A economia é a ciência humana que mais ambiciona governar as sociedades, e Delfim Netto, 89, é o economista brasileiro mais associado ao exercício do poder.
Dispôs dele, com espantosa amplitude, quando ministro da Fazenda de 1967 a 1974, tempos do dito milagre econômico do regime militar —ao qual ainda serviu na Agricultura (1979) e no Planejamento (1979-85).
Restabelecida a democracia, conquistou cinco mandatos consecutivos de deputado federal, o primeiro deles como constituinte.
Reassumiu improvável protagonismo na administração petista, tornando-se conselheiro de Luiz Inácio Lula da Silva e, principalmente, de Dilma Rousseff.
Convívio tão íntimo e prolongado com o poder dificilmente se daria sem manchas e tribulações em sua biografia —em ordem cronológica, da sua assinatura no AI-5, em 1968, até ser alvo da 49ª fase da Lava Jato, há poucos dias.
“O Animal Econômico” —coletânea de textos de Delfim, publicados na Folha de 1986 a 2017— revela o pensamento e as observações de um animal político. O termo do título alude a um tema habitual do colunista: as compulsões primitivas da espécie humana, coordenadas, nas civilizações modernas, pelos mercados.
“Espírito animal” foi como o célebre John Maynard Keynes descreveu instintos e emoções que impulsionam decisões de empresários e consumidores. Despertá-lo, insiste Delfim, é objetivo central da política econômica.
Paixões ideológicas e preferências acadêmicas podem prejudicar a apreciação do livro. O autor, decerto, coleciona críticos e desafetos de correntes variadas.
À esquerda, pelas memórias da ditadura; no campo liberal, pela defesa do Estado indutor do desenvolvimento e pelo malogro trágico do milagre econômico; de qualquer lado, pela maleabilidade de suas escolhas políticas.
Decerto seria ingênuo esperar opiniões isentas e distanciadas nos textos —nem eles são assim apresentados.
O que há para desfrutar é um caso raro de economista erudito e, ao mesmo tempo, com enorme experiência e senso prático, capaz de abordar assuntos complexos em espaço reduzido.
Desnecessário mencionar, além disso, seus talentos de frasista debochado, eficazes também em palestras e programas de televisão.
Com os artigos organizados em ordem cronológica pelo repórter especial da Folha Fernando Canzian, pode-se notar a evolução da agenda econômica e dos humores do ex-ministro.
No início, ele está a observar as peripécias da Nova República, lamentando com ironia as utopias de seus colegas constituintes ou condenando o estelionato eleitoral do Plano Cruzado.
Trata, também, de defender seu legado, rejeitando o epíteto de “década perdida” atribuído aos anos 1980.
Tarefa difícil, embora se deva reconhecer que os experimentos heterodoxos multiplicaram a inflação já altíssima herdada pelo governo civil de José Sarney.
Esta só seria domada pelo Plano Real, de 1994, que logo passaria a ser criticado por Delfim, em razão da insustentável combinação de dólar barato e juros estratosféricos.
Já os erros das gestões petistas, em especial de Dilma, não são apontados com tanta rapidez e contundência.
De mais interessante, as colunas a todo momento alertam para as limitações da ciência econômica e a importância da sustentação política, muito subestimadas por seus pares.
“Só o exercício da boa política pode salvar a boa teoria econômica”, diz um texto.
O animal econômico
Autor: Delfim Netto
Editora: Três Estrelas
Quanto: R$ 68,90 na Livraria da Folha (416 págs.)
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