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Felipe Martinez

Marchands foram tão importantes quanto Monet e Renoir no impressionismo

Unindo arte e mercado financeiro, galeristas moldaram estilo identificável e se associaram a críticos para valorizar pintores

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'O Baile no Moulin de la Galette', de Auguste Renoir, em exibição na mostra 'Paris 1874: Inventando o Impressionismo', no Museu d'Orsay, em Paris - Miguel Medina - 22.mar.24 / AFP

Felipe Martinez

Economista e doutor em história da arte pela Unicamp, com pós-doutorado pela USP e pela Universidade de Amsterdã. Autor de "O Escolar, de Vincent van Gogh" e tradutor de "Cartas a Theo"

[RESUMO] Exposição no Museu d'Orsay em comemoração dos 150 anos do impressionismo evidencia que, na falta de convergência estética, a busca por espaço no mercado de arte unia os pintores do grupo em seu início. O amadurecimento do movimento, sustenta autor, ocorreu sob uma reorganização intensa do trabalho artístico associada à consolidação do capitalismo financeiro, em que a expertise comercial de marchands se tornou imprescindível na consagração crítica e no sucesso comercial de artistas.

Vista de perto, a história do impressionismo é imprecisa e tem contornos pouco nítidos. Pode-se mesmo duvidar que faça algum sentido falar em um movimento impressionista. É o que "Paris 1874: Inventando o Impressionismo", em cartaz no Museu d’Orsay até 14 de julho, evidencia.

A mostra celebra os 150 anos de outra exposição, realizada em 1874 pela Sociedade Anônima Cooperativa de Pintores, Escultores e Gravadores, grupo que incluía Paul Cézanne (1839-1906), Edgar Degas (1834-1917), Claude Monet (1840-1926), Berthe Morisot (1841-1895), Camille Pissarro (1830-1903) e Auguste Renoir (1841-1919).

'Impressão, Nascer do Sol', de Claude Monet, em exibição na mostra 'Paris 1874: Inventando o Impressionismo', no Museu d'Orsay, em Paris - Miguel Medina - 22.mar.24/AFP

Os artistas expuseram juntos pela primeira vez no ateliê do fotógrafo Nadar, localizado no bulevar des Capucines. Procuravam um lugar para expor e vender suas pinturas em uma cidade "repleta de quadros, que poderiam cobrir a distância entre a França e a América", como escreveu Émile Zola, e formavam, antes de tudo, um grupo heterogêneo em busca de espaço no concorrido mercado de arte francês do século 19.

Foi nessa exposição que o crítico Louis Leroy cunhou o termo impressionismo ao se referir pejorativamente ao quadro "Impressão, Nascer do Sol", de Monet. Nos anos seguintes, os jovens artistas aproveitaram a alcunha dada e passaram a se promover a partir dela. No entanto, as obras expostas no ateliê de Nadar eram tudo, menos homogêneas.

A exposição do Museu d’Orsay exibe as obras de 1874 em sua variedade. Estão presentes quadros muito conhecidos de Monet e Morisot, como "Campo de Papoulas" e "A Leitura", bem como obras que dificilmente poderiam ser identificadas com o que se conhece hoje como impressionismo.

É o caso, por exemplo, do "Retrato de Homem" pintado por Alfred Meyer a partir de uma obra de Antonello da Messina, que pouco tem a ver com as pinceladas rápidas e cores transparentes normalmente associadas ao grupo, ou mesmo algumas gravuras de Félix Bracquemond (1833-1914), muito distantes do que ele próprio faria posteriormente. As obras expostas em 1874 indicam que a única coisa que unia os artistas do grupo era a busca por um lugar ao sol no ambiente artístico parisiense da época.

Mudanças importantes estavam em curso na capital francesa, não apenas no campo da arte. Depois de quase duas décadas de império, o país voltava a ser uma república. Cortada por largos bulevares, tendo sobrevivido à Guerra Franco-Prussiana, Paris se tornava cada vez mais industrializada e moderna.

Pouco mais de dez anos antes, ainda sob o imperador Luís Bonaparte, Édouard Manet (1832-1883) havia chocado o ambiente artístico parisiense com seu "O Almoço sobre a Relva", exibido no Salão dos Recusados. Manet, aliás, não quis participar da exposição de 1874 e concentrou todos os seus esforços no Salão oficial daquele ano. Das três pinturas que enviou, apenas uma, "A Ferrovia", foi aceita.

Junto às obras do grupo impressionista, o Museu d’Orsay também exibe algumas pinturas do Salão oficial de 1874, que mostrou obras de artistas tão diferentes entre si quanto Camille Corot e Jean Léon-Gérôme. Essa diversidade revela que o Salão não era indiferente aos novos tempos e que as instituições artísticas francesas se adaptavam às mudanças, ainda que nem sempre na velocidade desejada por todos.

De qualquer modo, o Salão tradicional não dava mais conta da demanda, cada vez maior, de artistas que tentavam participar da competição oficial e construir suas carreiras pelos caminhos que haviam sido consagrados desde o começo do século. O ápice da trajetória de um artista bem-sucedido pelas vias usuais eram os prêmios oficiais e as encomendas do Estado, mas essa porta não estava mais aberta para todos.

Pelo contrário: conforme o século avançava, cada vez menos artistas podiam ser absorvidos por esse sistema —e a demanda por participar dele só crescia, como bem mostraram Cynthia e Harrison White no clássico "Canvases and Careers" (telas e carreiras).

