Escalada do câmbio contraria projeções e dólar encosta em R$ 6

Moeda americana acumula alta de 45% em 2020; em dois meses, cotação extrapolou os R$ 5, patamar que, segundo Guedes, só seria alcançado se 'muita besteira' ocorresse

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São Paulo

Os mais espirituosos costumam dizer que o câmbio foi inventado para humilhar economistas –e tem sido assim durante a pandemia do coronavírus.

Em meado de abril, as projeções ainda discutiam a sustentação do dólar cotado a R$ 5. Foi apenas nesta segunda (4) que o boletim Focus do Banco Central, que reúne as projeções das principais instituições financeiras, abandonou a casa dos R$ 4 para o fim de 2020. Na semana passada, analistas e economistas apontavam a impossibilidade matemática de a cotação chegar a R$ 6.

Nesta quinta-feira (7), o dólar fechou a R$ 5,8360, alta de 2,3%. Está a R$ 0,164 de chegar ao patamar simbólico de R$ 6,00 –e a R$ 2,02 de bater o recorde de maior alta real (que leva em conta a inflação). O turismo está a R$ 6,09.

Ministro da Economia, Paulo Guedes, durante entrevista à imprensa em Brasília
Ministro da Economia, Paulo Guedes, durante entrevista à imprensa em Brasília - Xinhua/Lucio Tavora

A escalada da moeda americana contrariou também as projeções do ministro da Economia Paulo Guedes.

Há apenas dois meses, em 5 de março, os R$ 5 pareciam distantes quando o ministro Guedes disse que o dólar iria a este patamar caso "muita besteira" fosse feita. Àquela época, o dólar estava a R$ 4,65.

"Pode chegar a R$ 5? Ué, se o presidente pedir para sair, se todo mundo pedir para sair. É um câmbio que flutua, se fizer muita besteira, ele pode ir para esse nível", disse Guedes na ocasião.

Agora, os R$ 6 são uma possibilidade cada vez mais real.

“Os R$ 6 é palpável, já está na nossa cara. É bem provável que chegue e pode até ultrapassar”, diz José Falcão, analista de investimentos da Easynvest.

O avanço rumo ao novo patamar veio após o Banco Central cortar a taxa básica de juros de 3,75% para 3% ao ano nesta quarta (6), uma redução maior do que a esperada pelo mercado.

O recorde do dólar, porém, é nominal, ou seja, não leva a inflação em conta. Em 2002, entre o primeiro e o segundo turno das eleições que levaram Lula à Presidência, a moeda dos EUA foi ao recorde de R$ 4,00 durante o pregão –fechou a R$ 3,99. Hoje, corrigido pela inflação brasileira e americana, esse valor equivale a cerca de R$ 7,86.

No gráfico abaixo, é possível comparar a diferença do dólar nominal com o dólar real. A conta no gráfico é feita com base no dólar médio do mês e leva em consideração as inflações brasileira e americana.

Desde então, a saída de Sergio Moro, ex-ministro da Justiça, do governo de Jair Bolsonaro, e suas implicações políticas agravam a turbulência em Brasília, que vive uma crise entre o Executivo e demais poderes, com a pandemia de coronavírus e a crise econômica em decorrência dos esforços para contê-la como pano de fundo.

“A soma de inércia econômica com risco político parecem não arrefecer e trazem o dólar mais para perto de R$ 6 do que de valores de outrora”, diz Ilan Arbetman, analista da Ativa Investimentos.

“Nada é impossível no cenário que estamos vivendo. Tudo está contribuindo para o câmbio pressionado. Não descarto a possibilidade de chegar a R$ 6”, diz afirma Cristiane Quartaroli, economista do banco Ourinvest.

Neste cenário, o dólar acumula alta de 45% no ano, o maior salto desde 2015, ano em que a moeda subiu 49%. Dentre todas as divisas globais, o real é a que mais perde valor em 2020.

Há quem veja, contudo, maior probabilidade de queda do dólar. “Acredito que não chega a R$ 6. Mas não vejo tanta força para chegar lá por enquanto. Claro, se não houver mais nenhuma surpresa”, diz Fabrizio Velloni, chefe da mesa de câmbio da Frente Corretora. Ele aponta que a alta foi muito acentuada e “nem tanto racional”.

“Essa alta é muito grande, não é trivial. Ir para R$ 6 ou para R$ 5,5 é muito rápido e muito fácil, mas apostar em novas altas é um risco. Pode chegar nos R$ 6, mas também pode voltar no R$ 4”, diz Michael Viriato, professor de finanças do Insper.

Ele aponta que como a alta é expressiva fica menos provável que o dólar siga esta tendência.

“O Brasil começa a ficar muito barato, o que pode atrair o investidor estrangeiro. Mas, neste momento, com aversão a risco elevada pela pandemia, ele se retrai”, diz Viriato.

Estrangeiros têm retirado os investimentos do país desde 2019, o que contribui para o dólar em alta. Na Bolsa são R$ 114,8 bilhões a menos de aportes estrangeiros desde janeiro do ano passado até esta segunda (4), segundo dados da B3.

Eles também saem da renda-fixa, com renovações da mínima histórica de juros que deixa carry trade —prática de investimento em que o ganho está na diferença do câmbio e do juros— menos vantajoso.

No carry trade, o investidor toma dinheiro a uma taxa de juros menor em um país, para aplicá-lo em outro, com outra moeda, onde o juro é maior. Com a Selic 3% e perspectiva que caia para 2,25%, investir no Brasil fica menos vantajoso, o que contribui com uma fuga de dólares do país, elevando assim sua cotação.

“Depois da surpresa no corte da Selic, já esperávamos alta do dólar. É algo que acelera a saída do capital do país”, diz Falcão da Easynvest.

Outro ponto que contribui para a alta do dólar é a deterioração fiscal do Brasil, com os gastos do governo para atenuar os efeitos econômicos da pandemia de Covid-19.

A situação se reflete no risco-país brasileiro medido pelo CDS (Credit Default Swap), que funciona como um termômetro informal da confiança dos investidores em relação a economias, especialmente as emergentes. Se o indicador sobe, é um sinal de que os investidores temem o futuro financeiro do país, se ele cai, o recado é o inverso: sinaliza aumento da confiança em relação à capacidade de o país saldar suas dívidas.

No ano, o CDS brasileiro acumula alta de 227%, a 327 pontos, patamar semelhante a 2016, quando o índice iniciou uma tendência de queda após o impeachment de Dilma Rousseff.

Com base nos problemas econômicos gerados pela pandemia de coronavírus e ao agravamento da crise política, a agência de classificação de risco Fitch alterou a perspectiva para a nota de crédito do Brasil de estável para negativa na terça (5). Atualmente a nota do Brasil é BB-, grau de risco semelhante ao de países como Uzbequistão e Guatemala.

A mudança na perspectiva e receio quanto a eventuais reduções na nota do Brasil também contribuem para a perda de valor do real, apontam especialistas.

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