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Crise empurra mundo para lado dos que se preocupam com desigualdade, diz Thomas Piketty

Economista, que lança agora no Brasil 'Capital e Ideologia', vê tendência a enfocar o social

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São Paulo

O economista francês Thomas Piketty, 49, está de volta com um novo livro, “Capital e Ideologia”, lançado no Brasil pela Intrínseca.

Em visita no ano passado ao seu World Inequality Lab, na Escola de Economia de Paris, vi que um exemplar da obra que o projetou para o mundo, “O Capital do Século 21”, servia de peso para estabilizar a base de um painel promocional do livro, para que ele não tombasse.

Se a função se repetir, “Capital e Ideologia” será ainda melhor.

Thomas Piketty, 49; formado em matemática na Escola Normal Superior de Paris, é doutor em economia na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais; professor da Escola de Economia de Paris desde 2007 e professor da Escola de Altos Estudos desde 2000, é codiretor do World Inequality Lab/World Inequality Database e autor do best-seller “O Capital do Século 21”
Thomas Piketty, 49; formado em matemática na Escola Normal Superior de Paris, é doutor em economia na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais; professor da Escola de Economia de Paris desde 2007 e professor da Escola de Altos Estudos desde 2000, é codiretor do World Inequality Lab/World Inequality Database e autor do best-seller “O Capital do Século 21” - Eduardo Knapp - 27.set.2017/Folhapress

Outro já best-seller épico, o novo livro do francês supera as mil páginas, três centenas a mais que o anterior, de 2014.

Agora, Piketty aprofunda suas exaustivas pesquisas para explicitar, entre muitas coisas, o que autor define como “ideologia dominante” —um conjunto de regras legais adotado internacionalmente que mantém a desigualdade de renda elevada em todo o mundo.

Algumas vezes em tom sombrio, o livro apresenta um diagnóstico amplo para um problema muito complexo, e de difícil solução. Mas, no curso dos acontecimentos atuais, Piketty começa a enxergar rachaduras que colocam em xeque esse mecanismo.

Em “O Capital no Século 21”, o sr. trouxe evidências de como os eventos extremos do século passado destruíram a riqueza e lançaram as bases para uma tributação mais progressiva, que levou à redução da desigualdade. A partir da década de 1980, houve uma reversão. Agora, a concentração de renda cresce há 40 anos. Em “Capital e Ideologia”, há um exame de como a política falhou em acompanhar as mudanças econômicas e em responder ao problema. O sr. sugere que, se não transformarmos o sistema para torná-lo mais igualitário e sustentável entre os países e dentro deles, o populismo xenofóbico poderá destruir o que chama de “globalização hipercapitalista e digital”. A que distância estamos disso e como consertar? 
Sim, mas talvez eu esteja um pouco mais otimista do que isso agora. A despeito do aumento da desigualdade nas décadas recentes, se compararmos a situação de hoje com a de cem anos atrás, ou com o século 19, a desigualdade é bem menor do que antes.

Uma das exceções é o Brasil, onde a desigualdade ainda é muito grande, maior até do que na Europa do século 19 ou do começo do século 20.

Mas, na maioria dos países, ela caiu. Há uma evolução de longo prazo que vai na direção correta, e creio que podemos continuar nessa direção.

Tanto a crise financeira de 2008 quanto a atual pandemia em 2020 poderiam nos ajudar a compreender que precisamos de um sistema econômico mais equilibrado, justo e sustentável do que o que temos tido nas últimas décadas.

Embora uma das lições do meu livro seja que as crises não são necessariamente suficientes para levar as coisas para o lado certo, creio que estejamos em um momento de bifurcação.

Não tenho como prever o futuro, mas o que sabemos através da história é que existem soluções econômicas diferentes para confrontar problemas.

No contexto atual, talvez seja o caso de pensarmos em soluções mais globais para questões como a desigualdade.

Há alguns sinais de que a crise atual possa levar nessa direção, como na Europa, onde os membros poderão vir a decidir de forma conjunta o que fazer com o endividamento dos países e as linhas de um plano de recuperação.

Essa é uma grande novidade, pois até agora a Europa foi apenas na direção de uma área de livre-comércio e de circulação de capitais. Mas de pouco espaço para um sistema de tributação comum. Isso é algo importante que pode sair desta crise e que precisamos acompanhar de perto.

