniador apresentassem uma palavrinha acerca do que o site Palestina Hoy resumiu desta forma: "Um míssil de US$ 100 mil, lançado por um avião de US$ 20 milhões, viajando a um custo de US$ 6 mil por hora, para matar pessoas que vivem com menos de US$ 1 por dia na Faixa de Gaza. Não é guerra, é genocídio", opinião compartilhada por Luis Moreno Ocampo, ex-procurador-chefe do Tribunal Penal Internacional, e por Raz Segal, historiador israelense e professor de estudos sobre o Holocausto e genocídio da Universidade de Stockton, em Nova Jersey, que, em outubro de 2023, publicou um artigo na revista Jewish Currents afirmando que o ataque em curso configura "um caso clássico de genocídio".

Shalom e as-salamu alaikum (em qualquer ordem, pois não altera o resultado).

Obras citadas

Nakba and Survival: the Story of Palestinians Who Remained in Haifa and Galilee (University of California Press, 2022), de Adel Manna

The debate about 1948 (International Journal of Middle East Studies, 1995), de Avi Shlaim

The War for Palestine: Rewriting the History of 1948 (Cambridge University Press, 2007), de Eugene Rogan e Avi Shlaim

The Ethnic Cleansing of Palestine (Oneworld, 2007), de Ilan Pappé

Rethinking the Nakba (Critical Inquiry, 2012), de Elias Khoury

Records of Dispossession: Palestine Refugee Property and the Arab-Israeli Conflict (American University in Cairo Press/Columbia University Press, 2004), de Michael Fischbach

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