Descrição de chapéu Caixin Ásia

Como Hui Ka Yan, da Evergrande, queimou uma fortuna de US$ 43 bilhões

Vida do fundador da empresa é típica história de ascensão da fome à fortuna e reflete o peso desproporcional que o setor imobiliário assumiu na China

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Guo Yingzhe
Caixin

Em retrospecto, o ano de 2017 pode ter sido o começo do fim para a Evergrande, da China, o império imobiliário de Hui Ka Yan cuja crise financeira e implosão iminente estão abalando o mercado mundial. Hui, também conhecido como Xu Jiayin, estava vivendo um momento vitorioso e parecia inexpugnável, mas a história empresarial está repleta de exemplos de arrogância transformada em derrota.

No papel, a Evergrande estava florescendo. Naquele ano, o lucro atribuível aos acionistas da empresa, da ordem de 24,4 bilhões de yuan (R$ 20 bilhões), foi o mais alto de sua história, e 160% superior à média dos três anos precedentes. O preço das ações da companhia em Hong Kong havia subido ao recorde de 31,55 dólares de Hong Kong (R$ 21,32) em outubro de 2017 —um avanço de 600% ante o ano anterior.

O presidente da Evergrande, Xu Jiayin, em uma reunião em Wuhan, Hubei, província central da China - STR - 5.jun.2017/AFP

Hui era o maior acionista da empresa, com 77,2% de participação no final de 2017, e a disparada no preço das ações o conduziu do 10º ao 1º posto no ranking Hurun China Rich List, que estimou seu patrimônio líquido em US$ 43 bilhões (R$ 226,9 bilhões). O Guangzhou Evergrande FC, o time de futebol que ele adquiriu em 2010, havia conquistado o título da China Super League pela sétima vez consecutiva, um feito que nenhum outro time conseguiu desde que a liga foi estabelecida, em 2004.

A China estava passando por um boom habitacional sem precedentes, alimentado pelo crédito fácil e pela expectativa de que os preços só poderiam subir. Hui parecia tão confiante nas perspectivas do mercado que a Evergrande continuou a tomar vastas quantias em empréstimos para expandir seus negócios. Ele manteve sua estratégia, alimentada por endividamento, ainda que as autoridades regulatórias já tivessem expressado preocupação no final de 2016 e começado a impor controles sobre o financiamento ao setor imobiliário, como parte de uma campanha mais ampla para controlar a especulação e esvaziar a bolha.

No final de 2017, a captação total do grupo foi 37% mais alta do que no ano anterior. Mas, avaliando os números com mais cuidado, ficava claro que a empresa estava cada vez mais dependente de dívidas de curto prazo —o valor dos empréstimos com vencimento em menos de um ano tinha subido em 76%.

A empresa também obteve 130 bilhões de yuan (R$ 106,1 bilhões) de investidores estratégicos em ações naquele ano, para conduzir uma abertura de capital disfarçada, sob a qual ativos imobiliários detidos pela subsidiária Hengda Real Estate Group seriam injetados no Shenzhen Special Economic Zone Real Estate & Properties Group. No entanto, aquele evento de arrecadação de capital veio acompanhado por uma ressalva: os investidores receberam o direito de exigir que a Evergrande comprasse de volta sua participação acionária caso a abertura formal de capital não acontecesse antes de 2021. A operação toda foi vista como um exercício de captação realizada fora do balanço.

Hui admitiu ter cometido erros de estratégia naquele ano, em uma reunião interna no começo deste mês para discutir a crise atual, disse à Caixin um executivo da divisão de gestão de patrimônio da Evergrande que participou do evento.

Os planos para a abertura de capital disfarçada em Shenzhen terminaram prejudicados quando as autoridades apertaram as regras para capitalização, o que incluiu uma moratória nas ofertas públicas iniciais de companhias imobiliárias nas bolsas da China continental. A Evergrande por fim desistiu e encerrou o plano no ano passado, perdendo acesso crucial a uma fonte de capital e se vendo forçada a restituir o dinheiro dos investidores estratégicos.

