Dívida, desvalorização cambial e inflação aproximam 1921 de 2021

Hoje, no entanto, sobra dinheiro barato e commodities se valorizam, ao contrário de um século atrás

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São Paulo

O Ano do Pendura. É assim que 1921 é chamado pelo falecido antropólogo e historiador Darcy Ribeiro em seu livro "Aos Trancos e Barrancos, como o Brasil deu no que deu". A qualificação foi a maneira divertida que o autor encontrou para destacar o momento em que o país firmou o primeiro empréstimo com os Estados Unidos. Recebeu US$ 50 milhões. Como garantia, apresentou a renda da alfândega.

O dinheiro era bem-vindo. Há 100 anos, assim como agora, o mundo vivia uma crise econômica. Os problemas não eram resultado de uma pandemia, embora o período da Gripe Espanhola tivesse tido o seu desfecho havia pouco, em 1920. Também não advinham da Primeira Guerra Mundial, embora houvesse uma relação indireta com a fragilidade financeira e o conflito encerrado em 1918.

O Brasil, que ainda havia registrado forte crescimento na década anterior, sofria em 1921 com a queda nos preços internacionais de seu principal produto exportado, o café. Aquele momento também marcava o fim de um período em que houvera excesso de dinheiro barato no exterior, que fora canalizado para financiar o desenvolvimento interno e as bases da industrialização brasileira.

Num paralelo histórico, esse dois problemas simplesmente não ocorrem agora. Na verdade, atualmente, há uma espécie de miniboom nas exportações de matérias-primas agrícolas e minerais, que impulsiona os preços, e é crescente o excesso de dinheiro injetado na economia pelos principais bancos centrais mundiais em resposta à crise provocada pela pandemia.

Por outro lado, há semelhanças importantes. A crise de 1921 levou a uma disparada do endividamento do país, forte desvalorização cambial e alta de inflação, fenômenos semelhantes aos vistos nos dias de hoje.

A crise econômica da época é explicada pela revisão das políticas de estímulo adotadas nas principais economias mundiais após a Primeira Guerra Mundial.

Com isso, o mundo capitalista entrou em um período conhecido como a Depressão de 1920-1921, que seria revertida somente a partir de meados de 1922, quando começa a fase de crescimento acelerado que duraria até o crash da Bolsa de Nova York, de 1929.

Em 1921, o PIB (Produto Interno Bruto) mundial cresceu apenas 0,4%, depois de uma variação de 0,2% no ano anterior. O PIB per capita, por sua vez, encerraria ali um período de cinco anos de contração, acumulando perda de 4,4%, segundo pior resultado em um período de 50 anos.

A Rússia, sob domínio dos bolcheviques desde 1917, também sofria com a estagnação provocada por uma guerra civil e a conversão forçada para o comunismo. O regime comandado por Vladimir Lenin lançou, naquele ano, a chamada Nova Política Econômica, que buscava restaurar algumas regras da economia de mercado, como a liberdade de comércio —inclusive de parte da produção agrícola—, e da propriedade privada de pequenas empresas.

No Brasil, o governo Epitácio Pessoa (1919-1922) lançava naquele ano o terceiro plano de valorização do café, repetindo a política que vinha sendo adotada desde o Convênio de Taubaté (1906), com compra de estoques para tentar segurar os preços.

No trabalho “1922: A Crise Econômica”, o economista Winston Fritsch afirma que os anos de 1919 a 1922 são conhecidos como o período do boom e da recessão pós-guerra, com os dois movimentos liderados pelas políticas econômicas das grandes potências da época.

A constatação de que a recuperação da economia após o conflito havia sido mais rápida que a esperada e dificultava o combate da inflação herdada da guerra leva, por exemplo, França e Inglaterra (essa com Winston Churchill na Fazenda) a frearem a expansão fiscal e monetária. O crédito externo para países periféricos, como o Brasil, desaparece.

Como relata o economista, é aí que os EUA ganharam posição importante como credores do Brasil, dividindo o protagonismo com as instituições financeiras britânicas das quais o país era dependente havia décadas. Nessa época, os americanos iniciavam a disputa com Londres pela posição de principal centro financeiro mundial.

Nos EUA, iniciava-se a Presidência do republicano Warren G. Harding (1921-1923), que reage à crise com uma política econômica ortodoxa, com cortes de gastos e de impostos, iniciativas vistas pelos economistas liberais como responsáveis por ter abreviado a crise, em contraposição à tese de que é necessário aumentar o gasto público para reativar a economia em períodos de crise, seja qual for a causa dela.

Embora o cenário recessivo internacional tenha sido revertido rapidamente, a economia brasileira viveria altos e baixos por toda a década que se iniciava.

Aquele foi também um ano de mudanças na estrutura do setor financeiro brasileiro. A Reforma Bancária de 1921, segundo trabalho da economista Ana Paula Chavantes, contribuiria para que o setor financeiro doméstico sofresse menos abalos durante a Crise de 1929, se comparado ao colapso ocorrido no mercado bancário de outros países.

Também fomentaria um período de crescimento no número de bancos nacionais em relação aos estrangeiros. Na época, as instituições com sede em outros países ainda representavam dois terços do sistema bancário nacional, posição que seria perdida ao longo da década.

