Descrição de chapéu sustentabilidade

Tesouro pretende lançar título ESG em meio a críticas ao governo na área

Técnicos planejam atrair estrangeiros preocupados com sustentabilidade e alongar dívida

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Brasília

Diante da menor participação de investidores estrangeiros na dívida pública, o Tesouro Nacional planeja recuperar ao menos parte do interesse emitindo um título ligado à temática ESG. A sigla em inglês para meio ambiente, social e governança é usada de forma crescente por gestores globais para decidir o destino de recursos.

A intenção do Tesouro é atrair interesse pelo título ao anunciar ao mercado que o papel vai financiar diferentes medidas do governo brasileiro ligadas a ESG. O Tesouro considera que há forte oportunidade de captação devido à influência da sigla em todo o mundo, já que usam os critérios desde gigantes globais como a BlackRock (maior gestora de recursos do mundo) até brasileiras como Itaú Asset Management.

Entre especialistas, há a visão de que a atual conduta do governo em temas como o meio ambiente pode desvalorizar o papel. Por outro lado, apontam a possibilidade de a medida incentivar mudanças de comportamento do governo.

O primeiro passo do Tesouro é montar um portfólio de medidas a ser mostrado aos investidores, após uma pesquisa no Orçamento da União identificar ações ligadas a ESG que poderão integrar o documento. Um dos exemplos já considerados é o Bolsa Família, que integraria a parte social.

"Dentro do Orçamento, existem ações que podem ser classificadas como ESG. A emissão vai obter recursos destinados a essas ações", diz José Franco Medeiros de Morais, subsecretário do Tesouro.

Depois do documento já montado, o Tesouro pretende fazer uma apresentação aos investidores (o chamado road show) para apresentar o novo título e as medidas que o papel financiaria. Os encontros devem ser virtuais, devido à pandemia.

Somente mais próximo ao lançamento, o que pode ocorrer ainda nesta ano, o Tesouro deve ter os números ligados à emissão. Mas a expectativa é que os valores sigam os parâmetros das últimas emissões internacionais.

Por isso, o valor a ser captado deve ficar entre US$ 1,5 bilhão e US$ 2 bilhões. O prazo, entre 10 e 30 anos. O título pode ser emitido com frequência, inclusive todo ano.

As taxas cobradas pelo mercado devem ficar abaixo do que é registrado em geral, já que o Tesouro observa que papeis ligados a ESG têm juros menores do que outros títulos.

Apesar de vender ao mercado a ideia de que o título vai financiar as medidas ESG, não haverá uma vinculação orçamentária direta (entre recursos e iniciativas) para não se aumentar ainda mais o grau de obrigatoriedade e vinculação do Orçamento da União.

O dinheiro, em vez disso, vai entrar no caixa do Tesouro da mesma maneira que os demais recursos obtidos a partir de endividamento, ajudando a melhorar os números da dívida pública.

O principal objetivo da emissão é melhorar o perfil da dívida ao atrair investidores estrangeiros, em geral alinhados aos interesses do Tesouro por preferirem títulos de longa duração e prefixados (cujas taxas não variam conforme as condições de mercado).

A tarefa se mostra ainda mais necessária, na visão do Tesouro, devido à deterioração em parte dos indicadores no ano passado. O prazo da dívida terminou 2020 em 3,57 anos, prazo mais curto desde 2010.

Já a participação de estrangeiros na dívida pública caiu para a casa dos 9% em 2020, patamar que não era visto há mais de dez anos.

Apesar de receber comunicações de estrangeiros preocupados com a política ambiental no Brasil e com a situação política, o Tesouro diz não ser possível estabelecer uma relação direta esses comentários e a retirada de recursos estrangeiros. O principal fator mencionado pelos técnicos para a fuga de capitais observada em 2020 é a pandemia –que retirou recursos de mercados emergentes, vistos como mais arriscados.

"A recuperação dessa classe de investidores [estrangeiros] é parte fundamental da estratégia do Tesouro Nacional no médio prazo", afirma documento do Tesouro sobre os planos 2021, em seção sobre ESG.

