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Luiz Augusto Campos

Reduzir lutas por direitos humanos básicos a identitarismo é perigoso

É difícil enxergar no movimento feminista, LGBTQIA+ ou negro todas as ameaças identitárias apontadas por críticos

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Luiz Augusto Campos

Professor de sociologia e ciência política no Iesp/Uerj (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e coordenador do Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa)

[RESUMO] A crítica do chamado identitarismo, sustenta o autor, exagera no diagnóstico do alcance da vertente na esquerda e não reconhece que a geração atual de militantes, em vez de abrir mão de ideais universalistas em prol da afirmação de identidades e do silenciamento de oponentes, reflete táticas antigas e a anarquia regulatória das redes sociais. Se quiserem contribuir com o debate público, críticos precisam definir seu alvo com objetividade e não diminuir a luta pela equalização de direitos e oportunidades a "ideologia identitarista".

De 2021 para cá, as buscas no Google pelo termo identitarismo cresceram acentuadamente. Contribuíram para tal um sem número de textos assinados por colunistas atemorizados com a emergência de um suposto fundamentalismo identitário que estaria levando à balcanização da esfera pública ao defender a "utilização lacradora de uma noção reducionista de lugar de fala" perante a qual as "vítimas das opressões têm sempre razão", fomentando, assim, uma "expedição punitiva identitária" que pode levar à "derrota do pensamento de esquerda".

Lidas em conjunto, essas expressões dão a entender que estaríamos vivendo um aterrorizante período de invasões bárbaras contra os ideais universalistas e igualitários que teriam supostamente guiado a esquerda até recentemente.

Participantes da 20ª Marcha da Consciência Negra, em São Paulo - Gero Rodrigues - 20.nov.23/Ofotográfico/Folhapress

Muita tinta e papel foram gastos desde os anos 1990 com a emergência da chamada política identitária, especialmente nos EUA.

Em um país economicamente liberal, fraturado pela segregação racial e onde ideias socialistas foram criminalizadas pelo governo durante quase todo o século 20, o ideal da diversidade cultural de fato substituiu bandeiras mais igualitárias nas articulações progressistas, sobretudo no Partido Democrata. Nesse contexto, a etiqueta política identitária ou, mais recentemente, a expressão "woke" vêm sendo empregadas para nomear um sem número de iniciativas —diga-se de passagem, poucas delas governamentais— de promoção do reconhecimento das especificidades culturais de vários grupos.

Contudo, essa configuração ideológica é mais exceção que regra no contexto internacional ou mesmo na própria história dos EUA. Até a década de 1970, a esquerda do país estava comprometida com a luta pelos direitos civis, o fim das leis de segregação racial e a efetiva integração de negros nas escolas, nas universidades e no mercado de trabalho. O esvaziamento do sentido equalizador dessas ações afirmativas começou ainda no governo de direita de Richard Nixon, quando elas foram incorporadas a um plano mais amplo de diversificação racial das classes médias, o que ele chamava de capitalismo negro.

Em uma decisão de 1978, a maioria conservadora da Suprema Corte tonou inconstitucional qualquer política compensatória da discriminação, considerando ser esse um objetivo demasiadamente amorfo, mas permitiu ações afirmativas desde que visassem a mera diversificação de espaços sociais. Isso salvou as políticas afirmativas por algumas décadas, mas as reduziu a medidas pontuais de promoção da diversidade identitária.

Para além dos EUA, poucos são os países em que as esquerdas com expressão eleitoral colocaram os ideais da diversidade no centro de suas agendas. Os maiores partidos da esquerda europeia ou latino-americana em algum momento se abriram para movimentos feministas, antirracistas etc., mas todos permanecem oscilando entre ideais social-democratas ou social-liberais. Logo, o que se chama de identitarismo é uma vertente ideológica bem mais fraca na esquerda que seus críticos fazem crer.

É verdade que o marxismo viveu uma forte crise nos anos 1980, o que abriu margem para processos de renovação da esquerda. Essa crise se deveu não apenas à derrocada do socialismo real, mas também a dissensões teóricas internas.

Em sua versão mais ortodoxa, o marxismo enxergava no direito à propriedade privada a base do capitalismo e da luta de classes, o que transformava o Estado em fiador de todo o sistema e locus fundamental do poder político. Desse prisma, caberia aos movimentos emancipatórios tomá-lo via revolução ou eleições para iniciar o processo de abolição ou regulação da propriedade.

Essa teoria do Estado como locus do poder foi tensionada por vários pensadores —Antonio Gramsci é certamente o mais célebre entre eles. Para Gramsci, a reprodução do capitalismo também se servia das relações de poder diluídas nas organizações da sociedade civil como a igreja, o sistema educacional e a indústria cultural. Desse prisma, não bastaria aos movimentos emancipatórios tomar o Estado: também seria necessário enfrentar uma guerra cultural na própria sociedade.

No entanto, é a partir da obra de Michel Foucault que o conceito de poder se torna ainda mais difuso. Ele estaria não apenas no Estado e na sociedade, mas sobretudo nas formas de saber e conhecer o mundo, presentes nas grandes narrativas, da psiquiatria ao próprio marxismo. Assim sendo, qualquer luta contra a opressão deveria se opor a essas narrativas totalizantes, recusando qualquer horizonte comum.

