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alimentação inflação

Brasil é tricampeão em grãos, fome e desmatamento

Análise da produção de alimentos revela tendência perigosa no acesso a alimentos saudáveis

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Ana Chamma

Pesquisadora do Grupo de Políticas Públicas (GPP) , GeoLab/Esalq-USP

Gerd Sparovek

Professor da Universidade de São Paulo, GeoLab/Esalq-USP

Tereza Campello

Economista, titular da Cátedra Josué de Castro/USP. Foi ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2011-2016)

A recente disparada da inflação, que atingiu principalmente o preço dos alimentos da cesta básica, acionou o alarme. Há quem responsabilize a pandemia de Covid-19, os fenômenos climáticos ou sua combinação pela falta de arroz e feijão no prato dos brasileiros e seus preços elevados.

Houve até quem culpasse os pobres por não fazerem uma substituição "racional", trocando o arroz pelo macarrão, em uma clara afronta à cultura alimentar brasileira e um profundo desconhecimento de princípios básicos de alimentação saudável.

Esse cenário, simultaneamente tenebroso, evitável e previsível, pode não ser passageiro. Uma análise estrutural da produção de alimentos revela uma tendência perigosa, com impactos deletérios na economia, no acesso a alimentos saudáveis e no meio ambiente.

Plantção de soja na Chapada dos Parecis, região da cabeceira do rio Jauru - Lalo de Almeida - 4.mar.2021/Folhapress

Nas últimas três décadas, a área plantada das culturas de arroz, feijão e mandioca, alimentos comuns no prato dos brasileiros, encolheu. Houve uma redução de cerca de 73% para o arroz, 54% para o feijão e 33% para a mandioca.

As três culturas alimentares —arroz, feijão e mandioca— mantiveram o volume de sua produção praticamente inalterado, com variações entre 1988 a 2020 de -6% para arroz, 8% para feijão e -16% para mandioca, o que indica que os ganhos de produtividade mal conseguiram compensar a diminuição da sua área de cultivo.

Considerando o aumento populacional neste período, a disponibilidade per capita desses três produtos foi drasticamente reduzida e despencou, em média, 35%.

Enquanto isso, cultivos que visam principalmente a exportação, a produção de ração para animais ou a transformação em biocombustíveis avançaram enormemente. No mesmo período (1988 a 2020), o volume produzido de soja aumentou 576%, de milho, 320%, e de cana-de-açúcar, 193%, numa combinação de ganhos expressivos de produtividade com uma também expressiva expansão de área plantada.

A soja expandiu 27 milhões de hectares, um aumento de cerca de 250%. Já os cultivos de cana-de-açúcar e do milho seguiram a mesma tendência de expansão de área, 140% e 36% respectivamente, totalizando cerca de 37 milhões de hectares para as três commodities.

Ainda que tenha havido aumento de produtividade e intensificação tecnológica nas culturas de soja, milho e cana-de-açúcar, estas não foram suficientes para garantir a estabilidade ou redução das áreas cultivadas (efeito poupa terra).

À medida que os investimentos em tecnologias produtivas e infraestrutura logística para a produção avançaram, aumentando a eficiência e a competitividade dos produtos brasileiros, essas culturas demandaram cada vez mais áreas —parte delas, ligadas direta ou indiretamente ao desmatamento, caracterizando o efeito rebote ou paradoxo de Jevons. Ou seja, há uma conta ambiental a ser computada neste processo.

Parte do desmatamento do cerrado e da Amazônia e da consequente perda de biodiversidade e aumento das emissões de gases de efeito estufa fazem parte das consequências da enorme expansão dessas culturas.

Não é demais lembrar que tal avanço é decorrente, em grande parte, de investimentos públicos em tecnologia produtiva, na disponibilidade de infraestrutura logística em larga escala, como silos, armazéns, rodovias, portos, entre outros, ligando os produtores aos mercados.

Além destes investimentos, também devemos contabilizar créditos de fomento e financiamento da produção, além da articulação de produtores, indústrias e governo na constante expansão do mercado desses produtos. Ou seja, diversas ações coordenadas por esses atores e implementadas de forma consistente e constante ao longo do tempo com forte participação de investimentos públicos e apoio político do governo.

Os benefícios desta dinâmica foram revertidos principalmente para os grandes produtores e grandes conglomerados financeiros, levando à consolidação da concentração produtiva.

A priorização de culturas como soja, milho e cana-de-açúcar pelo governo federal está vinculada à escolha míope da agenda econômica que aposta em uma estratégia centrada no modelo agroexportador brasileiro, nos remetendo de volta ao passado primário exportador.

Enquanto isso, observa-se a negligência com alimentos-chave para os brasileiros, que, a continuar essa tendência, é possível que tenham que dar adeus à famosa dupla arroz com feijão, cultivos que fazem parte da base da alimentação da população, principalmente dos segmentos sociais em situação de vulnerabilidade.

Esses números são reflexo do baixo investimento em toda a cadeia produtiva e na formação de mercados destes cultivos estratégicos para a segurança alimentar da população.

O aumento limitado da produtividade resulta de menores investimentos públicos em tecnologia produtiva e assistência técnica aos produtores. A agricultura familiar é a tradicional produtora de arroz, feijão e mandioca, mas vem, ao longo deste período, perdendo participação relativa da sua produção, e em anos mais recentes, viu as políticas públicas que a apoiava serem desmontadas.

O volume constante, apesar do aumento populacional, indica falhas em investimentos em infraestrutura logística, créditos e expansão de mercados. Também revela o peso da transição alimentar que tem determinado mudanças de hábitos da população, em geral trocando produtos saudáveis e in natura por alimentos ultraprocessados.

O Brasil se depara atualmente, de forma cotidiana, com o paradoxo de ver estampadas nos jornais três manchetes: recorde de produção de grãos, recorde de fome e recorde de desmatamento.

Não são de fenômenos isolados, são faces de um mesmo modelo hegemônico de produção e consumo de alimentos que privilegia as commodities e negligencia a comida dos brasileiros; que privilegia os interesses econômicos do agronegócio e se sobrepõe aos interesses na soberania e segurança alimentar e nutricional do país, levando a distorções sociais e ambientais relevantes.

Neste caso, além de desprezar a nossa cultura, a justiça social, a garantia ao direito humano à alimentação adequada e a soberania alimentar do país, trata-se de um erro de modelo econômico que despreza um poderoso mercado interno de 213 milhões de brasileiros e opta por um lugar atrasado, subserviente no cenário internacional e insustentável do ponto de vista social e ambiental.

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