Outro objetivo da emissão ESG é melhorar a reputação do país no mercado internacional. "O país que tenha esse arcabouço, que faça essas emissões, ganha em reputação. É como se os investidores estejam ratificando as ações daquele país na temática ESG", afirma Franco.

Os próprios técnicos reconhecem o tamanho do desafio frente a reiteradas críticas de investidores sobre o comportamento do governo brasileiro nas áreas ESG, sobretudo na área ambiental e os recordes de desmatamento sendo registrados.

No ano passado, um grupo de 29 investidores globais (incluindo o norueguês Storebrand Asset Management) assinou carta aberta ao Brasil, expressando preocupação sobre a política ambiental no país, em especial na Amazônia, e sobre os direitos humanos. Juntos, eles têm US$ 3,7 trilhões em ativos administrados ao redor do mundo.

“O crescente desmatamento nos últimos anos, combinado com relatos de desmantelamento de políticas ambientais e de direitos humanos e de agências de fiscalização, estão criando incerteza generalizada sobre as condições para investir ou prestar serviços financeiros ao Brasil”, escreveu o grupo.

Mesmo diante das críticas, o Tesouro acredita que há pontos a serem defendidos. "Como todos os países, o Brasil tem um conjunto de pontos que pode melhorar. Mas, na questão ambiental, o país tem uma história muito positiva para contar. Um dos indicadores é a participação da energia limpa na matriz energética. O Brasil tem plenas condições de liderar nesse indicador, por exemplo", diz Franco.

Outro exemplo é o recém-aprovado marco do saneamento, aprovado pelo Congresso após ser defendido pelo governo. "Nosso papel é destacar os pontos positivos e endereçar os questionamentos de investidores da melhor maneira possível. Se os investidores têm questionamento sobre o desmatamento da Amazônia, vamos tentar endereçar essa questão", diz.

Em sua visão, o governo tem demonstrado esforço, por meio das ações lideradas pelo vice-presidente Hamilton Mourão, para combater a devastação no bioma amazônico. "[O objetivo] é mostrar o que está sendo feito, porque muitas vezes a informação acaba não chegando aos investidores", disse Franco. "Temos bons argumentos. É preciso melhorar o diálogo", resume.

Myrian Lund, professora dos MBAs da FGV (Fundação Getulio Vargas), diz que a emissão do título ESG segue uma tendência global que deve atrair investidores, começando por fundos de investimentos e de previdência.

Por outro lado, alerta que contradições do governo sobre o tema podem afetar o valor dos títulos. "A eficácia virá em função de o investidor não perdoar discursos e ações equivocadas, exigindo deságios maiores para aquisição dos títulos", afirmou.

Para ela, o título pode servir até mesmo de oportunidade para o governo alinhar seu discurso em torno do tema. "O mercado financeiro é ágil, dinâmico, exige transparência e ações alinhadas e focadas, e isso é positivo para uma maior sinergia do discurso político", disse.

"É certo que vemos algumas contradições dentro do governo com relação ao tema, mas em sendo aprovada a emissão desses títulos, o governo terá que alinhar seu discurso, o que é positivo para o Brasil", afirmou.

George André Sales, professor do Ibmec (Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais), diz que o lançamento do título pode influenciar a política e o discurso do governo.

"Por conta no modelo ESG, o comportamento do governo deverá ser mais bem explicado para a sociedade. Assim, bravatas e falácias perderão espaço para informações técnicas e precisas, que poderão ser auditadas a qualquer momento", disse.

Ricardo Rocha, professor de finanças do Insper, diz que há possibilidade de melhora de políticas ESG e cita especificamente as queimadas não só na Amazônia como no Pantanal. Mas diz que o fato de o Tesouro lançar a discussão já mostra aos investidores a existência de uma preocupação sobre a temática.

"É claro que temos indicadores que podem melhorar substancialmente. Mas o lançamento do título mostraria aos investidores internacionais que há discussão sobre o tema no país", disse.

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