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Procuradores, juízes e servidores recebem extras na crise da Covid

Entidades chegam a pedir uso de economias feitas na pandemia para quitar passivos e defendem legalidade de pagamentos

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Brasília

Procuradores, magistrados e servidores receberam pagamentos extras atrasados em meio à crise da Covid-19. Entidades chegaram a pedir o uso de economias feitas na pandemia para quitar dívidas.

Parte do Orçamento de 2020 foi poupada com a elite do funcionalismo em home office no ano passado. Órgãos da União gastaram menos com diárias, combustíveis, passagens, estagiários, entre outras despesas.

Nesse cenário, as categorias cobraram passivos administrativos, que, na prática, são dívidas trabalhistas. Entidades de classe defendem a legalidade da quitação. Os pagamentos são alvo de crítica de economistas.

Servidores pediram, por exemplo, vantagens por ocupar cargo comissionado, licença-prêmio e adicional por tempo de serviço.

Juízes e procuradores, por sua vez, reivindicaram pagamento e mudança do índice de correção monetária da chamada PAE (parcela autônoma de equivalência) por outro mais vantajoso. O passivo surgiu nos anos 1990, quando vencimentos do Judiciário foram equiparados aos do Legislativo.

Magistrados pleitearam ainda recebimento de gratificação por exercício cumulativo de jurisdição. Isso ocorre, por exemplo, ao se atuar em duas varas.

Procurados pela Folha desde terça-feira (26), o CJF (Conselho da Justiça Federal) e o MPU (Ministério Público da União) não responderam. Os órgãos não informaram a economia feita nem o montante pago em passivos administrativos.

De acordo com o Siga Brasil —ferramenta do Senado de acompanhamento do Orçamento—, o MPU, comandado pelo procurador-geral Augusto Aras, pagou ao menos R$ 15 milhões em correção monetária de PAE em dezembro.

A Justiça Federal quitou ao menos outros R$ 39,2 milhões de passivos, apontou o painel. Apesar de o CJF não fornecer dados, o ministro Humberto Martins, presidente do órgão e do STJ (Superior Tribunal de Justiça), anunciou os pagamentos.

"Dentro do Orçamento estamos quitando toda a dívida da Justiça Federal com os servidores e com os juízes até o dia 31 de dezembro de 2020", disse em 26 de novembro, durante o Encontro Nacional do Poder Judiciário.

O CSJT (Conselho Superior da Justiça do Trabalho) pagou apenas uma parte dos passivos —R$ 110 milhões. À Folha o órgão afirmou que a economia feita no ano passado foi de R$ 538,5 milhões.

Parte dos recursos previstos não foi usada. A medida contrariou juízes, que reclamaram ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

A pressão por pagamentos, no entanto, partiu de várias frentes. Movimentações se intensificaram em dezembro, quando gastos precisam ser feitos antes de o ano virar.

No dia 14 de dezembro, o Sindjus-DF (sindicato dos servidores do Judiciário e MP da União) enviou ofício a 23 órgãos para pedir pagamento de passivos. Receberam a demanda todos os tribunais superiores e conselhos em Brasília, tribunais regionais e a PGR (Procuradoria-Geral da República).

Segundo o coordenador-geral José Rodrigues da Costa Neto, houve "redução de gastos e consequente economia expressiva aos cofres públicos", enquanto "o poder aquisitivo dos servidores do Judiciário e do MPU foi demasiadamente achatado".

De acordo com o relatório Justiça em Números 2020, servidores da Justiça Federal custam à União, em média, R$ 22,7 mil por mês. Já funcionários da Justiça do Trabalho demandam R$ 23 mil.

O sindicalista escreveu que "mostra-se indiscutível a necessidade deste órgão de utilizar de toda a economia realizada durante a pandemia para quitar administrativamente valores devidos aos seus servidores". Procurada, a entidade não respondeu.

Também em dezembro, a auditoria do MPU se manifestou pela troca da TRD (Taxa Referencial Diária) pelo IPCA-E (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo-Especial) na correção de PAEs.

A inflação tem ganho maior. A TRD é de 0,1159% ao mês. O IPCA-E fechou 2020 em 4,23% ao ano.

