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Guilherme Guimarães Feliciano e José Antonio Saud

Administração pública e Judiciário não são culpados pela saída da Ford

Há um vácuo quanto às garantias sociais que se devem exigir de multinacionais que se estabelecem no Basil com incentivo

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Guilherme Guimarães Feliciano

Professor associado da Faculdade de Direito da USP e juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté (SP); ex-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (2017-19)

José Antonio Saud

Empresário e engenheiro civil, pós-graduado em gerência de cidades, é prefeito de Taubaté (2021-2024).

A Folha noticiou, no último dia 15 de janeiro, que a Ford acumula aproximadamente 3.530 processos trabalhistas no Brasil, totalizando um valor estimado de R$ 696,55 milhões de possíveis débitos. A estimativa é razoável: apenas em Taubaté (SP), das 280 ações pendentes de quitação, as três de maior valor (sendo uma coletiva) somam cerca de R$ 14 milhões.

Apurar essa situação processual tornou-se particularmente relevante porque, quatro dias antes, a Ford anunciara o fechamento de suas fábricas no Brasil, à exceção do Centro de Desenvolvimento de Produto, na Bahia, do Campo de Provas, em Tatuí, e da sede regional em São Paulo. Isto terá um custo social imenso, como se pode supor.

Em Camaçari (BA), estimam-se 12 mil desempregados, pela consequente eliminação de empregos diretos e indiretos. Já em Taubaté, ao lado dos 830 trabalhadores que perderão empregos diretos, estimam-se perdas prontas de empregos indiretos entre 1.500 e 2.000, que poderão chegar a 5.000, se considerarmos, ao longo dos meses, todas as cadeias de fornecimento que alimentavam a fábrica. Isto trará, ademais, um sensível incremento no total de ações judiciais novas perante as duas varas trabalhistas do município, assim como um decréscimo ponderável no consumo interno e na própria arrecadação tributária.

Por tudo isso, como seria de se esperar –mormente pela sanha brasileira de justificar reveses engendrando inimigos imaginários (o que, aliás, é muito próprio do “homem cordial” descrito por Sérgio Buarque de Holanda)–, o dia seguinte foi o da eleição dos “culpados” (todos na esfera pública): o(s) governo(s)? A Justiça do Trabalho? A legislação trabalhista? Muito provavelmente, todos esses elementos, somados, não compõem a causa eficiente da decisão final. Se não, vejamos.

Principiemos pela administração pública. Não se pode razoavelmente acusá-la de ter sido indiferente às “necessidades” da empresa para manter no Brasil plantas competitivas. No plano federal, o BNDES disponibilizou, no curso das décadas, divisas vultosas para que a companhia se mantivesse no Brasil e expandisse sua produção.

No momento em que se informou a abrupta interrupção das linhas de montagem, havia dois contratos de financiamento ativos, de 2014 e de 2017, importando em R$ 335 milhões; e, em paralelo, trinta contratos indiretos de financiamento, por intermédio de outros agentes financeiros, totalizando mais R$ 54,2 milhões. Fazendas estaduais também fizeram a sua parte: a planta de Camaçari, por ex., obteve expressivos incentivos fiscais para o ICMS da produção local (que, como se sabe, é tributo estadual). Diga-se o mesmo, enfim, dos erários municipais: em Taubaté, por exemplo, a Ford contou com isenção de mais de R$ 4 milhões, ao longo dos últimos cinco anos, em impostos municipais (IPTU e ISS).

Diante desse quadro, a discussão relevante, do ponto de vista jurídico-legal, passa a ser outra: há um claro vácuo nacional quanto às garantias sociais que se devem exigir de empresas multinacionais que se estabelecem no país com incentivos estatais ou paraestatais, como renúncias fiscais e empréstimos de bancos de fomento.

Convirá discutir, no Congresso Nacional, um modelo legal semelhante àquele que o estado do Paraná instituiu, a partir da lei 15.426/2007, para as empresas que recebem incentivos fiscais destinados à implantação ou expansão de atividades no território estadual: obrigação de manutenção do nível de emprego e vedação de dispensa coletiva de trabalhadores (ressalvando-se os casos de justa causa –que são individuais– e a motivação financeira obstativa da continuidade da atividade econômica, “si et quando” devidamente comprovada pelo beneficiário), ao lado de obrigações ligadas à (re)qualificação dos obreiros.

Tampouco se pode culpar, com o rigor do bom senso, o Judiciário (i.e., a Justiça do Trabalho) ou o Legislativo (i.e., a legislação trabalhista). Basta ver que a Ford marcou a aurora da indústria automotiva no Brasil, em 1919, com a montagem do Ford “T”, permanecendo por aqui durante mais de 100 anos, sob os rigores da legislação social pré-consolidada (por um quarto de século) e, na sequência, sob as tutelas da Consolidação das Leis do Trabalho (e da Justiça do Trabalho), nos seus quase oitenta anos de existência.

Fecha as portas, aliás, justamente agora, quando, na cantilena dos neoliberais, estaríamos diante da “modernização trabalhista” promovida pela lei 13.467/2017. Nada mais antidiscursivo. Observe-se, ademais, que, antes de fechar as plantas brasileiras, a Ford as fechou na França (2019, em Blanquefort, quando se propôs a pagar indenização média de 190 mil euros por trabalhador, mais 20 milhões de euros ao Estado francês), na Austrália (2016, em Broadmeadows e Geelong) e na Inglaterra (2002, em Dagenham), entre outras. Isso significaria, então, que o Direito do Trabalho –e o ramo judiciário que o aplica– seria mais “rigoroso” na França, na Austrália e na Inglaterra? Responda-se positiva ou negativamente, o argumento de que a “culpa” é do nosso sistema jurídico e judiciário (o “pior” do mundo) cai por terra.

A Ford tem fechado as suas plantas basicamente porque, na era da “indústria 4.0”, têm reestruturado suas linhas produtivas e suas operações comerciais, exigindo cada vez menos força humana de trabalho e espaços físicos alentados. Outras empresas seguirão essa tendência. Em paralelo, no mundo do dever-ser, o art. 7º da nossa Constituição segue sem qualquer regulamentação para os seus incisos I e XVII, que preveem “relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa” e “proteção em face da automação”. Então, a pergunta correta a se fazer não é aquela que esquadrinha culpados. É outra: a que indaga como lidaremos, doravante, com a responsabilidade social das empresas. Já não bastam as boas intenções.

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