Descrição de chapéu inflação

Leite caro: altos custos levam fazendeiros a desistir do ramo

Gasto com produção subiu 64% na pandemia e afetou também produtores de queijo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

À medida que a pandemia avançou, a alta do custo das rações e a perda de poder aquisitivo dos brasileiros atingiram em cheio os produtores de leite e também os fabricantes de laticínios.

Com isso, a produção de leite caiu 2,2% em 2021, sendo que no segundo semestre a queda chegou a 5%, na comparação com o mesmo período do ano anterior.

"Foi uma queda historicamente alta, com a oferta reagindo ao aperto da rentabilidade. A consequência disso é que estamos vendo a saída de produtores, ainda que não consigamos quantificar isso", diz o pesquisador Glauco Carvalho, da Embrapa Gado de Leite.

Entre março de 2020 e março de 2022, o custo de produção do leite subiu nada menos que 64%, segundo estimativa de Carvalho, principalmente por causa da alta das cotações da soja e do milho, muito usados nas rações animais.

Funcionário da fazenda Leite Letti, em Descalvado, no interior paulista, usa ordenhadeira mecânica para tirar leite de uma vaca, em um galpão climatizado
Em Descalvado (SP), ordenha mecanizada em galpões climatizados é exemplo da estrutura usada por produtores para ganhar escala, reduzir custos com mão de obra e obter maior produtividade - Eduardo Knapp 14.ago.20/Folhapress

"Esse incremento acabou apertando as margens [de lucro] dentro da cadeia produtiva. Começou apertando o produtor, depois a indústria [de laticínios]. E com a demanda mais fraca, a indústria não conseguiu repassar para os varejistas", diz o pesquisador.

A mudança no clima econômico não foi da noite para o dia. O ano de 2020 ainda foi positivo para o setor porque a demanda estava aquecida e os custos, relativamente sob controle.

"O leite é uma commodity muito dependente da situação econômica doméstica. Quando a economia brasileira, a renda e o consumo crescem, a cadeia leiteira cresce também", diz o pesquisador.

"Em 2020 vimos muita injeção de recursos nos programas sociais, o que ajudou muito porque trouxe os consumidores das classes C, D e E, o que acabou proporcionando o crescimento do setor", avalia Carvalho.

Já em 2021, o desemprego se manteve elevado e houve redução dos auxílios emergenciais, o que passou a afetar negativamente a demanda.

O analista de mercado Andrés Padilla, do banco Rabobank, destaca a alta média de quase 40% nos alimentos da cesta básica, entre o início de 2020 e o de 2022, movimento que explica a queda do consumo.

"Os consumidores estão passando por uma situação bem difícil, eles estão sentindo uma pressão muito grande. Por isso caiu o consumo de leite UHT, de iogurte e de alguns queijos também", diz ele.

O cenário também mudou para pior dentro das fazendas, onde a alimentação animal pode representar mais da metade do custo. "Houve uma escalada do custo de produção que começou em meados de 2020 com o milho e a soja, inclusive com a quebra da safra brasileira", diz.

A tendência altista se manteve, segundo o pesquisador, também porque os principais países desenvolvidos passaram a injetar muitos recursos em suas respectivas economias.

"Isso acabou levando a um processo mais forte de aumento de preços, o que acabou culminando nessa inflação mais elevada no mundo todo", diz Carvalho, da Embrapa, que menciona ainda os problemas de suprimento causados pelo lockdown.

Segundo o pesquisador, como o mercado de grãos está com os preços elevados, muitos desses produtores têm optado por mudar de atividade. Podem ainda arrendar suas áreas ou vendê-las, aproveitando a demanda aquecida por terra no interior do país.

Além do preço da ração, um custo fixo relevante tem a ver com a origem europeia do rebanho leiteiro brasileiro. Como são animais de clima temperado, precisam de temperaturas mais baixas, senão produzem menos. A saída usada pelos produtores com melhores condições econômicas é climatizar o ambiente, por meio de aspersores instalados nos galpões.

Produção se concentra nas grandes empresas

A concentração da produção de leite nas fazendas maiores não é um fenômeno somente brasileiro, diz Padilla, do Rabobank.

"O leite é uma atividade que demanda muito esforço da mão de obra e precisa ser realizada o ano inteiro. E é difícil conseguir uma rentabilidade boa se a escala é muito pequena. Vemos isso na Nova Zelândia, nos EUA, na Europa, com a consolidação do número de produtores. É um fenômeno mundial. As fazendas maiores representam uma parcela cada vez maior da produção total", avalia Padilla.

Os produtores maiores são mais lucrativos porque conseguem investir em novas tecnologias e equipamentos, bem como no aprimoramento genético do rebanho. Também plantam milho e soja, reduzindo o custo de produção.

Criam porcos para usar o esterco como fertilizante nas lavouras, além de venderem animais mais novos para outros produtores.

De acordo com Glauco Carvalho, da Embrapa, o setor leiteiro passa por um processo de reestruturação que se acelerou nos últimos anos.

"Do ponto de vista regional, a produção tem se concentrado cada vez mais nos estados do Sul, Minas, parte de Goiás, com um pouco de leite em Pernambuco, Alagoas e Rondônia, [com essas regiões] concentrando metade da produção nacional", diz o pesquisador.

O outro ponto tem a tem a ver justamente com a escala da produção. "Os produtores que entregam mais leite recebem preço mais alto. Esse diferencial de preço em alguns momentos pode chegar a 30%, o que dá uma ideia da diferença de rentabilidade do pequeno produtor", diz ele.

No Rio Grande do Sul, a Emater (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural) local calcula que cerca de 5 mil produtores deixem a atividade anualmente, número relativamente pequeno frente ao total nacional.

