Descrição de chapéu Folha ESG sustentabilidade

Pandemia fez investidores se sentirem culpados pela própria riqueza

Pesquisa mostra que maioria é grata por preservar o patrimônio na crise, mas também se incomoda com isso

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Belo Horizonte

Depois de ficarem mais ricos durante a pandemia, os investidores dizem estar com a consciência pesada. É o que mostra uma pesquisa do banco suíco UBS, que entrevistou 3.800 investidores pelo mundo e revelou que 66%, ou terço deles, deles estão se sentindo culpados pela própria prosperidade.

Segundo o estudo, a maioria dos respondentes da América Latina se beneficiou do desempenho do mercado em 2020, apesar da crise sanitária que teve na região um de seus epicentros, desencadeando reveses econômicos e sociais.

Na região, quase sete em cada dez (68%) disseram que seus investimentos cresceram em valor no período. Além disso, 44% conseguiram aumentar o patrimônio líquido total, proporção que fica ainda maior considerando investidores de todo o mundo: 57%.

Saindo da pandemia economicamente intactos, os investidores se dizem gratos e, ao mesmo tempo, culpados por serem mais afortunados que muitas pessoas.

A pesquisa do UBS, intitulada Investor Watch, incluiu três faixas etárias na amostra, considerando seus respectivos valores em investimentos.

O primeiro grupo foi formado por pessoas entre 25 e 30 anos com pelo menos US$ 250 mil (R$ 1,2 milhão) em ativos passíveis de investimento; o segundo englobou a faixa de 31 a 39 anos com mais de US$ 500 mil (R$ 2,5 milhões) em ativos; e o terceiro era formado por investidores acima dos 40 anos com pelo menos US$ 1 milhão (R$ 5,1 milhões).

Além dos ganhos com a rentabilidade do mercado, a maioria dos entrevistados (72%) disse ter economizado mais devido às restrições impostas pela Covid-19, diferentemente de uma parcela significativa da população.

No Brasil, por exemplo, os impactos no orçamento fizeram com que famílias mais pobres não conseguissem pagar contas básicas, como energia, água e gás.

Dados da Serasa mostram que a inadimplência nessas contas cresceu mês a mês desde o início da crise sanitária, em março de 2020, e bateu recorde em dezembro. O percentual foi de 23,6%, maior valor de toda a série histórica iniciada em 2018.

De acordo com Gedeão Locks, pesquisador do CES (Centre d’Économie de la Sorbonne), em Paris, o saldo positivo do mercado financeiro foi puxado principalmente pelas ações de empresas de tecnologia e saúde.

Para ele, a rápida recuperação econômica —na comparação com o que era esperado no início da pandemia— e as taxas de juros em níveis baixos também ajudaram a tornar o cenário favorável para quem tinha dinheiro alocado em ativos.

“Os ricos sempre terão mecanismos para se proteger mais facilmente que os mais pobres. A pandemia, sobretudo no Brasil, mostrou exatamente isso. Quando a maré chegou, foram os barcos menores que tiveram mais problemas”, afirma.

Segundo o especialista, que pesquisa sobre desigualdade de renda e de riqueza, a ideia de que estávamos todos no mesmo barco foi algo tão efêmero quanto equivocado, visto que a crise atingiu desproporcionalmente os mais vulneráveis.

“Para os pobres, a situação foi o completo oposto [em relação aos investidores]. Desemprego, perda de renda, inflação. Como essas pessoas não tinham a possibilidade de fazer poupança, elas não estavam seguras quando a pandemia chegou”, afirma.

A ampliação do contraste econômico entre o topo e a base da pirâmide era algo esperado por especialistas como Locks, que enxergam, em momentos de crises, uma tendência de intensificação das disparidades sociais. A previsão parece ter se confirmado.

De acordo com um relatório do banco Credit Suisse, quase metade da riqueza total do país (49,6%) foi parar nas mãos do 1% mais rico em 2020. Os dados indicam que a desigualdade segue alta na América Latina, mas especialmente no Brasil, dono de um dos maiores níveis de desigualdade do mundo.

Ao mesmo tempo, as coisas fluíram bem no andar mais alto da pirâmide, e a pandemia deixou os bilionários ainda mais bilionários.

Como mostrou a Bloomberg, a fortuna dos 500 mais ricos aumentou quase R$ 10 trilhões em 2020, o que representa a maior quantia adicionada desde a criação do indicador, há oito anos.

Para Locks, a discrepância entre os dois polos da pirâmide ficou muito clara durante a crise sanitária, o que pode explicar o sentimento de culpa dos investidores.

“O contexto geral é de aumento da pobreza, aumento da mortalidade, hospitais lotados, um infortúnio generalizado na vida das pessoas. Isso nos faz perceber que não estamos sozinhos, que vivemos em sociedade”, afirma.

Na visão dele, quando o dinheiro passa a definir quem tem mais chances de morrer e quem tem menos chances, as pessoas voltam a se perguntar sobre coisas mais fundamentais.

Foto de homem com blusa branca e livros atrás
Gedeão Locks, pesquisador do Centre d’Économie de la Sorbonne (CES), em Paris, e especialista em desigualdade de renda e riqueza - Marlene Bergamo/Folhapress

Como mostrou a pesquisa do UBS, o sentimento de culpa dos investidores parece ter destravado o interesse em fazer boas ações. A julgar pelas respostas dos entrevistados, o pós-pandemia deve revelar um mercado financeiro mais bem-intencionado.

Sete em dez investidores querem fazer diferença no mundo, e 45% estão interessados em doar mais para a caridade. Além disso, 60% pretendem aumentar seus investimentos sustentáveis por causa da pandemia.

“Sobre as boas ações, eu sou um pouco cético. Uma vez que a vida retorne ao normal, eu imagino que os resultados serão bem diferentes. Mas há tendências que vão seguir fortes, como o cuidado com a natureza e a economia verde”, avalia Locks.

“Esses grandes eventos tendem a anteceder uma mudança institucional para uma suavização das desigualdades. Agora, se vai acontecer ou não, dependerá de como as pessoas vão encaminhar isso.”

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.