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China combate explosão de golpes financeiros

Dezenas de milhares de pessoas foram vítimas, apesar de ações do governo contra fraudes

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Sun Yu Thomas Hale
Pequim e Hong Kong

Quando Jenny Fan recebeu um telefonema, no início de fevereiro, pensou que tivesse ganhado um sorteio. A pessoa que ligou disse que representava uma empresa de tratamento para a pele e que Jenny —estudante do segundo ano de faculdade na província de Heibei, no norte da China— tinha direito a uma indenização de 1.000 yuans (cerca de R$ 885). O motivo? Três meses antes ela havia comprado um creme facial por 200 yuans (R$ 170) que não funcionou bem para sua pele.

O homem "afirmou ser representante do atendimento ao consumidor do fabricante do creme", disse Jenny. "Ele deu todos os detalhes da compra, incluindo um print do registro da transação, por isso achei difícil não confiar nele."

Para receber o dinheiro, afirmou o homem, Jenny devia criar um "canal de pagamento especial", fazendo diversas transferências de teste para uma "conta de custódia". Quando o sistema estivesse implementado, Jenny receberia a restituição, mais a indenização.

Prédios em Pequim exibem show de projeções na véspera das celebrações dos 100 anos do Partido Comunista Chinês
Prédios em Pequim exibem show de projeções na véspera das celebrações dos 100 anos do Partido Comunista Chinês - Noel Celis - 30.jun.21/AFP

A estudante de 19 anos fez três pagamentos no valor total de 20 mil yuans (R$ 17 mil). Pouco depois, o homem a bloqueou na rede social e parou de atender suas ligações. Jenny procurou a polícia, mas apenas lhe disseram que ela foi "muito boba" por acreditar no golpe. "Eles me disseram que o dinheiro estava perdido, pois é muito difícil localizar os golpistas online", explicou. "O que eu deveria fazer é só atender ligações de pessoas que eu conheço."

Jenny é uma das dezenas de milhares de chineses que foram vítimas de fraudes financeiras. O crime se tornou um fato comum na segunda maior economia do mundo, que se gaba do crescimento rápido de sua população de média e alta rendas. "Estamos vendo um aumento de golpistas conforme a riqueza das famílias cresce", disse Nie Chengtao, advogado de Pequim especializado em fraude financeira.

Os golpes financeiros têm uma história antiga na China, onde décadas de grande crescimento econômico criaram entre o público não só uma enorme riqueza pessoal, como também uma mentalidade de enriquecer depressa. Os fraudadores também aproveitam a falta de regulamentação e o limite ordenado pelo estado nas taxas de depósitos, o que facilita para eles convencer clientes ávidos por obter retornos maiores de suas economias.

A ascensão da internet, especialmente os pagamentos online, exacerbou o problema ao tornar mais fácil executar golpes financeiros e mais difícil localizar os golpistas. As firmas tecnológicas da China estão profundamente envolvidas no desenvolvimento de serviços financeiros. No ano passado, por exemplo, a Fidelity lançou uma ferramenta de poupança para aposentadorias usando a Ant, uma das principais plataformas financeiras.

Os golpistas visam os clientes dessas plataformas, pois conseguem ter acesso a muito mais vítimas potenciais do que poderiam em encontros pessoais.

Tudo isso se combinou para tornar as fraudes financeiras um problema nacional que afeta toda a sociedade chinesa. As modalidades vão da venda de participação em "click farms" ("fazendas de cliques", em que os golpistas contratam pessoas para comprar produtos de lojas online em troca de reembolso total mais uma comissão) a produtos de investimento sem ativos subjacentes. David Zhang, um advogado antifraude sediado em Hangzhou, disse que atendeu vítimas de golpes que vão de professores de faculdade a trabalhadores fabris e estudantes colegiais. "Ninguém está imune aos fraudadores. Todos temos pontos fracos dos quais eles se aproveitam."

O problema não tem solução fácil. Enquanto Pequim fez um grande movimento para colocar os golpistas atrás das grades, e o número de detenções anuais aumentou cinco vezes nos últimos três anos, uma quantidade significativa de fraudadores saíram ilesos por meio de operações no exterior ou escondendo sua identidade com tecnologia aperfeiçoada.

"Estamos ficando sem recursos para localizar os golpistas", disse ao Financial Times um policial de Shandong especializado em esquemas financeiros.

Uma campanha educativa nacional contra fraudes foi lançada pelas autoridades chinesas em 2019, depois que o presidente Xi Jinping anunciou em uma conferência que o combate a esse problema era uma "alta prioridade", para dar segurança à população.

A campanha culminou no início deste ano com o lançamento do Centro Nacional Antifraudes, um app para celular que foi baixado mais de 500 milhões de vezes, o que o torna um dos mais populares do mundo. O governo usa diversos canais, de cartazes nas ruas a comerciais de TV, para informar o público sobre como são os golpes e como evitá-los.

Mas o app também causou polêmica por rastrear o uso dos celulares, censurar ligações do exterior e rotular de "maliciosos" apps de negócios como o da Bloomberg News.

Poucos chineses adultos podem passar um dia sem ser bombardeados por propaganda antifraude paga pelo estado. A maioria dos prédios de apartamentos tem cartazes na entrada dizendo aos moradores para não fazerem remessas de dinheiro para desconhecidos. Ônibus têm cartazes sobre como identificar golpes, enquanto telas de LED mostram celebridades propondo uma "guerra do povo" contra os golpistas.