Mesmo enxergando a crise do coronavírus como chance de mudança, o que vemos neste momento, ao contrário, é que as respostas dos governos à epidemia talvez sejam um vetor de aumento da desigualdade. Países pobres e endividados vão sofrer mais, trabalhadores precários vão perder renda, e os grandes pacotes financeiros têm ajudado mais a sustentar os mercados e as grandes empresas.
Você tem toda a razão. O primeiro impacto do coronavírus será o de um aumento da desigualdade entre os países e dentro deles também. Os países ricos provavelmente ficarão até mais obcecados com eles mesmos, sem se preocupar realmente com o que está acontecendo com outras regiões.

E muitos dos países mais pobres não têm sistemas de proteção ou renda básica e serão afetados de uma maneira mais sinistra.

Mesmo em países como a França, existem trabalhadores temporários ou em contratos flexíveis que não têm acesso a nenhum tipo de benefício. É o mesmo tipo de coisa que acontece em países como o Brasil.

Mas a grande pergunta é se esse cenário será ou não um incentivo para que os governos acelerem a criação de algum tipo de rede de proteção.

A grande dificuldade é que o sistema econômico internacional possui uma ideologia dominante que ainda torna muito difícil a países como o Brasil ou a Índia, por exemplo, adotarem sistemas de taxação mais progressiva, que os torne menos desiguais e que possam financiar políticas sociais.

Individualmente, o maior entrave aos países na adoção de políticas de taxação mais progressiva parece ser o fato de o mundo viver hoje uma superfinanceirização econômica e de livre trânsito de capitais. O dinheiro pode simplesmente ir embora de onde é mais tributado. Não é difícil atacar o que o sr. chama de “ideologia dominante” e a desigualdade sem uma ação conjunta dos países na mesma direção?
Os países poderiam fazer mais, e países como o Brasil deveriam pensar em uma reforma tributária progressiva sem esperar pelo resto do mundo.

Mas, claramente, com o fluxo internacional de capitais que temos no mundo hoje, sem uma taxação comum entre os países, e com a atual uma opacidade completa, fica muito difícil para os países pobres aumentarem individualmente os impostos sobre os ricos —e eles acabam recaindo sobre os mais pobres e as classes médias.

Por isso os países ricos têm muita responsabilidade. Por isso qualquer coisa que venha a acontecer nos Estados Unidos e na Europa na saída desta crise será muito importante para os outros países do mundo.

Esse sistema de livre trânsito de capitais precisa ser mudado, pois construímos isso sem um outro, de taxação e regulação comum.

Construímos um direto sagrado que os indivíduos detêm de poderem se desenvolver usando toda a infraestrutura e o sistema educacional de seus países para depois, no clique de um botão, mandar seu dinheiro para outro lugar sem que nenhuma entidade administrativa possa fazer algo a respeito.

Mas não há nada de natural nisso. Isso faz parte de um sistema legal muito sofisticado e internacional, que precisa ser modificado.

Mas alguns países podem individualmente tentar mudar esses parâmetros, exigindo algum tipo de taxação comum ou mais abertura de informação sobre as origens desses capitais.

Nos Estados Unidos, o presidente Barack Obama conseguiu exigir algumas informações dos bancos suíços sobre cidadãos americanos com a ameaça de retirar a licença bancária dessas instituições.

Também nos Estados Unidos, os pré-candidatos Bernie Sanders e Elizabeth Warren propuseram criar um imposto sobre riqueza. Esse é o tipo de debate que vai voltar muitas vezes ainda, particularmente os Estados Unidos.

Mas também no Reino Unido e em países como a Alemanha, onde há muita pressão pela adoção de uma taxação maior sobre a riqueza.

O interessante dessas propostas nos Estados Unidos é que elas vieram acompanhadas de uma “taxa de saída”. Se alguém quiser tirar o dinheiro do país, teria de pagar um imposto de 40%. E isso é algo muito diferente da livre circulação de capital.

Olhando padrões eleitorais recentes, o sr. afirma no livro que os partidos de centro-esquerda se tornaram partidos da elite instruída. O sr. usa um termo relacionado a castas, “esquerda brâmane”, e diz que ela desfruta hoje de muitos dos benefícios da tradicional “direita comerciante”. Isso teria ampliado a resistência a uma tributação mais progressiva. Se a centro-esquerda intelectual está nessa, de onde, então, poderia surgir a pressão política para avançar na direção de uma sociedade mais igualitária?
Acho que as coisas estão mudando agora. Se olharmos para o que aconteceu nas primárias nos Estados Unidos, Warren e Sanders obtiveram um apoio muito grande do eleitorado abaixo dos 50 anos, embora isso não tenha sido suficiente para levá-los adiante.

