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Sérgio Rodrigues

Palavra 'surreal' passou da vanguarda para a boca do povo

Proliferação do termo e adição de novos significados mostram que o real ficou cada vez mais insano

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Quadro de Leonora Carrington, em exposição em Madrid em 2023 - © Estate of Leonora Carrington /VEGAP

Sérgio Rodrigues

Colunista da Folha

[RESUMO] Cunhada há cem anos pela vanguarda artística francesa para designar as manifestações do inconsciente, a palavra "surreal" foi apropriada pela linguagem coloquial e se propagou com novas conotações para expressar os tempos absurdos das últimas décadas, comenta escritor.

É surreal o caminho percorrido pela palavra "surreal", nascida na vanguarda artística francesa de cem anos atrás, para estar hoje na boca do povo em conversas corriqueiras. "Os preços no supermercado andam surreais." "Que surreal você duvidar de mim!"

Para tanto o surreal precisou se libertar pouco a pouco de seus sentidos mais precisos, ligados ao movimento estético fundado por André Breton, para se tornar o que os linguistas chamam de palavra-ônibus —aquela, quase sempre coloquial, cujos significados são tantos que não se deixam delimitar com muito rigor, como "legal" e "coisa".

Se "surreal" não perdeu suas conotações oníricas ligadas à livre associação e às manifestações do inconsciente, ganhou outras: a de algo que é extraordinário, surpreendente, absurdo, bizarro, estranho, insano, exuberante, chocante.

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"Composição", obra de Tarsila do Amaral de inspiração surrealista - Reprodução/Reprodução

Nenhuma contraria o sentido geral de "sur" + "réalisme" (suprarrealismo, aquilo que está além do real), termo cunhado em 1917 pelo poeta Guillaume Apollinaire e reciclado sete anos depois por Breton. Faz apenas o que a linguagem comum costuma fazer com termos técnicos: apropria-se deles segundo suas próprias necessidades de expressão.

O processo de espalhamento de "surreal" pode ser acompanhado nos arquivos da Folha (um recorte entre outros possíveis) e é fascinante. Sua primeira aparição data de 1968. No ano seguinte foram duas. Em 1971, três. Nos anos 1970, o termo mereceu 71 menções nas páginas do jornal, e a curva de seu crescimento não parou mais —até chegar a quase mil na década passada.

Mais interessante do que o aspecto quantitativo, as buscas digitais no arquivo permitem flagrar o progressivo transbordamento de "surreal" dos limites do jornalismo cultural. Confinada a princípio à crítica de arte (não só de artes plásticas, mas também de literatura, cinema etc.), a palavra passou a se aventurar com desenvoltura cada vez maior por outras áreas, em especial na editoria de política.

Os anos 1980 foram o marco inicial da expansão. Em 1981, Paulo Francis falava da "cena surreal" de Francelino Pereira, então governador de Minas Gerais, discursando sobre o seu estado em Nova York. Ainda na Ilustrada, no texto de um jornalista ligado às artes, o "surreal" começava a estender seus domínios.

Três anos depois, chegava ao editorial em que a Folha criticava as emissoras de TV pela "atitude surreal" de ignorar a campanha das Diretas Já. E desde então não parou mais de crescer, talvez porque, nas últimas décadas, o real tenha dado um jeito de ficar cada vez mais surreal.

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