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Gabriel Trigueiro

Contos mostram como Ralph Ellison virou ícone literário

Coletânea com primeiros textos do escritor chega agora ao Brasil

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Gabriel Trigueiro

Doutor em história comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

[RESUMO] Ralph Ellison (1914-1994) publicou apenas um livro de ficção em vida, o romance "Homem Invisível", mas esse relato sobre a experiência de ser negro nos EUA bastou para assegurar seu lugar no cânone da literatura do país no século 20. Coletânea com contos inéditos escritos antes de sua consagração chega agora ao Brasil, o que permite ver a formação da voz poderosa de um escritor enigmático, que intriga leitores pela sofisticação e ambiguidade com que tratava a questão racial, tanto na vida pessoal como na arte.

Ralph Ellison é um autor estranho e, talvez mais do que isso, ambíguo. Ao mesmo tempo em que integra o cânone da literatura norte-americana, sempre conservou, ainda que involuntariamente, algo de maldito.

"Voando para Casa e Outras Histórias", antologia de contos publicada originalmente em 1996 nos EUA, dois anos após a morte do escritor, acaba de ganhar sua primeira edição brasileira. São 14 histórias escritas entre 1937 e 1954, sendo que seis delas estavam inéditas. O livro foi organizado por John F. Callahan, editor de Ellison, após a revisão da viúva do autor.

A tradução da edição brasileira, feita por André Capilé, deu soluções criativas ao adaptar as marcas de oralidade do "black english" usado nos contos para a prosódia de um português de influência afroindígena, aquilo que Lélia Gonzalez chamou de "pretuguês". O resultado é formidável.

O escritor americano Ralph Ellison em Nova York, em 1986 - Keith Meyers/NYTNS

Homem negro, neto de escravos, Ellison ganhou notoriedade nos círculos literários no começo dos anos 1950, quando o racismo vigorava com ainda mais evidência e brutalidade nos EUA. No entanto, não costumava emitir declarações sobre a pauta dos direitos civis. Além disso, manifestava um temperamento conservador diante dos debates de seu tempo.

Pensava em si mesmo como herdeiro de autores modernistas como Joyce e T.S. Eliot. Aprendeu com eles a importância de símbolos, mitos e folclore popular na construção de uma escrita atenta aos particularismos regionais, mas cujo horizonte sempre foi aquilo que uma vez definiu como "a unidade básica da experiência humana".

Se é verdade que Ellison recorria a Faulkner, Hemingway e Dostoiévski, a fim de construir uma voz própria como escritor, era igualmente verdade que seu ouvido estava atento à dicção do blues, ao fraseado do jazz e ao sentido de épico dos spirituals e dos gospels.

O romance "Homem Invisível", única obra de ficção que publicou, foi lançado em 14 de abril de 1952, pela Random House. Com ele ganhou o National Book Award, um dos prêmios literários mais importantes dos EUA, de ficção no ano seguinte.

Embora rejeitasse as leituras de sua obra feitas sob um prisma autobiográfico, o protagonista jamais nomeado de seu romance compartilha uma série de traços comuns com sua trajetória. Sobretudo a experiência de lidar com variedades de racismo nos EUA: do Sul, legalmente segregado, ao Norte, com sua versão mais sutil e acanhada.

Ellison, nascido em Oklahoma em 1914, exerceu inúmeros subempregos no Sul, até que foi para Nova York, com o objetivo de se estabelecer financeiramente. Assim que chegou, na década de 1930, se tornou o protegido literário do famoso escritor Richard Wright ao se aventurar no mundo das letras.

Logo se aproximou do Partido Comunista norte-americano, que naquela época se referia aos negros como a "vanguarda da revolução". Não tardou, entretanto, para que se desiludisse e renunciasse ao seu recém-adquirido credo político. Um movimento semelhante ao do protagonista de "Homem Invisível" em relação à Irmandade, um grupo de orientação comunista.

Em entrevista à revista Paris Review, entretanto, Ellison retrucou seu entrevistador, que havia notado o paralelismo, nos seguintes termos: "Bom, em momento algum identifiquei a Irmandade como o Partido Comunista. Mas já que o senhor o fez, eu gostaria de recordá-lo de que ambos são brancos".

Admiradores ilustres e a questão racial

Aqui no Brasil, o jornalista Paulo Francis era um dos maiores entusiastas de Ellison. Francis havia se encantado com "Homem Invisível", um livro que considerava "admiravelmente bem escrito", ainda que "despolitizado". A opinião era tomada de empréstimo do ensaísta norte-americano Irving Howe, que havia escrito um texto violentamente crítico ao romance, na época de seu lançamento.

Francis classificava-o como um observador astuto da sociedade norte-americana e simpatizava sobretudo com sua visão de "sincretismo racial": a cultura negra deveria absorver os melhores elementos da cultura branca e, somente a partir daí, construir algo original e mais sofisticado. Ellison exemplificava sua visão com a cantora Ella Fitzgerald, que a seu ver teria "transformado e adensado" os músicos Rodgers e Hart, Cole Porter e George Gerswhin.

Ralph Ellison abordava a questão racial com ironia quase machadiana. Aliás, uma analogia possível com o Brasil seria a seguinte: enquanto Ellison tratava o tópico racial com a sutileza e a galhofa de Machado de Assis, James Baldwin, seu contemporâneo e um dos autores negros mais importantes dos EUA, representava uma literatura muito mais crua e combativa, a exemplo de Lima Barreto.