Esse fracasso provou ser um revés importante nos esforços do grupo para escorar suas finanças. Em 2020, diante da alta continuada nas dívidas das incorporadoras imobiliárias, as autoridades regulatórias chinesas intensificaram sua campanha para controlar o endividamento do setor. Elas estabeleceram uma política conhecida como “as três linhas vermelhas”, que limitava a capacidade das incorporadoras de imóveis para elevar sua captação ao condicionar qualquer aumento de dívidas ao respeito a três limites de endividamento. A norma restringiu severamente o acesso da Evergrande ao capital, já que a empresa não pôde mais emitir novos títulos de dívida porque tinha estourado os limites das três linhas.

“A Evergrande subestimou a firmeza da posição do Estado”, disse Chen Xin, professor de finanças na Universidade Shanghai Jiaotong, em uma palestra online em novembro. Alguns analistas disseram que o grupo havia interpretado incorretamente o ambiente regulatório. No passado, controles sobre a captação do setor imobiliário foram relaxados quando pressões de baixa emergiram na economia, mas o momento havia mudado. Com a perda de ímpeto no crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) em 2019 e 2020, as autoridades econômicas deixaram claro que não recorreriam a um alívio das restrições ao setor de imóveis como forma de estimular a economia. Em lugar disso, continuaram a enfatizar a prioridade de reduzir os riscos que o setor causava para o sistema financeiro.

Com os canais de captação inacessíveis, Hui tentou restaurar a liquidez e reduzir as dívidas do grupo suspendendo a compra de terrenos, cortando os preços das casas, emitindo títulos comerciais para fornecedores e colocando ativos à venda. Mas ele não teve muito sucesso e a posição de liquidez da Evergrande começou a se deteriorar. A empresa deixou de fazer pagamentos a fornecedores e não conseguiu manter em dia os pagamentos de milhões de yuan em produtos de gestão de patrimônio vendidos a empregados e outros investidores.

No final de junho, o passivo total da Evergrande chegou a 1,97 trilhão de yuan (R$ 1,6 trilhão), o que incluía 571,8 bilhões de yuan (R$ 466,7 bilhões) em títulos de dívida sujeitos a pagamentos de juros, de acordo com seu balancete semestral. O passivo total da empresa respondia por 2,4% de todo o setor de imóveis em 2019. E a companhia além disso tem um montante desconhecido de dívidas ocultas mantidas fora de seu balanço.

Com o agravamento dos problemas da Evergrande, os acionistas se sentiram pressionados e começaram a vender ações. No começo de 2021, as ações da companhia estavam sendo vendidas a mais de 14 dólares de Hong Kong (R$ 9,49), mas pelo final de junho haviam caído a 10 dólares de Hong Kong (R$ 6,78). Quando a Evergrande divulgou seu alerta de problemas de lucratividade no primeiro semestre, em 25 de agosto, o valor das ações havia caído para 4,56 dólares de Hong Kong (R$ 3,09), e no fechamento da terça-feira estava em 2,27 dólares de Hong Kong (R$ 1,54), já que a crise financeira da empresa não mostra sinais de estar sendo resolvida e um calote no pagamento de seus empréstimos e títulos parece inevitável.

Hui é parte de uma longa linhagem de empreendedores que embarcaram no trem do boom imobiliário e fizeram fortuna. Alguns deles já enfrentaram dificuldades, como Wang Jianlin, que ocupou o primeiro posto do ranking Hurun China Rich List dois anos antes de Hui.

Mas Hui pode se tornar a maior baixa da lista, até agora. Nascido em 1958 na província de Henan, no centro da China, a vida de Hui é uma típica história de ascensão da fome à fortuna, que reflete o tamanho desproporcional que o setor imobiliário assumiu no rápido crescimento econômico da China nas duas últimas décadas, e a irresponsabilidade com que alguns empreendedores agiram ao apostar no jogo do “grande demais para falir”.

Depois de se formar no Instituto do Ferro e Aço de Wuhan em 1982, Hui começou a trabalhar em uma companhia estatal de ferro e siderurgia. Uma década mais tarde, ele se transferiu a uma trading privada em Shenzhen, cidade que estava se tornando um polo de negócios no sul da China e se transformou em um centro de reformas, atraindo pessoas jovens de todo o país que estavam em busca de oportunidades e de riqueza.

