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Desintegração econômica e fragmentação política na América do Sul

Ocorrência de baixa interdependência econômica e crescentes polarizações políticas é a receita para o fracasso civilizatório

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Pedro Silva Barros
Latinoamérica21

A retomada do crescimento econômico pós-Covid-19 na América do Sul deve ser muito mais lenta do que em qualquer outra região do mundo.

Dois fenômenos que já vinham ocorrendo antes da pandemia respondem por parte significativa desse desastre regional sem precedentes: a desintegração econômica e a fragmentação política. O maior país da América do Sul perdeu o protagonismo em ambos os temas e não há nenhum vizinho capaz de substituí-lo.

A América do Sul apresenta um nível de comércio intrarregional historicamente baixo, e algo entre 15 e 20% total do que os países da região compram e vendem é feito com os vizinhos. Entre 2004 e 2017, 17% das exportações do Brasil se destinaram à América do Sul. Esse valor caiu para 15% em 2018 e apenas 12% em 2019. Em 2020, menos de 10% das vendas totais do Brasil tem tido como destino o conjunto dos países sul-americanos.

O presidente da Argentina, Alberto Fernández, à dir., ao lado do chanceler Felipe Solá durante Cúpula do Mercosul a partir da residência oficial, em Buenos Aires
O presidente da Argentina, Alberto Fernández, à dir., e o chanceler Felipe Solá participam de Cúpula do Mercosul da residência oficial, em Buenos Aires - Esteban Collazo/Presidência da Argentina/AFP

Esse fenômeno é especialmente grave quando se leva em conta a composição das exportações para as diferentes regiões. O comércio intrarregional é muito mais intensivo em manufaturas. Do total exportado pelo Brasil para a América do Sul, mais de 80% é de produtos industrializados, para Europa 35%, para a China menos de 3%. Um mesmo valor exportado pelo Brasil para a Argentina gera, em média, cinco vezes mais empregos do que para a China.

A reprimarização das economias e das exportações dos países sul-americanos tende a torná-los menos complementares e mais competidores entre si. No primeiro semestre de 2020, a corrente de comércio do Brasil com a América do Sul caiu 42% em relação ao mesmo período de 2019, queda sete vezes maior do que o comércio do Brasil com o resto do mundo, que diminuiu 6%.

Ao mesmo tempo em que se desintegra comercialmente, a região se fragmenta politicamente, tanto entre os países como dentro de cada um deles. Em 2019, ocorreram protestos sociais importantes no Chile, Peru e Equador, cujas tensões de fundo ainda não foram resolvidas. Na Bolívia, o governo interino já adiou a data das eleições por três vezes. Na Venezuela, a crise se agrava e parece que a capacidade dos países vizinhos para fomentar o diálogo ou respaldar eventual transição política é cada vez menor.

A agenda de governança regional que incluía a totalidade dos países, cujo maior exemplo era a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), foi sendo substituída por iniciativas fracionadas, como o Fórum Prosul e o Grupo de Lima, com ausência de institucionalidade e pouco ou nenhum resultado concreto. As limitações dessas novas iniciativas de governança regional se tornaram mais evidentes durante a pandemia.

Organizações regionais como a União Europeia, a União Africana e o Sistema de Integração Centro-Americano (SICA) conseguiram tanto elaborar planos regionais para o combate à propagação da Covid-19 como construir ações de estímulo ao comércio intrarregional e propostas conjuntas para a retomada do crescimento. A América do Sul falhou em todos os casos.

Entre 2018 e 2019, havia desativado o Conselho Sul-Americano de Saúde e o Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde, ambos ligados à Unasul, sem colocar nada em seus lugares. Na Europa, na África e na América Central foram as respectivas burocracias das organizações regionais que catalisaram as propostas e construíram a agenda de retomada econômica. No caso da África e da América Central, essas organizações cumpriram papel importante na gestão de recursos de cooperação internacional.

Nos últimos poucos anos, foi perdida parte significativa do acervo da integração em diferentes áreas, como infraestrutura e defesa. A carteira de projetos da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), criada em 2000 no marco da primeira reunião dos doze presidentes do subcontinente, deixou de ser atualizada em 2017. O Conselho de Defesa Sul-Americano também deixou de se reunir.

Em qualquer momento histórico ou área geográfica, a ocorrência concomitante de baixa interdependência econômica e crescentes polarizações políticas é a receita para o fracasso civilizatório. O vazio da concertação regional abre espaço para maior presença e ingerência de potências externas. A América do Sul está agora mais vulnerável para ser palco de disputas extrarregionais.

O trágico para a América do Sul é que os fenômenos da fragmentação política e da governança regional e da desintegração econômico-comercial têm-se retroalimentado, com mais intensidade durante a pandemia, formando uma espiral que parece não ter fim.

Na primeira quinzena de setembro, presidentes da vários dos países da região vão se reunir virtualmente em uma Cúpula do Fórum Prosul, que inicialmente estava prevista para março. Espera-se que o tamanho da crise na América do Sul e as respostas regionais exitosas em outras partes do mundo sensibilizem os chefes de Estado para a necessidade de se retomar a concertação regional com institucionalidade própria. De imediato, reativando as instâncias relacionadas à saúde e à retomada econômica, particularmente em infraestrutura e financiamento e garantias para o comércio intrarregional.

Pedro Silva Barros é economista, doutor em em Integração Latino-Americana (PROLAM-USP). Trabalha em Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Ele foi Diretor de Assuntos Econômicos da União das Nações Sul-Americanas (UNASUL).

www.latinoamerica21.com, um projeto plural que dissemina diferentes visões da América Latina.

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