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Línguas ameaçadas ganham espaço em apps de ensino de idiomas

Duolingo, uTalk e projetos independentes oferecem cursos

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São Paulo

Comum no Brasil entre o final do século 17 e o início do século 20, o nheengatu, ou língua geral, está "severamente ameaçado", segundo o Atlas de Línguas em Perigo da Unesco. Essa língua, produto do encontro entre povos originários falantes de tupi e jesuítas no processo de colonização da Amazônia, tem 6.000 falantes atualmente, segundo o documento.

Ela foi escolhida pela desenvolvedora web Suellen Tobler para o primeiro aplicativo de ensino de uma língua indígena brasileira. A ferramenta foi contemplada no início deste ano pela Lei Aldir Blanc, por meio da Secretaria de Cultura do Pará. "Na hora em que eu vi o edital, veio na minha mente o aplicativo", conta Tobler. Ele já está disponível em uma versão inicial com 65 exercícios.

Iniciativas como a da desenvolvedora pipocam mundo afora, em trabalhos independentes ou em aplicativos já consagrados. Duolingo e uTalk, por exemplo, contam com o ensino de línguas ameaçadas de extinção, como galês, havaiano e guarani.

Apesar do clique para o projeto de Tobler ter nascido no momento em que a desenvolvedora viu o edital, ele começou a ser gestado um ano antes, em 2019.

Naquela época, durante uma viagem de dois meses pelo Rio Amazonas, ela decidiu se mudar para a região. Estabeleceu-se em Alter do Chão e começou um curso de antropologia na Ufopa (Universidade Federal do Oeste do Pará). Foi em uma oportunidade de trabalho na aldeia São Francisco que entrou em contato com a língua, por meio da professora de nheengatu Dailza Araújo.

"Fiquei hospedada na casa dela e ela começou a me ensinar algumas palavras em nheengatu, enquanto eu ensinava palavras em inglês para a sobrinha dela. Em todos os nossos momentos de folga tínhamos essa troca desinteressada", conta.

Na bagagem de volta para sua casa, levou o livro Nheengatu Tapajoara, editado na Ufopa. Ao folheá-lo, perguntou-se se poderia aprender a língua por meio de um aplicativo, como fazia com o alemão naquele momento, mas não achou nenhuma ferramenta. O empurrão que faltava foi dado pelo edital, lançado em 2020.

Para lançar o projeto, estudou os apps que já existiam. "Ali eu entendi, como programadora, como eles faziam aqueles aplicativos serem divertidos", afirma. Um dos padrões nesses programas é a repetição, por exemplo. Por não ser fluente, pesquisou no livro que havia ganhado de Dailza Araújo e com a apostila do curso de Tupi da USP —cujo tronco linguístico é compartilhado pelo nheengatu.

Ao longo do processo, precisou fazer adaptações. No início, a ideia era fazer um aplicativo apenas para Android, o que poderia limitar o acesso dos usuários. Ao longo do desenvolvimento, porém, resolveu lançar mão do PWA (Progressive Web App). A tecnologia, relativamente nova no mercado, permite que um só código de programação seja acessado por qualquer sistema operacional: Chrome OS, Android, iOS.

Os planos incluem expandir os níveis de aprendizagem da língua, permitir exercícios offline e, eventualmente, criar uma área administrativa para professores. A desenvolvedora conta que, da forma que está, o aplicativo pode ser replicado para qualquer língua indígena, com adaptações.

Recentemente, Tobler fez uma reunião com professores de escolas dos rios Amazonas, Rio Negro, Tapajós e Arapiuns, além de acadêmicos da USP e Ufopa, para melhorar o aplicativo. "Eu gostaria que os próprios professores indígenas se apoderassem dessa ferramenta", afirma. "É um aplicativo vivo."

O nheengatu é uma língua oficial em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, ao lado de português, tukano e baniwa.

Desde 2016, uma das mais populares plataformas de ensino de idiomas do mundo, o Duolingo, oferece o ensino de irlandês, que hoje tem 44 mil falantes. Desde então, outras línguas foram incorporadas, como Navajo (falado na América do Norte) e Havaiano, que também estão ameaçadas de extinção. A maioria pode ser aprendida apenas por aqueles que falem inglês. A exceção é o guarani, disponível para falantes de espanhol.

