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Luís Augusto Fischer

Tragédia no Rio Grande do Sul paralisa a vida e reforça dilemas humanos

Professor conta como é a vida após enchentes que devastaram o estado

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Luís Augusto Fischer

Professor de literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de 'A Ideologia Modernista', da Todavia

[RESUMO] Professor de literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul comenta como é viver em um estado atingido por uma catástrofe climática, quando tudo se torna incerto e urgente ao mesmo tempo, em meio ao descaso de governantes com a questão ecológica e a novas configurações de convívio social.

Há situações em que a percepção crítica fica embaçada, por ser impossível estabelecer com segurança divisões elementares —antes e depois, causa e consequência, privado e público, passado e futuro, rápido e lento. São momentos em que tudo se comprime e cada aspecto da realidade se impõe como prioritário. Tudo é urgente.

Mal comparando, é como na adolescência em flor. Discernir quem se deseja e quem se odeia para bem desejar e bem odiar, planejar o futuro e viver o presente, esperar e partir para o ataque, encontrar aliados e selecionar culpados.

Morador da Vila Vicentina, bairro de São Leopoldo, na região metropolitana de Porto Alegre, alagado após fortes chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul - Pedro Ladeira-21.mai.24/Folhapress

Mal comparando, é como numa guerra. Comer o último pedaço de pão agora mesmo ou guardar um tanto para o incerto depois? Sair tomando na mão grande o que se precisa ou procurar aliança para atender as necessidades? Cuidar do que está bem próximo, no varejo dos dias, ou atentar para as dimensões estratégicas de fundo?

Mal comparando, é como no começo da pandemia de Covid-19. Ninguém sabia nada com segurança, e o remédio imediato era paralisar tudo, ficar quieto no lugar, e esperar o tempo escoar em sua velocidade mais lenta, em direção ao nada.

A vida nesta enchente no Rio Grande do Sul tem esses aspectos. Os números são acachapantes, segundo qualquer parâmetro que se tome em conta: mortos, desparecidos, desalojados; casas, fábricas, escritórios; ruas, pontes, estradas; doentes sem possibilidade de buscar ou seguir tratamento e animais extraviados.

Quem quiser pensar no assunto, estando perto ou longe do alagamento e da destruição, tem que inventar alguma distância analítica, um posto de observação a salvo —no sentido literal, em que se tenha água, energia, comida, internet e abrigo, e no sentido figurado, em que se consiga divisar marcos seguros na paisagem devastada, em que tudo se igualou pelo nível da água barrenta.

É evidente que ricos e confortáveis lidam muito melhor com a crise, qualquer crise, do que remediados e pobres; mas esta é uma verdade geral que pouco acrescenta. Também é certo que a ultradireita, ajudada pelos malucos de sempre, investe na desinformação e na mentira, porque é disso que ela se alimenta, da falta de clareza, das meias palavras, das insinuações, assim como das mentiras deslavadas, que criam o ambiente adequado para sua pregação anticientífica, autoritária e, bem no fim das contas, supremacista.

As lideranças políticas, especialmente o prefeito da capital, Sebastião Melo (MDB), e o governador do estado, Eduardo Leite (PSDB), ambos apoiadores de Bolsonaro (Melo explicitamente, ao passo que Leite, discretamente), por certo não teriam como amparar a todos os atingidos. Nem eles nem os demais prefeitos, de uma gama de partidos dominantemente do espectro bolsonarista, porque a dimensão da tragédia é inédita. Por esse lado, não se pode condenar qualquer um por não haver preparado o acolhimento justo.

Mas a vida não é só o presente imediato; governar também é planejar, prever, antecipar, calcular. O prefeito de Porto Alegre e o governador do Rio Grande do Sul demonstram, quando não desprezo, menosprezo à dimensão ecológica das ações que lhes cabem. Com alguma variação, os dois são agentes da lógica do estado mínimo, o que se manifesta na adoção, por exemplo, de autolicenciamento ambiental para uma série imensa de atividades que antes eram submetidas a controle por técnicos e agências públicas.

Os dois representam, igualmente, o caminho privatista, que nem sempre envolve ações e valores defensáveis à luz do dia. Na capital, que conta com uma excelente tradição de cuidados com esgoto pluvial e de fornecimento de água potável, fruto de gerações —desde antes da famosa enchente de 1941, cujo limite foi batido pela atual—, ficou demonstrado que ao menos as duas administrações mais recentes (PSDB e MDB) produziram sucateamento dos órgãos desse campo (redução do quadro funcional, negligência deliberada para com reparos e cuidados técnicos, capitalização via depauperação dos serviços, etc.).

