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Um carro por minuto passava aqui, mas agora o caos reina

Terminal de carga no Kansas revela realidade perturbadora: ninguém pode planejar ou ter certeza do que acontecerá depois

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Peter S. Goodman
Kansas City | The New York Times

Logo depois das 5h30 em uma manhã fria de novembro, David Heide chega ao terminal de carga na periferia industrial de Kansas City, no Kansas, perguntando-se qual seria a nova tempestade daquele dia.
Sua empresa, a Jack Cooper Transport, entrega carros novos para revendedoras de fábricas em todos os Estados Unidos. Ela transporta alguns em semirreboques e envia um número maior por trens.

Antes que a cadeia de suprimentos global entrasse no caos, o terminal funcionava em um ritmo regular e confiável. Aproximadamente a cada minuto um carro novo saía da fábrica da General Motors vizinha, em Fairfax, e entrava no estacionamento do terminal. Vagões de trem traziam um fluxo previsível de veículos de outras fábricas da GM. Heide, o gerente do terminal em Fairfax, podia programar com segurança motoristas e equipes de pátio.

Hoje em dia, ninguém mais usa palavras como "previsível". Enquanto Heide atravessa o pátio às escuras, não tem ideia de quantos vagões a ferrovia com pouco pessoal enviou ou quantos veículos a GM colocará em espera. Ele não sabe se haverá trabalho suficiente para a equipe que convocou esta semana.

"Está uma verdadeira loucura em muitos terminais", disse Heide.

Imagem mostra homem com colete laranja, de costas para a câmera, trabalhando em plataforma de elevação de automóveis
A Jack Cooper Transport, em Kansas City, nos Estados Unidos - Chase Castor - 30.nov.2021/NYT

A grande disrupção da cadeia de suprimentos transformou os terminais de carga em zonas voláteis, cheias de incertezas e palpites duvidosos. Com quase dois anos de pandemia, ainda é quase impossível planejar de forma confiável em cada ponto da cadeia de suprimentos. Ninguém está em pleno controle das circunstâncias, nem pode adivinhar a situação de seus fornecedores, distribuidores e clientes. O resultado é um ciclo de variabilidade que impede iniciativas para reativar a economia depois dos bloqueios causados pelo vírus.

O terminal de Fairfax ressalta uma realidade perturbadora na economia global: tantas incógnitas perturbam a cadeia de suprimentos que qualquer semelhança de normalidade continua distante, mesmo enquanto o caos diminui em parte e os preços do frete caem.

Entre fevereiro e setembro, a GM suspendeu grande parte das operações na fábrica de Fairfax, devido a uma escassez crítica de chips de computador —elemento chave nos carros contemporâneos. A fábrica está produzindo de novo, funcionando em um turno só, em vez dos dois ou três anteriores.

Assim como o resto da indústria de frete, porém, o terminal está lutando para recrutar motoristas de caminhão, prevendo uma eventual enchente de novos veículos. Por enquanto, Heide resiste à pressão da GM para trabalhar mais rápido.

"As expectativas deles são que você aperte um botão e surjam 20 motoristas", disse Heide, 49. "Aí eu fico atolado, pagando 20 pessoas que não têm o que fazer."

Dentro do terminal, ao lado da mesa de despacho, meia dúzia de motoristas estão sentados em mesas de piquenique sob luzes fluorescentes, organizando suas entregas da manhã. Usando computadores tablet, eles verificam as tarefas disponíveis, cada uma marcada com o pagamento aplicável, baseado no número de quilômetros que eles devem dirigir do terminal até o destino. Eles escolhem por ordem de chegada ao emprego.

Dave Pinegar já esteve na estrada durante três horas, vindo para Kansas City de sua casa em Wichita, no mesmo estado, a quase 320 quilômetros a sudoeste.

"O pássaro que acorda cedo pega a minhoca, cara", disse ele.

Ele percorre as opções. Uma viagem até Broken Arrow, em Oklahoma, lhe renderia US$ 452 (R$ 2.530), enquanto uma mais longa até Malvern, no Arkansas, pagaria US$ 717 (R$ 4.015). O trajeto mais longo, de 1.025 quilômetros até Batavia, em Ohio, lhe daria US$ 929 (R$ 5.202), mas o manteria longe da mulher e das duas filhas durante pelo menos uma noite.

Ele escolhe uma viagem de volta a Wichita, que paga só US$ 299 (R$ 1.674). Se não houver nenhum problema, ele estará em casa ao meio-dia.

A carga de Pinegar ilustra as complexidades da cadeia de suprimentos.

Primeiro, ele vai parar em uma revendedora em Emporia, no Kansas, onde descarregará três SUVs Chevy Trailblazer feitos em uma fábrica na Coreia do Sul. Depois, ele continuará até Wichita levando dois Chevy Malibus da fábrica de Fairfax, e um par de Cadillacs: um sedã CT5 feito em Lansing, no Michigan, e um SUV Escalade produzido perto de Fort Worth, no Texas. Finalmente, há uma caminhonete Chevy Silverado azul fabricada no México.