Nos EUA, Ellison foi aclamado por autores como Saul Bellow e John Cheever. O renomado crítico Harold Bloom, por sua vez, considerava-o "um autor magnífico" e dizia que seu livro "Homem Invisível" era um romance tão poderoso quanto "A Montanha Mágica", de Thomas Mann. Segundo uma anedota, Ellison era o autor negro favorito dos professores de literatura brancos.

Diante de tanto prestígio literário, havia a expectativa, por parte de ativistas dos direitos civis, de que ele, um intelectual negro com acesso a espaços de poder, encampasse a pauta da equidade racial e se mostrasse um de seus defensores mais entusiasmados.

No entanto, a política não estava entre seus principais interesses, e a sua arte, acreditava, deveria falar por si própria. Ellison era um esteta, um esnobe cultural e, como já afirmaram uma vez, "um obcecado com arte e cultura, mas alguém que sentia horror diante de sua politização".

O Ellison de "Homem Invisível" é um autor de humor afiado, ligeiro e cruel. É alguém que se diverte ao frustrar as expectativas do leitor branco que buscasse uma passagem de primeira classe para uma terra exótica e culturalmente fetichizada.

O romance não oferece conforto ou redenção. Rompe com a tradição de realismo social tão comum à ficção de autores negros da geração anterior —o exemplo mais notável é o do padrinho das letras do autor, Richard Wright— e eleva a literatura negra nos EUA ao mesmo nível de expressividade ficcional de um Henry James. Os personagens do livro são autoconscientes, intelectualmente complexos e moralmente ambíguos.

O contista

Se em "Homem Invisível" há uma fraseologia própria, em "Voando Para Casa e Outras Histórias" encontramos um escritor ainda à procura dessa voz particular. Enquanto não a encontra, não hesita em imitar seus mestres.

A sombra de Hemingway está sempre presente, sobretudo na construção dos diálogos. Assim como as passagens de tempo são estabelecidas à moda de um Faulkner, outra referência literária importante.

Nas histórias de Buster e Riley, dois meninos que exploram o mundo com aquele sentido épico que somente as crianças têm, a influência de Mark Twain, tanto na forma quanto no universo temático, é mais do que perceptível.

Os contos mais interessantes são o que abre e o que fecha o livro. No primeiro, "[Uma Farra no Parque]", grafado assim mesmo, entre colchetes, o linchamento de um homem negro é contado da perspectiva de um menino branco. A violência é gráfica e há descrição acurada de como a política se articulava na esfera local nos estados do Sul. No último, "Voando para Casa", um piloto negro acidentado se vê constrangido pelos limites e pelas expectativas impostas simultaneamente por brancos e negros.

Nos contos, de forma geral, não há a ironia sutil presente em "Homem Invisível", mas sim uma crueza seca, novamente à moda de Hemingway. No entanto, outra marca distintiva de seu romance —a construção de longas cenas de tensão emocional, racial e psicológica, que se resolvem com um sentido peculiar de humor— já estava presente em algumas histórias. É o caso do conto "[Tem Hora que é Brabo Acompanhar]", no qual uma mulher negra de pele clara, ao flertar com um homem negro em um bar, é percebida como branca.

"O Meganha de Hymie" aborda a violência policial no registro de realismo social que seria depois questionado pelo próprio autor. "Quem Dera Eu Tivesse Asas" retrata o papel da religião na formação de uma certa sensibilidade e visão de mundo conservadora dos negros nos EUA.

Na coletânea, como se vê, raiva e sentimentalismo, elementos estranhos ao Ellison tardio, ainda são moeda corrente.

Arte e transcendência

Como alguém disse uma vez, Ellison construiu sua obra pautado por três sentimentos: expectativa, orgulho e humilhação.

Em 2007, quando publicou uma biografia sobre ele, o crítico literário Arnold Rampersad afirmou que Ellison havia se afastado das questões relevantes às gerações mais jovens de escritores e intelectuais negros. Homens e mulheres que buscavam nele um mentor intelectual, uma liderança política, eram invariavelmente recebidos com uma atitude de apatia e de fria indiferença.

Grupos variados projetaram nele seus anseios e suas expectativas, mas quase sempre ignoraram o Ellison real, o ser humano em sua inteireza, complexidade, contradições e falhas. Seria injusto dizer que o escritor menosprezava o problema racial, mas não via nele um motor essencial para sua vida ou obra. Parecia se pautar por um otimismo inabalável, uma fé na capacidade de transcendência pela arte.

Talvez seu desejo mais ambicioso, sendo um dos principais autores e intelectuais negros de uma sociedade profundamente racista, fosse um dia conseguir responder à questão formulada por personagem de um de seus contos: "Por que você não pode simplesmente ser quem você é?".

Voando para Casa e Outras Histórias

  • Preço R$ 69,90 (240 págs.)
  • Autoria Ralph Ellison
  • Editora José Olympio
  • Tradução André Capilé

Homem Invisível

  • Preço R$ 99,90 (574 págs.)
  • Autoria Ralph Ellison
  • Editora ‎ José Olympio
  • Tradução Mauro Gama

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