A reforma trouxe uma série de exigências de ordem operacional e burocrática aos bancos, dentro da Lei de Fiscalização Bancária, além de criar instituições como a Câmara de Compensação de Cheques (que estimulou o uso desse instrumento) e a Carteira de Redesconto do Banco do Brasil, que ajudou a aumentar a competitividade dos bancos nacionais.

Em trabalho publicado pelo Banco Central, o economista da instituição Ytrio da Costa Neto afirma que a reforma forçou bancos estrangeiros a trazerem capital para o país, a fim de cumprirem as novas exigências. Com isso, até o fim da chamada Primeira República, nenhum novo banco estrangeiro ingressaria no Brasil. Posteriormente, Getulio Vargas nacionalizaria as instituições que continuavam no país.

O grande destaque do momento, que enchia corações, mentes e bolsos, era a indústria de São Paulo.

No artigo “Da década de 1920 à de 1930: Transição rumo à crise e à industrialização no Brasil”, o professor da Unicamp Wilson Cano descreve como o país começa a migrar nessa década do modelo primário exportador, no qual o complexo cafeeiro paulista predominava, rumo à industrialização e ao novo padrão de “crescimento para dentro”, que se acentuaria a partir da Crise de 1929 e da Revolução de 1930.

Apesar da crise do café, parcialmente compensada pela política estatal de valorização do produto, a matéria-prima era uma das principais fontes de recursos para o desenvolvimento de outros setores econômicos. Ao longo da década, ainda garantiu a São Paulo, junto com os investimentos na indústria nacional então nascente, um ritmo de crescimento superior ao do restante do país, gerando uma concentração industrial que só perderia força a partir dos anos 1970, segundo Cano.

Numa analogia que se tornaria célebre, a locomotiva chamada São Paulo começava a entrar nos trilhos.

O Censo de 1920 mostrava que a agricultura paulista tinha um peso de 25% em relação à produção nacional. A indústria local possuía participação superior a 30%, com destaque para o setor têxtil algodoeiro, mas também com o início de uma diversificação por setores como metalúrgica, mecânica, material elétrico, material de transporte e química, sempre com elevado grau de concentração em São Paulo, de acordo com o pesquisador.

O Brasil já possuía, na época, empresas como Comgás, Hering, Karsten, Droga Raia, Klabin, Gerdau, Matte Leão, Souza Cruz, Alpargatas, Casas Pernambucanas e Batavo. Entre as empresas nacionais ainda ativas que surgiram naquele ano está a companhia do setor têxtil Lupo, em Araraquara (SP).

A entrada de capitais internacionais também se destacava. Em 1921, a suíça Nestlé instalou a primeira fábrica no país, na cidade de Araras (SP), para a produção do leite condensado que mais tarde seria conhecido como Leite Moça.

Fábrica da Nestlé de Araras, inaugurada em 1921, da coleção Aerofotos oblíquas de 1939. - ENFA/Governo Federal

A mão de obra estrangeira, especialmente a italiana, também era componente importante da industrialização em São Paulo.

Os italianos corresponderam a 42% dos imigrantes que entraram no Brasil de 1870 a 1920, um total de 1,4 milhão de pessoas, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). De acordo com o instituto, chegaram a representar 90% dos 50 mil trabalhadores ocupados nas fábricas paulistas em 1901.

Não eram poucos os que tentavam a vida longe dos complexos industriais, como artesãos e pequenos comerciantes. Alguns se tornaram grandes industriais.

Entre aqueles mais bem-sucedidos, destacam-se nomes como o Conde Francesco Matarazzo, que participaria da fundação do Ciesp (Centro das Indústrias do Estado de São Paulo) em 1928, e Giuseppe Martinelli. Esse último já possuía no início da década de 1920 uma empresa de navegação, uma empreiteira e minas de ferro e carvão.

O governo Epitácio também foi marcado pela tentativa de frear o movimento grevista operário surgido a partir da industrialização do país, na época, ainda influenciado por representantes do anarquismo inspirado principalmente pelos operários imigrantes. O Partido Comunista só seria fundado em 1922.

Em janeiro de 1921, o presidente promulgou a legislação que tratava da repressão ao anarquismo e permitia ao governo fechar associações, sindicatos e sociedades civis acusadas de praticar atos “nocivos ao bem público”. Outra lei do mesmo ano permitia expulsão de estrangeiro considerado “nocivo à ordem pública ou à segurança nacional”.

Em 1921, foi criado o Centro das Indústrias de Fiação e Tecelagem de São Paulo, que enviava a todas as fábricas e à polícia uma lista de trabalhadores “indesejáveis”.

Essa efervescente economia paulista, naquele mesmo 1921, inspirou até poetas. Na época, Oswald de Andrade assim resumiu o ambiente local: "Nunca nenhuma aglomeração humana esteve tão fatalizada a futurismo de atividades, de indústrias, de história e de arte como a aglomeração paulista. Que somos nós, forçosamente, iniludivelmente, se não futuristas —​povo de mil origens, arribados em mil barcos com desastres e ânsias?".

O jornal Folha de S.Paulo nasce daí, desse período de transição e extremas transformações.

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