Mas, a médio prazo, as pessoas como menos de 50 anos hoje vão se tornar mais importantes mais à frente. Muitos vão ficar mais conservadores quando envelhecerem, mas muitos, não. E lembre-se de que a proposta de taxar a riqueza de forma mais progressiva teve apoio muito forte, mesmo entre os republicanos.

É a primeira vez na história dos EUA que isso começou a ser discutido de uma maneira majoritária. Creio inclusive que Joe Biden terá de tomar emprestado algumas dessas ideias na sua campanha se quiser enfrentar o desafio que tem pela frente.

Há uma evolução muito grande nessa direção, e vejo isso acontecendo na Alemanha também, com o partido social-democrata.

Isso vem ocorrendo justamente porque essa aliança entre o que chamo de “esquerda brâmane” e “direita comerciante” está empurrando o sistema em direção a uma contradição.

Pois é evidente que as classes médias e os mais pobres não estão satisfeitos com as condições a que a globalização tem levado o mundo e com o funcionamento do sistema econômico.

Como disse, estamos em um um ponto de bifurcação. Creio que muitos eleitores estão reconhecendo que a situação ficou muito ruim tendo à frente líderes malucos como [Donald] Trump e [Jair] Bolsonaro em tempos difíceis.

Creio que a crise está empurrando o mundo mais para o lado dos que estão preocupados com o lado social e com a distribuição de renda.

Estou seguindo muito de perto o que vem acontecendo na Europa. Se esse nosso sistema opaco e de decisões somente por unanimidade não entregar o que as pessoas esperam, e ficar apenas nos pacotes trilionários, com muito dinheiro sendo jogado no mercado, creio que teremos uma reviravolta entre os eleitores.

No fim das contas, todas as grandes decisões financeiras e econômicas no fundo pertencem a todos aos cidadãos, e não apenas a pequenos grupos de burocratas.

E o esforço que tenho feito no livro e com a World Economic Database [plataforma de livre consulta sobre distribuição de renda] é o de democratizar esse tipo de informação histórica e econômica. No fim das contas, é a mobilização social que pode ajudar a reduzir a desigualdade.

Como economista preocupado com essa questão, como vê as perspectivas de um país extremamente desigual, populoso e pobre como o Brasil? Estamos no meio de uma pandemia, altamente endividados e governados por um presidente belicoso como Jair Bolsonaro. 
Espero que as pessoas que votaram em Bolsonaro e contra o PT consigam agora mudar a sua visão de mundo.

Não sou muito otimista quanto a isso, mas algumas vezes na história vimos inclusive governos de direita mudando radicalmente de posicionamento e plataforma diante de pressões sociais.

Se olharmos para o que o PT fez no Brasil, houve boas políticas para melhorar a situação dos 50% mais pobres, sobretudo com a política de aumentos reais para o salário mínimo e o Bolsa Família.

Mas ficaram faltando as reformas estruturais, como uma modificação no sistema tributário no sentido de uma taxação mais progressiva.

No fim, isso acabou contribuindo para a decepção da sociedade com o PT.

Muitas vezes é preciso pensar também em reformas dentro do próprio sistema político.

No Brasil, mesmo sendo eleito com 60% dos votos, o presidente pode não conseguir conquistar maioria no Congresso. E isso não é uma mudança simples de ser feita.

Na França, tínhamos um sistema político até 1945 em que o Senado não era escolhido pelo voto popular, e era muito conservador, com poder de veto em quase todas as mudanças sociais ou fiscais.

Em 1945, os socialistas se tornaram fortes o suficiente para mudar o sistema eleitoral, e muitas reformas se seguiram na seguridade social e no sistema de taxação progressiva.

Nos EUA, foi preciso mudar a Constituição para que fosse criado um Imposto de Renda federal, em 1913, levando o país nas décadas seguintes a ter o sistema de taxação mais progressivo da história.

Portanto, muito frequentemente alterações constitucionais como essas são críticas para levar adiante as grandes mudanças econômicas e sociais.

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