Não há dúvida sobre a influência de Foucault e seus seguidores, mas é no mínimo pueril acreditar que os novos movimentos sociais foram às ruas devido a seus livros. Esses movimentos foram e ainda são mais influenciados pelas lutas anticoloniais e pelos direitos civis que marcaram o globo durante o século 20, não apenas destacando as opressões e as discriminações internas e para além das relações de classe, mas também mantendo em vista horizontes universalistas.

Tomemos como exemplo duas grandes referências da luta antirracista. Martin Luther King Jr., líder do movimento pelos direitos civis nos EUA nos anos 1960, acreditava que os negros americanos jamais teriam força para conquistar a igualdade se usassem a principal arma dos supremacistas brancos, a violência. Essa visão pacifista era totalmente oposta a do pensador martinicano Frantz Fanon, que lutou na guerra anticolonial argelina durante os anos 1950 e se tornou um dos maiores defensores da violência como um instrumento necessário à emancipação dos afrodescendentes.

Apesar de diametralmente opostos em seus modos de pensar e agir, tanto Luther King quanto Fanon encaravam suas lutas como parte da construção de um mundo mais justo, em que as desigualdades raciais seriam totalmente superadas.

Inserido nesses debates globais, o movimento negro brasileiro sempre esteve bem mais próximo do polo moderado que do radical. Seu mais longevo líder, Abdias Nascimento, nunca propugnou a violência política. Defensor de um antirracismo integrador e nacionalista até os anos 1960, ele passou a limpo suas ideias nos anos 1970 diante do cenário de renitentes desigualdades raciais, formulando o que chamou de quilombismo, ideologia segundo a qual o racismo está na base do processo de construção nacional e da consequente opressão da população negra.

Ainda assim, suas pautas estavam longe de identitárias. Filiado ao PDT e seguidor fiel de Leonel Brizola, ele concentrou seus projetos enquanto parlamentar na busca por direitos humanos universais para os negros. É evidente que tudo isso vinha acompanhado de investimentos em narrativas que buscassem produzir o orgulho da identidade e da história negras, mas até aí, nada de especial em relação a qualquer movimento social que precisa fomentar a autoestima de seus adeptos.

O movimento negro brasileiro foi e ainda é voltado para a luta por direitos humanos dentro das instituições democráticas e nunca esteve perto de ameaçá-las, ao contrário. Correndo risco de simplificação, suas principais pautas desde a década de 1980 são o enfrentamento da violência que vitimiza desproporcionalmente pretos e pardos e a busca por equalização de oportunidades. Reduzir essas lutas a um suposto identitarismo é não apenas equivocado, mas perigoso.

Pode-se contra-argumentar que há hoje uma nova geração de militantes menos preocupados com direitos e mais em "afirmar identidades" para "silenciar oponentes" com base em ataques "politicamente corretos", especialmente com o cancelamento e a lacração nas redes sociais.

Esse diagnóstico, porém, exagera ao tomar como novas algumas táticas tão antigas quanto o debate público. Não é gratuito, por exemplo, que a expressão politicamente correto tenha origem justamente nos partidos comunistas seguidores do chamado centralismo democrático, no qual todos os filiados podiam opinar desde que se comprometessem a obedecer à diretriz vencedora na cúpula, alcunhada ironicamente de opinião politicamente correta.

Se essas práticas hoje parecem mais difusas, à esquerda e à direita, isso tem a ver menos com uma "nova ideologia identitarista" e mais com o anonimato e a anarquia regulatória das redes sociais, pautadas pelo interesse de seus proprietários em produzir polêmicas com vistas a ganhos financeiros e políticos.

Outro exagero da crítica anti-identitária está na equivalência entre os chamados identitários de esquerda e os identitários de direita. Suponho que mesmo aqueles que acreditam nessa equivalência não põem em xeque o legado maldito que a extrema direita vem deixando no Brasil e no mundo: relativização das instituições democráticas, legitimação da violência política, desmantelamento dos sistemas de assistência social, saldo estratosférico de mortos na pandemia de Covid-19.

Se essa suposição está correta, é irresponsável considerar que, do outro lado da polarização, existem movimentos com alguma chance de estabelecer qualquer hegemonia política feminista, antirracista, antissexista etc. ou minimamente ameaçar o poder constituído.

Em resumo, é difícil enxergar todas essas ameaças identitárias nas pautas dos movimentos negro, feminista, LGBTQIA+ e outros. Suas lutas contra práticas antirracistas, antissexistas etc. refletem mais a busca por direitos humanos básicos, cotidianamente negados não apenas à parcela mais pobre da população, mas também a negros, mulheres e homossexuais, por exemplo.

Evidência disso são os números sobre violência no Brasil. Em um relatório recém-publicado, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou uma leve queda dos homicídios no país, da ordem de 3,4%, mas negros permanecem sendo 78% dos mortos por intervenção policial. Entre 2011 e 2023, a taxa de estupros subiu nada mais que 91,5% no país.

Diante desses números, é no mínimo simplista classificar a luta pelo mais básico dos direitos humanos, o direito à integridade física, como identitária. Se a crítica ao chamado identitarismo quer contribuir com o debate público democrático, resta a ela definir com alguma objetividade o seu alvo.

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