Sede da chinesa Evergrande em Hong Kong, na China - Reuters

Ele entrou no setor imobiliário e abriu uma empresa chamada Evergrande em 1996, pouco antes de a China iniciar reformas profundas no mercado imobiliário, que deram início a uma era dourada para o setor. Em 1998, o governo aboliu seu sistema de habitação pública (福利分房), que já durava décadas e sob o qual as pessoas recebiam apartamentos alocados por seus empregadores, e permitiu que as massas comprassem casas próprias, financiadas por meio de hipotecas.

A imensa demanda gerada pelas reformas levou a uma corrida do ouro entre os incorporadores, entre os quais a Evergrande, que tiraram toda vantagem possível da liberalização. A companhia se expandiu rapidamente ao longo dos 10 anos seguintes, e abriu seu capital em Hong Kong em 2009. Como acontecia com muitas de suas rivais, a expansão da Evergrande foi alimentada por dívidas, porque a empresa consumia vastas quantidades de dinheiro para construir e vender milhões de imóveis rapidamente, um modelo conhecido como “alta alavancagem e alto giro”.

Em 2013, a Evergrande chegou ao terceiro posto no ranking das 100 maiores companhias imobiliárias chinesas compilado pela Fang Holdings, uma empresa que fornece dados sobre o setor de imóveis, com base em uma série de indicadores que incluem vendas e lucratividade. Em 2017, ela atingiu o primeiro lugar.

Estimuladas pelo seu sucesso na incorporação de imóveis, as ambições de Hui se estendiam muito além da construção de edifícios de apartamentos. A Evergrande diversificou seus negócios para os segmentos de água mineral, turismo, saúde, finanças e futebol. Ele contratou primeiro Marcello Lippi e depois Luiz Felipe Scolari, dois técnicos ganhadores de copas do mundo, para dirigir seu time de futebol, o Guangzhou Evergrande. Os dois conquistaram glórias internacionais para o clube, vencendo a AFC Champions League em 2013 (Lippi) e 2015 (Scolari).

Em 2019, o grupo anunciou que ingressaria no mercado de veículos elétricos e prometeu criar a maior montadora de carros elétricos do planeta e desafiar a Tesla pela liderança do setor. A divisão de serviços de saúde da Evergrande, que tinha ações negociadas em separado em Hong Kong, teve seu nome mudado para China Evergrande New Energy Vehicle Group (Evergrande Vehicle), e a empresa afirmou ter despejado cerca de 47,4 bilhões de yuan (R$ 38,687 bilhões) no desenvolvimento de veículos elétricos, embora nenhum veículo tenha saído de suas linhas de produção até agora.

A Evergrande foi do topo ao colapso em apenas quatro anos, e agora está lutando para sobreviver. As ações da empresa despencaram, e lidar com sua montanha de dívidas de US$ 300 bilhões (R$ 1,6 trilhão) vai requerer meses, ou talvez anos. As ações da Evergrande Vehicle caíram em 96% ante seu pico em fevereiro, e o prejuízo da empresa no primeiro semestre quase dobrou ante o período no ano anterior, para 4,8 bilhões de yuan (R$ 15,6 bilhões), e ela está em busca de novos investidores. O clube de futebol abandonou o nome Evergrande no começo deste ano, e seus astros estão correndo para sair; há rumores crescentes de que o clube está em busca de um resgate financeiro.

O colapso dos preços das ações da Evergrande causou pesada queda na fortuna pessoal de Hui. O valor de sua participação acionária de 76,8% na empresa era de apenas 23 bilhões de dólares de Hong Kong (R$ 15,6 bilhões), pelo fechamento da terça-feira.

Ele já caiu para o quinto posto no ranking Hurun China Rich List em 2020 e, quando o próximo ranking for publicado, provavelmente em outubro, pode ser que seu nome não esteja nem mesmo entre os 20 mais.

Colaborou Wang Jing

Tradução de Paulo Migliacci

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