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Cláudia R. Plens

Pedido de perdão a indígenas deve vir acompanhado de reparação concreta

Anistia a povos krenak e guarani-kaiowá reconhece crimes da ditadura e propõe medidas para garantir seus direitos

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Cláudia R. Plens

Arqueóloga e professora do Departamento de História da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Autora, entre outros livros, de "Direitos Humanos sob a Perspectiva do Direito à Vida, da Antropologia Forense e da Justiça no Caso de Violações"

[RESUMO] A recente concessão de anistia a comunidades krenak e guarani-kaiowá marca o reconhecimento, pelo Estado brasileiro, de crimes cometidos pela ditadura militar contra indígenas e recomenda ações tangíveis para reparar danos ambientais, culturais e sociais. A implementação dessas medidas, hoje incerta, é essencial para o país enfrentar seu passado de violência contra povos originários.

Nos 60 anos do golpe de 1964, o Brasil vive um momento crucial com o julgamento que resultou na recomendação de medidas inéditas de reparação de crimes cometidos contra povos indígenas pela ditadura militar.

No início do mês, a Comissão de Anistia, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, reconheceu a violação de direitos dos povos krenak e guarani-kaiowá pelo regime militar e concedeu anistia a eles. Enea Stutz e Almeida, presidente da comissão, simbolizou esse reconhecimento pedindo, de joelhos, perdão aos líderes indígenas das etnias, em um gesto que destaca o esforço do país de se reconciliar com seu passado de violência militar.

Comissão de Anistia julga casos de povos krenak e guarani-kaiowá - Gabriela Biló - 2.abr.24/Folhapress

A violência sistemática perpetrada contra populações indígenas durante a ditadura esteve inserida em uma política mais ampla de assimilação e integração compulsória, que visava à eliminação das identidades e culturas desses povos e sua submissão ao Estado. Essa estratégia impôs deslocamentos forçados, restringiu liberdades fundamentais e tentou erradicar práticas culturais ancestrais, em um período de intensa repressão e desumanização dos povos originários.

Essas transgressões continuam a reverberar entre comunidades indígenas, deixando cicatrizes profundas que atravessam gerações e afetam os sobreviventes e seus descendentes e resultam em traumas emocionais e disrupções sociais persistentes.

Em meio a essas questões, a disputa territorial emerge como um dos principais desafios. Apesar de a legislação prever a demarcação de terras de povos originários, sua implementação adequada é frequentemente obstruída por interesses econômicos, especialmente ligados ao agronegócio. Esse contexto contribui para a instabilidade social e perpetua a vulnerabilidade crônica dessas comunidades, exigindo medidas efetivas para proteger seus direitos e garantir sua segurança e autodeterminação.

O advogado Marcelo Uchôa, membro da Comissão de Anistia, aponta que o julgamento dos casos enfrenta obstáculos técnicos, como interpretações legais do passado que põem em dúvida a autoridade do órgão para avaliar pleitos coletivos. Contrariando essas interpretações, as normas vigentes garantem que a anistia pode ser tanto individual quanto coletiva e deve ser concedida sempre que os atos se enquadrem nos critérios legais de excepcionalidade política.

Uchôa também sublinha a necessidade de confrontar argumentos baseados na ideia de que as violações perpetradas contra essas comunidades pelo regime militar não tiveram motivação política.

As decisões do início do mês da Comissão de Anistia têm em seu cerne um conjunto robusto de recomendações formuladas com o objetivo de reconhecer formalmente os danos causados aos povos indígenas e, ao mesmo tempo, implementar ações concretas de reparação que abrangem aspectos da vida social, cultural, ambiental e econômica dessas comunidades.

Para reparar os crimes cometidos pelo Estado brasileiro, a comissão recomendou, em relação ao povo krenak, o reconhecimento e a devolução do seu território tradicional, a garantia de acesso à saúde, educação e infraestrutura, incluindo conectividade à internet, com respeito às tradições e às necessidades específicas da comunidade.

O órgão também apontou a urgência de medidas de reparação ambiental no rio Doce —o recente crime ambiental que sofreu é apenas o ápice de um histórico de negligência e poluição que, há décadas, vem afetando severamente o modo de vida do povo krenak.

No caso dos guarani-kaiowá, as recomendações da comissão se concentram na saúde física e mental dos membros da comunidade, prejudicada por longos períodos de exposição a agrotóxicos e pelo trauma passado de deslocamentos forçados.

A assistência médica especializada figura ao lado, nesse caso, do reconhecimento territorial efetivo, do acesso à energia elétrica e à moradia adequada e da destinação de recursos para preservar e fortalecer a cultura e as práticas espirituais. Os guarani-kaiowá enfrentam há anos ataques de grupos armados e, em razão disso, uma intervenção do Estado que preserve a segurança das comunidades é urgente.

As recomendações da Comissão de Anistia apontam, portanto, para uma reparação que transcende o simbolismo do reconhecimento dos erros do passado e alcança a proposição de ações concretas para garantir os direitos, a dignidade e a sustentabilidade cultural e ambiental desses povos. Isso permite vislumbrar o enfrentamento de dívidas históricas que o Brasil tem com suas comunidades indígenas e um futuro em que os direitos humanos e a justiça social possam florescer.

O julgamento dos pedidos dos povos krenak e guarani-kaiowá, lembra Marcelo Uchôa, trouxe à Comissão de Anistia importantes lições sobre a justiça de transição. Esses casos evidenciam que a violência e o extermínio que os indígenas sofreram ao longo de toda a história do país —e ainda mais intensamente durante a ditadura militar— são parte de um problema profundamente enraizado na sociedade brasileira que nunca foi devidamente enfrentado.

Embora extremamente importantes, as medidas de reparação recomendadas pela Comissão de Anistia se deparam com um panorama incerto e não têm garantias nítidas de implementação.

Para que o Brasil possa transformar o legado de injustiça e violação de direitos humanos dos povos originários, é essencial que políticas de reparação transbordem do plano simbólico e se transmutem em medidas tangíveis, como a demarcação de terras indígenas. Só assim esses povos poderão ter um futuro mais equitativo.

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