No plano estadual, o mesmo governador que agora veste jaleco de salvador foi responsável por um serviço nefasto de cortes no Código de Defesa Ambiental, assim como fez força para ativar uma imensa mina de carvão a céu aberto, a poucos quilômetros do centro metropolitano, e só parou porque a pandemia o atropelou.

Quer dizer: em nome de reduzir o aparelho estatal, deixaram de cuidar do futuro, até mesmo em coisas elementares como consertar bombas capazes de tirar a água de dentro do cinturão de diques que envolve a capital quando chove muito. O alagamento de grande parte da cidade, dizem os engenheiros hidráulicos, foi motivado por esse mau funcionamento, não pelo volume das chuvas. Porto Alegre estava preparada para permanecer seca até uma cheia de 6 metros —o máximo que o Guaíba atingiu foi 5,35 m.

O estado (quase 11 milhões de habitantes) e em especial a região metropolitana de Porto Alegre (uns 4 milhões) contam com universidades de grande valor. Uma rede de universidades comunitárias compõe uma louvável tradição local, prestes a ser devorada pela lógica do ensino à distância por corporações sem horizonte algum a não ser o lucro.

Ao lado dela, há universidades privadas que pesquisam sério e algumas federais de porte; a UFRGS está entre as 5 ou 6 mais importantes e produtivas do país, incluindo na conta as imbatíveis estaduais paulistas. Nelas há pesquisas suficientes para entender, projetar e gerir qualquer campo de conhecimento.

No entanto, quase nada desse conhecimento costuma vir à berlinda da imprensa local. Os dois mais importantes jornais do estado orgulhosamente abrigam negacionistas, e raramente dão voz à ciência localmente produzida.

Precisou o editor do Jornal Nacional, da Globo, estar aqui para dar visibilidade a um importantíssimo e nunca antes consultado Instituto de Pesquisas Hidráulicas, da UFRGS, que há mais de meio século produz ciência e tecnologia sobre águas —as mesmas águas que afogaram casas, plantações, fábricas, escritórios.

São dimensões de fundo do horror atual. Mas há muitas outras. Tirando a pandemia, que obrigou ao isolamento, esta enchente é a primeira tragédia social da era dos smartphones, que nos separa fisicamente e nos conecta virtualmente.

No atendimento às atuais vítimas, muita gente se viu ao vivo pela primeira vez em situação de colaboração social ativa. A impressão era que todos estavam cansados de odiar: todos queriam ajudar, levar algum bem para ser usufruído por alguém mais necessitado. De repente, voltamos a ser vizinhos e conterrâneos.

A proporção das necessidades é inédita e permite enxergar outras mudanças. O Rio Grande do Sul tem uma longa e apreciável tradição de cooperativismo e associativismo, em grande parte liderada pelas igrejas tradicionais, católica e luteranas. Mas essas perderam força e abrangência (as antigas paróquias não apareceram como entidades relevantes agora), e o espaço foi ocupado por igrejas cristãs recentes, assim como por clubes sociais e universidades.

Visitando locais de socorro e assistência na capital, pode-se constatar o espetáculo humano em sua variedade. Dedicados voluntários individuais vizinhavam com arrogantes donos de jet skis; ao lado, forças policiais variadas conversavam e davam tranquilidade ao pessoal contra os gatunos oportunistas; logo adiante, um cercado com algumas dezenas de cães latia para amigos anônimos que distribuíam alguma ração trazida por outros anônimos; pessoal de saúde, gente de igrejas, algum funcionário público.

Tudo isso à sombra de vigorosos viadutos e a metros de ruas alagadas, em que boiavam botes e mergulhavam os pés e as pernas outros sem nome.

Alguém ali pensava nas eleições municipais que vêm logo ali? Imaginava o que podem a cidade e o estado fazer nas semanas e nos meses que virão? Algum deles olhava para os militares, de grande valia no contexto, lembrando que poucos meses atrás seus superiores e suas esposas eram presença certa na frente de quartéis, a pedir insanamente por um golpe que quase veio?

Mal comparando, uma situação assim é como a arte, que intensifica a vida, na bela frase de Virginia Woolf. Só que, ao contrário da arte, a experiência não permite ainda a assimilação lenta e profunda das lições que a vivência direta do horror pode trazer, mas nem sempre traz.

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