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Fechamento de escolas e creches por coronavírus amplia desigualdade de gênero, diz estudo

Estudo aponta sobrecarga de tarefas domésticas e perdas de vagas em áreas que empregam mais mulheres

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São Paulo

O debate econômico tem sido dominado por análises sobre os sinais de forte contração da economia na esteira da Covid-19, os efeitos das diferentes estratégias de contenção do vírus e a urgência de medidas de proteção a setores mais vulneráveis.

Mas a essa lista começam a ser adicionados outros prováveis efeitos colaterais da crise. Pesquisadores de duas universidades americanas e uma alemã escreveram um artigo que debate o impacto da pandemia sobre a equidade entre mulheres e homens no mercado de trabalho.

Eles concluíram que os efeitos imediatos deverão ser negativos para mulheres, ainda que, no longo prazo, mudanças culturais possam favorecer um maior equilíbrio.

O estudo, intitulado “The Impact of Covid-19 on Gender Equality”, foi publicado para discussão pelo NBER (National Bureau of Economic Research), centro de pesquisa responsável por datar recessões nos Estados Unidos.

Participantes do ato Calcinhaço da Democracia, na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul. Mulheres protestaram contra machismo e falas de deputados sobre o Carnaval. Assembleia é a única do país que não tem deputada mulher.
Participantes do ato Calcinhaço da Democracia, na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul. Mulheres protestaram em março contra machismo e falas de deputados sobre o Carnaval. Assembleia é a única do país que não tem deputada mulher. - Giovanni Coletti/Divulgação

Os economistas —dois deles da Universidade Northwestern, um da Universidade da Califórnia e outra da Universidade de Mannheim— ressaltam que o fechamento de escolas e creches é um dos principais aspectos desta crise que ampliará as desigualdades de gênero.

O aumento da participação laboral feminina, nas últimas décadas, não eliminou o desequilíbrio na distribuição de tarefas domésticas entre homens e mulheres, o que inclui o cuidado com os filhos.

Segundo os pesquisadores, isso se deve ao fato de os homens estarem em profissões que pagam maiores salários e ainda exercerem um poder de barganha relativamente maior do que o das mulheres.

Normas sociais e culturais também são causas importantes da desigualdade. “Os fatores que levam a esses arranjos continuarão a existir [durante esta crise]”, diz um trecho do estudo.

O problema é que isso se dará em um cenário em que 1,5 bilhão de crianças está sem aulas presenciais, segundo a Unesco (braço das Nações Unidas dedicado à educação).

Nos Estados Unidos, as mulheres casadas empregadas em tempo integral são responsáveis por 60% das horas destinadas pela família ao cuidado com os filhos.

Se esse percentual se mantiver no tempo em que as escolas permanecerem fechadas, redundará em 12 horas semanais adicionais de atenção às crianças para as mães contra 8 para os pais.

“Na ausência de arranjos flexíveis de trabalho, uma outra consequência é que um dos cônjuges terá de parar, temporariamente, de trabalhar”, afirma trecho da pesquisa.

Com base na atual divisão de trabalho, esse ônus deverá recair sobre a mulher.

No Brasil, o desequilíbrio na divisão dos afazeres domésticos e cuidados com filhos também é grande.

Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram que, em 2018, as mulheres que tinham uma ocupação profissional dedicavam 18,5 horas semanais às tarefas da casa e da família, contra 10,3 horas destinadas pelos homens.

Segundo Lorena Hakak, professora da USP (Universidade de São Paulo) que estuda a economia da família, essa disparidade tende a se reproduzir nesta crise.

“Como a divisão do trabalho no domicílio é desbalanceada, isso deve se manter durante a quarentena”, diz.

Ela destaca que há disparidade nas divisões de tarefas domésticas mesmo entre profissionais com a mesma ocupação.

Dados do IBGE, de 2014, levantados pela pesquisadora mostra que o número de horas semanais dedicadas por médicas e médicos a afazeres domésticos era, respectivamente, 12,3 e 7, por exemplo.

“Como os médicos desempenham um papel profissional crucial nesta crise, essa área é um bom protótipo do desequilíbrio que pode ocorrer”, diz.

O grupo de estudiosos estrangeiros que escreveu sobre esse tema ressalta que as dificuldades de mulheres que já criam seus filhos sozinhas serão ainda mais agudas.

Outro alerta da pesquisa sobre o coronavírus se refere à maior vulnerabilidade de profissões mais tipicamente femininas às consequências do tipo de recessão que viveremos.