Alguns lugares foram mais longe. No mês passado, Dongjing, um distrito de Xangai, começou a pedir que hóspedes de hotéis, ao se registrarem, leiam e assinem um folheto com instruções contra fraudes.
Enquanto isso, garçons de restaurantes foram treinados para informar aos clientes sobre prevenção a golpes antes de servirem os pratos.

"Queremos que a educação antifraude alcance todos os aspectos da vida das pessoas", disse uma autoridade de Dongjing.

Um dos principais beneficiários potenciais dessa iniciativa são estudantes de faculdade que sofreram muito com esses golpes. Uma pesquisa feita no ano passado com 2.746 alunos de universidades de toda a China pelo Diário da Juventude Chinesa mostrou que mais de um décimo dos respondentes tinha perdido dinheiro para golpistas.

Isso provocou uma nova onda de campanhas educacionais que visam tornar os jovens mais cautelosos. No ano passado, Xangai começou a exigir que 140 mil alunos de primeiro ano fizessem um curso antifraude online, salientando cinco golpes mais comuns, de chantagem a imitação de autoridades do governo a namoro online, com o objetivo de vender falsos produtos de investimento.

Alguns locais estão tão empenhados em combater os golpes que Jinan, uma cidade no leste do país, pediu no ano passado que estudantes universitários permitissem que a polícia antifraudes entrasse em seus grupos de rede social. A ideia era que as autoridades publicassem dicas de prevenção e vigiassem mensagens suspeitas.

"Queremos garantir que os estudantes estejam constantemente protegidos dos golpistas", disse uma autoridade de Jinan.

Os investidores no varejo são outro importante alvo da medida educacional, pois sua perícia financeira não acompanha o forte crescimento da riqueza das famílias. Uma pesquisa com 140 mil adultos do Banco Popular da China em abril descobriu que mais da metade dos respondentes não sabia calcular rendimentos anualizados e não compreendia o significado de diversificar os investimentos. Destes, 44% disseram que ignoravam ou apenas liam por cima os contratos financeiros.

Para reduzir a lacuna de conhecimento, o órgão regulador das finanças (que inclui o Banco Popular da China, a Comissão Regulatória de Seguros e Bancos da China e a Comissão Regulatória de Ações da China) ofereceu diversos cursos online e pessoais de treinamento, destinados a ajudar os investidores a tomar decisões mais informadas.

Esses cursos aumentaram de modo significativo depois do discurso de Xi em 2019. A agência também exigiu que assessores financeiros e gestores de ativos façam os investidores completarem testes de avaliação de riscos em vídeo, antes de decidir que produtos vão vender.

"Fizemos o possível para combinar a opção de risco dos investidores com os retornos esperados", disse John Wang, dono de um fundo de títulos de alto rendimento situado em Xangai que recusou dezenas de investidores por sua baixa tolerância a riscos.

Muitos investidores no varejo supõem um retorno garantido (o que é incentivado pelas campanhas de vendas dos fundos) de produtos de investimento com renda fixa, apesar de isso não existir na realidade. Um fracasso pode levar investidores irritados a processar as gestoras de fundos por fornecerem informação falsa.

Mas a campanha educacional não impediu que os golpes florescessem. Registros judiciais mostram que no ano passado os casos de fraudes a investidores em todo o país aumentaram mais de um terço em relação a 2019.

O fracasso da campanha se deve em parte a sua escala limitada. A maioria dos cursos de educação para investidores patrocinados pelo governo só alcança um pequeno número de estudantes, devido à falta de divulgação. Muitos programas de formação financeira particulares gozam de maior popularidade, mas sofrem conflito de interesses por promoverem produtos de investimento com fins de lucro.

Pior ainda, a maioria dos programas educacionais é genérica demais para cobrir o que é necessário para evitar fraudes.

"O professor nos disse que altos retornos incluem altos riscos", disse Daniel Wu, engenheiro de software sediado em Zhejiang que teve muitas aulas de formação financeira antes de perder 1 milhão de yuans (R$ 850 mil) num golpe. "Mas ele não disse qual parte do contrato de investimento devíamos ler com mais atenção para não sermos enganados."

Pequim aprovou uma das mais rígidas leis de proteção a dados pessoais do mundo, mas sua aplicação é muito irregular. Sun Yin, professor de política e direito na Universidade Southwestern, disse em um trabalho no ano passado que a falta de punição forte ao roubo de informações pessoais deixa os golpistas "à vontade".

Ji Shaofeng, consultor financeiro sediado em Nanquim e ex-regulador do sistema bancário, disse que a melhor informação pode ajudar o público a combater golpes em longo prazo. "No curto, o estado de direito é mais importante", afirmou.

Enquanto os casos de fraude continuam prosperando, porém, muitos acreditam que a educação por si só não basta para combater os fraudadores. O advogado Nie disse que a falta de proteção à informação pessoal permite que os golpistas produzam mensagens tão bem elaboradas que as vítimas acham impossível resistir.

Jenny Fan, a estudante vítima de fraude, sabe disso por experiência própria. "É difícil desligar um telefonema de um estranho quando ele sabe tantas coisas sobre você", disse. "Você fica escutando até que cai na armadilha."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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