A exposição no Museu d’Orsay não se resume às obras expostas em 1874, tanto no ateliê de Nadar quanto no Salão. A mostra também traz as pinturas exibidas na terceira das oito exposições do grupo impressionista, realizada em 1877.

Se, antes, as obras eram muito diferentes entre si, dessa vez, quadros como "O Baile no Moulin de la Galette", de Renoir, ou a série de pinturas da estação Saint-Lazare, de Monet, provam que o estilo impressionista havia amadurecido e que os artistas haviam finalmente assumido uma identidade de movimento artístico.

Faltou, no entanto, que os organizadores da mostra dessem maior destaque para a segunda exposição do grupo, quando os artistas não eram nem tão homogêneos quanto em 1877 nem tão heterogêneos quanto em 1874. Essa segunda mostra, realizada em 1876 na galeria do marchand Paul Durand-Ruel (1831-1922), atesta o processo de amadurecimento do movimento. Foi nela que seu anfitrião, personagem central para a prosperidade do grupo, se ligou definitivamente aos principais artistas associados ao impressionismo.

'Retrato de Paul Durand-Ruel', por Auguste Renoir (c. 1910)

Durand-Ruel não empunhou pinceis, mas foi o agente responsável pela articulação do circuito de arte com o mercado financeiro. O marchand aplicou táticas como a criação de estoques para influenciar os preços, a oferta de lances artificiais em leilões e a associação estreita com críticos para promover seus artistas, além de pressionar os artistas para que o impressionismo tivesse um estilo identificável pelo público.

Por volta de 1870, as pinturas de nomes ligados à Escola de Barbizon, como Corot, Jean-François Millet e Théodore Rousseau estavam entre os melhores investimentos disponíveis no mercado francês. Os preços eram altíssimos, e investidores das mais diversas áreas se tornaram players do circuito de arte.

Durand-Ruel soube fazer fortuna com os paisagistas de Barbizon, mas, à medida que os principais artistas do grupo envelheciam, encontrou no impressionismo seu novo nicho de mercado. Eram artistas pouco conhecidos e pouco aceitos pelo público e pela crítica, o que significava que tinham um amplo horizonte de valorização a longo prazo —era possível, portanto, comprar barato no presente para vender caro no futuro.

Com a quebra do banco Union Générale em 1882, o marchand cruzou o Atlântico em busca de colecionadores nos Estados Unidos, um mercado fundamental para o desenvolvimento do impressionismo. Enquanto isso, artistas como Monet procuravam alternativas. Em 1888, uma exposição de sua série de paisagens de Antibes foi montada no mezanino de uma das filiais da galeria Boussod e Valadon, a mais importante da época, por iniciativa de um jovem marchand chamado Theo van Gogh, irmão do famoso pintor. Apesar do sucesso da mostra, a parceria com Theo teve vida curta.

Pouco tempo depois, Durand-Ruel voltou dos Estados Unidos e retomou os negócios com os impressionistas. Naturalmente, não atendeu todos os artistas do mesmo modo, mas soube abrir o apetite do mercado para um estilo impressionista, criando um tipo de mercadoria relativamente homogênea e previsível, com grande potencial de valorização. É nesse momento que as coisas começam a melhorar para Monet, Renoir e Degas. Camille Pissarro, por outro lado, enveredou pelos caminhos do pontilhismo e pagou um alto preço comercial por isso.

A exposição de 1874 no ateliê de Nadar foi um fracasso de vendas e levou tempo até que os artistas do grupo encontrassem aceitação e estabilidade material. O fato de Monet ainda estar, em 1888, em busca de uma galeria para expor suas obras mostra que o caminho definitivamente não foi fácil.

No entanto, apesar da demora, o sucesso chegou inquestionavelmente para os principais membros do grupo. Na velhice, Monet e Renoir eram celebridades internacionais e ninguém duvidava de que fossem grandes artistas. Suas pinturas, revolucionárias no início, estavam perfeitamente incorporadas ao gosto então corrente, como provam os painéis da série "As Ninfeias" doados por Monet ao Estado francês ao final da Primeira Guerra Mundial, hoje no Museu de l'Orangerie.

Pensar a evolução do impressionismo demanda indagar de que maneira as condições de trabalho artístico se modificaram conforme a sociedade industrial avançava e o capitalismo financeiro se consolidava. A história do impressionismo é também uma história de reorganização do trabalho artístico na segunda metade do século 19, período em que artistas precisaram desenvolver novas estratégias para se inserir na divisão social do trabalho e no mercado da época.

Não se tratava apenas de uma estética nova, com cores intensas e pinceladas ágeis que buscavam representar a realidade como fenômeno, mas também da inauguração de práticas comerciais e expositivas que se repetiriam de modo semelhante com outros grupos nas primeiras décadas do século 20. Esse é um processo que não pode ser bem compreendido sem considerar que esses artistas estavam associados a galeristas que sabiam transitar muito bem entre as questões artísticas e o mercado financeiro, como Durand-Ruel ou nomes posteriores, como Ambroise Vollard e Daniel-Henry Kahnweiler.

Associados à crítica, esses marchands sabiam como direcionar o gosto e valorizar os pintores que representavam. Por isso, foram tão importantes quanto os próprios artistas na construção da história da arte moderna.

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