No dia 19, Aras acatou o pedido feito por procuradores e trocou o índice. "Determino o recálculo dos valores relativos à PAE pagos em dezembro de 2016 e dezembro de 2017, por serem incontroversos, com respectivo pagamento, de acordo com a disponibilidade orçamentária e financeira", escreveu em decisão administrativa.

Os pagamentos foram realizados. A assessoria de imprensa da ANPR (associação dos procuradores da República), uma das entidades que reivindicaram o ajuste, afirmou que o pedido é de 2018.

Na Justiça do Trabalho, os passivos deram início à disputa no CNJ.

No dia 18 de dezembro, a presidente do CSJT e do TST (Tribunal Superior do Trabalho), ministra Maria Cristina Peduzzi, se recusou a pagá-los. A Anamatra (Associação Nacional do Magistrados do Trabalho) tentou reverter a decisão, o que foi negado no dia 28.

"A título de provocação à reflexão, caso não fosse pago nenhum valor de passivo administrativo, quantos auxílios emergenciais que se encontram em vias de extinção, mesmo com a permanência da pandemia, poderiam ser pagos?", questionou Peduzzi.

O auxílio foi criado para ajudar parte da população mais afetada pela crise da Covid-19. Inicialmente, a parcela era de R$ 600 por mês, mas em dezembro —último mês do benefício— foi de R$ 300.

"Destaco que os destinatários dos recursos a serem utilizados com o pagamento de passivos são servidores públicos em sentido amplo, os quais ao longo do ano de 2020 não tiveram qualquer comprometimento ou redução em seus vencimentos e proventos", acrescentou a ministra.

No ano passado, 9,8 milhões de trabalhadores com carteira assinada tiveram redução de salário e jornada ou suspensão de contrato. O desemprego está em 14,1%. Juízes titulares recebem R$ 33,7 mil.

No despacho, Peduzzi escreveu que é necessário o aprimoramento da gestão dos passivos anteriores a 2020. Ela lembrou ainda que a via escolhida para o recebimento foi a administrativa, e não a judicial.

Entidades reagiram em série. A Amatra-15 (associação de magistrados do trabalho de Campinas e interior de São Paulo) foi ao CNJ, seguida por AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros)​ e mais quatro entidades.

No dia 30 de dezembro, o conselheiro Mário Guerreiro determinou, por meio de decisão liminar (provisória), o bloqueio de recursos. Para ele, há "aparente conveniência do seu pagamento imediato".

O TRT-8 (Tribunal Regional do Trabalho do Pará) se pronunciou. No dia 5, foi pedida a correção de auxílio-alimentação e PAEs pela inflação, em semelhança à reivindicação atendida por Aras no MPU.

A presidente da AMB, Renata Gil, e o vice-presidente de Prerrogativas, Ney Alcântara, defenderam a legalidade dos pagamentos ao CNJ na sequência.

Para eles, "além de sugerir que magistrados e servidores são pessoas privilegiadas no tecido social, fazendo comparação igual entre desiguais, com asserções em certo aspecto mais políticas do que técnicas, talvez olvidou [a ministra] que a jurisdição social exercida pela Justiça do Trabalho emprega esforços diuturnos para a mitigação das injustiças sociais".

Procuradas pela Folha, AMB e Amatra-15 não quiseram se pronunciar. O caso segue em análise.

A economista e advogada Elena Landau disse considerar a via judicial a mais adequada para esse tipo demanda. "Direito é direito. Por isso sou a favor do Judiciário, e não de decisão administrativa, ainda que haja uma tendência corporativista."​

Landau, porém, rechaçou a proposta de se usar economias feitas na pandemia. "Esse dinheiro tinha de ser moralmente intocável."

"Depois há reações contra o Judiciário e não entendem o porquê. Pedem para furar fila da vacina, não querem entrar na reforma administrativa, querem pegar dinheiro que foi poupado no home office", disse.

Para Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper e colunista da Folha, os servidores deveriam contribuir mais. "Colocando no contexto da solidariedade social, vemos que [o uso de sobras] é uma ação na direção contrária."

Ele lembrou que hoje há pressão pela volta do auxílio emergencial, o que pode aumentar ainda mais a dívida pública. Mendes defendeu a redução de remuneração de servidores para se pagar parte da conta.

"O principal grupo que não foi afetado é o servidor público, que não perdeu emprego, tem estabilidade, não teve redução de salário. Querer ganhos agora é realmente uma atitude no mínimo provocativa."

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