Há dez anos, antes mesmo de o Duolingo ser lançado, Myra Awodey, especialista em literatura alemã, ajudou o aplicativo a criar o ensino do idioma europeu. No início, conta, achava que a ferramenta seria apenas para o ensino de línguas mais procuradas.

"Tivemos uma demonstração incrível de apoio de pessoas que queriam aprender idiomas, mas também de quem queria ajudar a construir idiomas", afirma ela, que hoje é responsável pelo desenvolvimento dos cursos de idiomas minoritários no Duolingo.

"Disseram a nós: 'vocês têm as ferramentas, nós temos o conhecimento. Por que vocês não abrem suas ferramentas para que possamos ajudá-los a criar cursos gratuitos para idiomas menores?'"

A repercussão do irlandês foi uma surpresa. "Em um ano, alcançamos 1 milhão de alunos, o que é mais do que o número de falantes nativos", conta Awodey.

"Nós percebemos que o Duolingo tem o potencial para ajudar não apenas as pessoas a aprenderem os principais idiomas, mas também para ajudar uma língua a crescer, ao invés de diminuir. Temos a responsabilidade de abrir nossas ferramentas e fazer parte do movimento global para também proteger a diversidade linguística", afirma.

O processo de desenvolvimento das ferramentas dessas línguas na plataforma segue colaborativo. A equipe é formada por pessoas do Duolingo e especialistas com experiência no ensino do idioma.

"Além de falantes nativos, os colaboradores devem contar com o apoio de suas comunidades", afirma. "Eles trabalham no controle de qualidade e na criação de frases, mas nossos cientistas de aprendizagem e de tecnologia, além de especialistas em fluência, aconselham ao longo do caminho."

O apoio da comunidade é importante porque nem sempre há unanimidade entre os falantes nativos sobre compartilhar a língua com outras pessoas ou escrevê-la, no caso de línguas orais. "Muitas são faladas e usadas para fins cerimoniais ou sagrados, e escrever e compartilhar é muito controverso. Para esses casos, é provável que não nos envolvamos", afirma.

As lições são adaptadas de acordo com a língua ensinada. Atualmente, a plataforma enfrenta o desafio de ensinar as "consoantes cliques", um som feito com a língua que aparece em idiomas falados especialmente no sul da África —e que não contam com a exposição do inglês ou do francês, por exemplo.

"Para idiomas maiores, usamos uma espécie de texto automatizado, que sai como uma voz robótica. Isso é possível porque há muitos dados para treinar. Para idiomas menores, como Zulu, que não dispõem de tantos dados, temos falantes nativos que vão realmente gravar todas as frases", explica.

Em um projeto individual, o linguista e mestre em processamento e fala e linguagem Aidan Pine desenvolve tecnologias em código aberto para línguas indígenas. O principal projeto do canadense, Mother Tongues (Línguas Nativas), é uma ferramenta para dicionários de línguas indígenas.

Um dos desafios de Pine para criar a ferramenta foram os diferentes sistemas de escrita da mesma língua, além de alunos que eventualmente escrevem com erros.

"Precisávamos criar um aplicativo que exibisse a palavra certa no dicionário ainda que você digitasse com erro ou diferenças. E é isso que o Mother Tongues faz. No software, há o chamado 'algoritmo de busca aproximado'", explica. A partir de conversas com professores de língua, ele incorpora os principais erros dos alunos.

A faísca para a iniciativa foi a combinação entre seu interesse em linguística e o sentimento de injustiça diante do apagamento da cultura indígena. "Quando uma língua morre, perdemos um ecossistema de ideias e as possibilidades de relacionar os humanos com a sua comunidade. A língua é essa cola", diz ele.

Apesar do esforço em manter o projeto e criar novas ferramentas, Pine garante que não está salvando um idioma. "Pessoas salvam línguas, pessoas que passam horas aprendendo e ensinando seus idiomas e construindo uma comunidade. Os indígenas salvam as línguas. Talvez a tecnologia possa ajudar", afirma.

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