Crises anteriores, como a que se seguiu ao colapso financeiro de 2008, afetaram mais setores com grande fatia de emprego masculino, como a construção civil e a indústria.

Por que agora seria diferente? Segundo os estudiosos, devido aos canais econômicos que afetarão a demanda e a oferta. O isolamento social beneficiará profissões que consigam se adaptar melhor ao trabalho remoto.

Estatísticas dos EUA mostram que 28% dos homens ocupados atuam em segmentos em que mais de 50% dos trabalhadores já afirmavam, antes da pandemia, ser possível o teletrabalho.

Já a parcela de mulheres na mesma situação equivale a 22% da mão de obra feminina.

Ao mesmo tempo, a contração deverá ser maior para serviços como educação e atenção pessoal, nos quais prevalece a mão de obra feminina.

Os riscos desse cenário vão além de uma redução momentânea —e reversível— da participação laboral feminina. Estudos mostram que pausas na carreira das mulheres são associadas a efeitos negativos duradouros, como queda de seus salários no longo prazo.

Apesar da persistência desses aspectos negativos, nos últimos anos, pesquisadores também vinham analisando mudanças positivas relacionadas a gênero e trabalho.

Um estudo de Lorena, da USP, e Sergio Firpo, do Insper, investigou o impacto de mudanças na escolaridade e na participação laboral de mulheres casadas sobre a desigualdade de renda no país.

Eles concluíram que o aumento na fatia de esposas trabalhando assim como seu avanço salarial relativo ao de seus maridos contribuíram para uma queda na disparidade de rendimentos, medida pelo índice de Gini.

O indicador varia de 0 a 1 e, quanto mais alto for, aponta maior desigualdade.

Firpo e Lorena mostram que, se a participação das mulheres casadas no mercado de trabalho não tivesse aumentado desde 1992, o índice de Gini teria chegado a 2014 em 0,507 e não nos 0,499 registrados de fato.

Embora ainda ganhem, em média, bem menos do que os homens, as esposas tiveram um aumento salarial relativo aos maridos. Sem esse efeito, o índice de Gini, em 2014, seria 0,511.

“Tanto o aumento da participação das mulheres casadas no mercado como a queda de sua distância salarial em relação aos homens casados elevaram a renda do casal para um maior número de famílias, diminuindo as diferenças entre elas”, diz Lorena.

Outro fator analisado foi o impacto da queda nos prêmios educacionais, que são a fatia da renda associada aos anos de escolaridade a mais de um trabalhador.

No Brasil, ao contrário do que ocorre em vários países ricos, essa parcela salarial extra explicada pela conclusão do ensino médio ou superior vem caindo. Isso se deve ao aumento da oferta de mão de obra com maior escolaridade.

Lorena e Firpo descobriram que a queda dos prêmios salariais dos casais mais escolarizados também teve impacto significativo sobre a queda da desigualdade de renda no país. Sem esse movimento, o índice de Gini em 2014 seria 0,534.

Esses três fatores atuaram na direção contrária à de outros movimentos que frearam a queda da desigualdade no período estudado. Uma delas foi o aumento na fatia de casamentos entre mulheres e homens com muitos anos de estudo.

Com salários maiores —mesmo no contexto de queda dos prêmios educacionais-, a renda desses casais muito escolarizados é bem maior do que a de outros com menor qualificação.

“As pessoas parecem estar se selecionando mais. Há mais mulheres ricas casando com homens ricos e mais mulheres pobres casando com homens pobres. Isso não ocorre apenas no Brasil”, diz o economista Cézar Santos, da FGV/EPGE, que também estuda esse tema.

“Sem esse comportamento, sobre o qual a política pública, obviamente, não vai atuar, a desigualdade teria caído mais”, afirma o pesquisador.

Lorena ressalta que, no entanto, há canais – tanto de políticas públicas quanto empresariais —para estimular a continuação das outras tendências que contribuem para a queda da disparidade de renda.

“Como a maioria das mulheres casadas têm filhos, sua maior participação no mercado pode ser incentivada com mais creches de qualidade e com a adoção de licença parental”, diz ela.

No curto prazo, porém, a economista concorda com os pesquisadores estrangeiros que a pandemia pode causar reversões no avanço laboral das mulheres.

Apesar desses riscos de curto prazo, o estudo publicado pelo NBER também indica mudanças que, após a crise, podem ser favoráveis a elas, como a possibilidade de aumento do trabalho remoto.

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