"É uma longa viagem", disse Pinegar.

Já no pátio pouco depois das 6h, quando os primeiros raios de luz vazam pelo céu carregado, Pinegar começa a embarcar seus veículos pela rampa da cegonheira, como num número de circo. Depois ele cruza os portões e desaparece na rodovia interestadual.

Se alguma coisa der errado, a margem de erro encolhe.

Na semana anterior, um dos semirreboques de Heide teve um vazamento no radiador e parou perto de Elkhart, em Indiana —a 930 quilômetros de Kansas City.

A companhia teve o caminhão rebocado até uma oficina local. Em tempos normais, o motorista teria esperado ali mesmo a troca do radiador. Mas a oficina não tinha um radiador e não podia garantir quanto tempo levaria para conseguir.

Heide precisava tomar uma decisão. Poderia ter deixado o motorista em Indiana, apostando que o radiador chegasse até o fim de semana. Mas ele sabia que peças de veículos estavam paradas em contêineres em navios ancorados perto dos portos, de Los Angeles a Savannah, na Geórgia. Ele não tinha ideia se a oficina teria pessoal suficiente para fazer o trabalho, ou se a distribuidora de peças tinha motoristas para entregar o radiador rapidamente.

E ele corria o risco de pagar vários dias de hospedagem em motel para o motorista enquanto a carga ficava esperando.

Então Heide disse ao motorista para alugar um carro e voltar para casa. Ele arranjou outro motorista, baseado em um terminal da Jack Cooper perto de St. Louis, resgatar a carga e entregá-la em seu destino em Ohio.

Nascido e criado no centro de Kansas, Heide era apanhador no time de beisebol do colégio. Ele caminha pelo terminal com a confiança jovial de alguém acostumado a dar ordens, enquanto aceita brincadeiras bem intencionadas.

Mas não consegue esconder sua frustração por ter de apresentar resultados em um sistema dominado por fatores que estão fora de seu controle.

Na semana anterior, a GM lhe disse que pretendia liberar quase 700 veículos, esperando que Heide usasse 12 trabalhadores no pátio para carregar vagões de trem.

Mas Heide optou por uma abordagem cautelosa, prevendo —corretamente— que cerca de um quinto dos carros novos seriam deixados à espera. Ele trouxe só seis trabalhadores ao pátio, decidido a não absorver os custos de mãos ociosas.

Heide acredita que a normalidade está chegando. Ele pretende reforçar a produtividade, embora a incerteza sobre o suprimento prejudique seus esforços. Ele espera cinco caminhões novos, mas a mesma falta de chips que aflige o resto da indústria de carros significa que provavelmente ele terá de esperar pelo menos seis meses.

Por cima disso tudo, ele e seus colegas estão com falta de motoristas e precisam recrutar mais 15, tarefa que parece impossível.

"É horrível", disse Lindley Davis, diretora de recursos humanos da companhia, sediada em Atlanta, na Geórgia. "As pessoas querem ficar em casa. Não querem dirigir um caminhão."

A Jack Cooper é uma das duas únicas empresas sindicalizadas que restam na indústria de transporte de carros. Ela paga salários de treinamento que chegam a US$ 90 mil (R$ 504 mil) por ano, mais benefícios de aposentadoria e saúde com cobertura total dos custos. A empresa está distribuindo bônus de contratação de US$ 10.000. E ainda tem poucos interessados.

Em uma ligação com sua equipe de recrutadores, Davis ouve relatos de inscritos que desaparecem sem avisar, ou aceitam outras ofertas. Um motorista que aceitou o emprego recuou depois que seu antigo patrão triplicou seu salário.

Heide se vê contemplando duas opções indesejáveis: ele pode baixar seus padrões e aceitar pessoas que normalmente não pegaria para sair de seu pátio com cargas de US$ 1 milhão. Ou pode manter o nível, mas correr o risco de não ter motoristas suficientes quando a produção aumentar.

Ele visa um meio-termo, trazendo pessoas com boa experiência, mas detalhes que poderiam desqualificá-las, como muitos empregos em poucos anos.

Pouco antes das 15h, enquanto o sol da tarde brilha nos para-brisas no pátio, Heide fica sabendo que só 127 veículos chegaram de trem hoje e amanhã virão apenas mais 50.

"Isso não é nada em termos de um bom estoque para formar cargas", disse ele.

Ele enviou cinco motoristas ao outro lado do Rio Missouri para outro terminal da Jack Cooper próximo de uma fábrica da Ford para resolver seu atraso.

Heide se senta à mesa, verifica os e-mails e se prepara para o que virá agora.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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