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Jerson Kelman

Quanto vale a água armazenada no reservatório de Furnas?

O administrador público tem que decidir entre permitir o pleno uso do reservatório ou restringi-lo para evitar prejuízos sobre população que vive no entorno de Furnas

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Jerson Kelman

Morador do Rio de Janeiro, é ex-presidente da Sabesp e professor da COPPE-UFRJ

O reservatório criado pela usina hidroelétrica de Furnas fica no rio Grande, de domínio da União (o rio faz divisa entre São Paulo e Minas Gerais). Como em território mineiro, no entorno do reservatório, há relevante atividade turística, é de esperar que as lideranças políticas do estado, em particular o governador Romeu Zema, se posicionem para evitar que o reservatório esvazie por efeito da crise hídrica.

Na mesma toada, é compreensível que os legisladores mineiros tenham aprovado a emenda 106/2020 à Constituição do estado para proibir o deplecionamento (rebaixamento do nível de água) do reservatório abaixo da cota 762 metros. E que, com base nessa emenda, o governador tenha enviado ofícios à Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) e à ANA (Agência Nacional de Águas) reclamando de que o nível do reservatório tenha descido abaixo dessa cota e demandando que o contrato de concessão entre Furnas e a União seja adequado ao que determina a Constituição do estado.

Essa demanda esbarra em duas dificuldades, uma de ordem jurídica e outra de ordem econômica. A jurídica tem raiz no fato de que a Constituição estadual não pode se contrapor à Constituição Federal. Sendo o rio Grande um bem da União, e o "lago de Furnas", um reservatório artificial construído para aproveitamento de potencial hidráulico —outro bem da União—, é evidente que o estado não tem competência para insculpir uma regra em sua Constituição que impeça o governo federal de fazer uso de bem que lhe pertence.

Assim, a AGU (Advocacia-Geral da União) tem a obrigação de ingressar no STF (Supremo Tribunal Federal) contra a pretensão de estado federado de se imiscuir em contrato de concessão de uso de bem público em que a União é o poder concedente.

A questão econômica motiva o título deste artigo. Reservatórios são construídos para armazenar água nos períodos chuvosos para utilização nos períodos de estiagem. O reservatório de Furnas armazena o volume útil de 17,2 bilhões de metros cúbicos entre as cotas 750 metros e 768 metros (variação vertical de 18 metros).

A emenda à Constituição mineira, se fosse válida, limitaria a variação vertical a 6 metros, indisponibilizando 9,6 bilhões de metros cúbicos (56% do volume) para produção de energia elétrica na cascata de usinas da bacia do rio Paraná, de Furnas a Itaipu (cada metro cúbico de água liberado do reser- vatório de Furnas produz 1,6 kWh —quilowatt-hora— de eletricidade na cascata de usinas).

Todas as usinas da cascata seriam negativamente impactadas na próxima rodada de revisão de "garantias físicas" (medida do valor econômico de uma usina hidroelétrica, a máxima quantidade de energia que ela pode vender em contratos de longo prazo), prevista para 2023. A curto prazo, ocorreria desvalorização da Eletrobras no processo de capitalização atualmente em discussão no Congresso Nacional.

Fazendo as contas, o estoque de água "imobilizado" pela emenda à Constituição mineira corresponde a 15,4 milhões de megawatts-hora (MWh). Na situação hidrológica crítica que vivemos, o preço da energia elétrica tende a R$ 560/MWh, que é o máximo preço unitário da eletricidade (não custo).

Utilizando esse preço, o valor comercial do estoque de água "imobilizado" é de R$ 8,6 bilhões. Como a crise tem induzido o acionamento de termelétricas fora da ordem de mérito, com CVUs (Custos Variáveis Unitários do combustível utilizado em cada da termoelétrica, pagos pelos consumidores) altíssimos, da ordem de R$ 1.500/MWh, o custo de oportunidade do estoque de água imobilizado para os consumidores de eletricidade pode atingir valores superiores aos já astronômicos R$ 8,6 bilhões.

O administrador público tem que tomar uma decisão difícil: permitir o pleno uso do estoque de água do reservatório para evitar acréscimo na conta de luz de todos os brasileiros ou restringir o uso para evitar prejuízos "visíveis a olho nu" sobre a parcela da população que vive no entorno de Furnas?

Felizmente, essa não precisa ser uma "escolha de Sofia". Como o pleno uso da água para produção de eletricidade causaria prejuízo local de valor muitíssimo menor que R$ 8,6 bilhões, há espaço econômico para achar um arranjo legal-institucional que induza a implantação das instalações necessárias para manter o suprimento de água das cidades do entorno (por exemplo, bombas flutuantes para a condução da água para as tomadas de água, como se fez em 2014-2015 no Sistema Cantareira, em São Paulo), bem como de infraestruturas de apoio ao turismo que mitiguem os efeitos adversos do deplecionamento (por exemplo, como o reservatório de Furnas tem formato dendrítico, pode-se seccionar alguns braços por diques, possivelmente transitáveis, de soleira livre na cota 762 metros.

Os reservatórios secundários que se formariam estariam sempre em cota compatível com a prática de atividades recreativas perto das hospedarias, mesmo quando o reservatório principal se encontrasse "encolhido" em nível mais baixo).

Há outros casos em que restrições operativas de usinas poderiam ser atenuadas, a baixo custo, resultando em significativo aumento de eficiência na produção de energia elétrica (por exemplo, o derrocamento de um afloramento rochoso no fundo do rio Tietê poderia ser realizado a um custo menor do que o valor da água que se "imobiliza" no reservatório de Ilha Solteira para não prejudicar o funcionamento da hidrovia).

O desafio consiste em definir um arranjo legal e regulatório capaz de tomar partido dessas oportunidades.

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