Presentes em praticamente todos os municípios do país, o número de produtores cai há décadas, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas).

Em 2017, o último levantamento disponível, havia 1,2 milhão de estabelecimentos produtores de leite – ante 1,4 milhão, em 2006, e 1,8 milhão, em 1996.

Na cidade líder leiteira do país, cooperativa amorteceu crise

Na cidade de Castro (PR), primeira colocada no ranking municipal de produção de leite, o Sindicato Rural, que reúne os produtores, calcula que cerca de 10% dos produtores associados optou por deixar a atividade desde 2021.

Segundo o produtor Roelof Hermannes Rabbers, diretor do sindicato e na atividade desde 1993, a crise só não chega com força maior na cidade porque o setor está organizado em cooperativa.

"Aqui todo mundo trabalha junto. Com um sistema de precificação que não sobe nem desce de uma vez. Temos um colchão de amortecimento das quedas e da subida de preço também. E isso é importante porque o leite dá despesa todo mês, não é como a soja e o milho", diz Rabbers.

No caso de Laniel Pereira, 29, filho e neto de produtores de leite em Indianópolis (MG), no Triângulo Mineiro, a decisão por trocar de atividade se deu em 2014. Hoje produz café, milho, soja e sorgo.

Ele entrou precocemente na produção leiteira, aos 12, por necessidade de assumir as tarefas que o pai deixou de realizar devido a um problema de saúde superado alguns anos depois. Após dois anos dividindo o negócio do leite com o pai, em 2009 partiu para o próprio rebanho, que tocou por cinco anos.

Produtor rural Laniel Pereira, de Indianópolis (MG), em frente à lavoura de cereal com pivô central ao fundo.
O produtor rural Laniel Pereira e sua lavoura em Indianópolis (MG): deixou o leite e hoje planta café, milho, soja e sorgo - 30.abr.2022 - Acervo pessoal

Optou por sair mesmo com lucro na gestão do rebanho de 70 cabeças, das quais em média 20 estavam em lactação e produziam 300 litros de leite ao dia, com produtividade de 15 litros por vaca.

"Não tinha prejuízo com o leite, mas o custo de oportunidade dos cereais era melhor", diz Pereira, para quem a rotina de trabalho diária do leite, mesmo no Natal e Carnaval, nunca foi uma questão. "O problema é fazer isso sabendo que a rentabilidade é baixa", diz o produtor, que não cogita voltar à atividade.

À frente da Abraleite (Associação Brasileira dos Produtores de Leite), Geraldo Borges diz que o cenário negativo não tem poupado ninguém do setor.

"A crise está afetando os pequenos, médios e grandes, ainda que obviamente os pequenos sofram mais por ter menor escala de produção, com menor poder de negociação. De norte a sul do país, e todas as formas de produção, com o aumento generalizado dos insumos de produção, a começar pelo alimento dos animais e o diesel", diz Borges.

O setor, afirma ele, tem levado há mais de três anos algumas demandas ao governo federal para enfrentar o período difícil, em particular para melhorar as condições de financiamento dos investimentos em novos equipamentos e tecnologias digitais.

Essas demandas teriam sido bem recebidas no Ministério da Agricultura, mas isso não teria sido suficiente.

"O ministro da Economia e sua equipe não têm olhos para o setor leiteiro. A [ex] ministra Tereza Cristina e o ministro Marcos Montes, que a sucedeu, são nossos parceiros, acataram muita coisa que levamos. Mas muita coisa morre no Ministério da Economia", diz o presidente da Abraleite.

A pesquisadora Natália Grigol, do Cepea (Centro de Pesquisa em Economia Aplicada) da Esalq (Escola Superior de Agronomia Luiz de Queiroz), chama atenção para outros efeitos da conjuntura ruim.

"O grande problema foi a sequência muito grande de margens comprometidas. A gente vê o resultado de curto, com a produção se ajustando para dar conta da demanda enfraquecida, como também o desinvestimento de médio e longo prazos", diz ela.

A falta de fôlego financeiro levou a uma espécie de antecipação da entressafra, avalia a pesquisadora, que normalmente ocorre a partir dos meses de junho ou julho, quando as pastagens não dão conta de nutrir o rebanho adequadamente. "Com isso, os preços [pagos ao produtor] voltam a se elevar no campo, agora direcionados pela oferta que diminui", diz Natália.

No caso dos laticínios, Padilla, do Rabobank, avalia que os produtos têm enfrentado a alta dos custos das matérias-primas, especialmente da energia e das embalagens.

A estrutura da indústria, no entanto, segue bastante pulverizada, apesar do crescimento de alguns grupos estrangeiros no mercado brasileiro.

"É verdade que a [mexicana] Lala comprou a Vigor, e a [francesa] Lactalis cresceu no Brasil. Mas a Nestlé diminuiu bastante de tamanho [no segmento lácteo]. No geral, a produção é bastante pulverizada, especialmente no caso do leite UHT, com pouca diferenciação de produto", diz o analista.

Aplicativo ajuda produtor a se organizar

Para auxiliar os pequenos produtores, a Epamig (Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais) lançou recentemente um aplicativo simplificado para o acompanhamento dos custos de produção.

"Esse projeto é direcionado para o produtor que é mais familiar, que é o menor, o mais pobre. E é o que tem mais sentido nos últimos anos essa crise do setor", diz o pesquisador Djalma Pellegrini, da Epamig.

Um dos complicadores é acompanhar a variação do custo de produção, que varia muito ao longo do ano. "A partir de junho, a situação complica porque só no pasto não é possível manter a produção de leite, precisa complementar com ração", diz ele.

A ideia do aplicativo surgiu depois de uma série de entrevistas com produtores de Minas Gerais, na qual ficou claro que faltavam noções básicas de gestão.

"Percebemos que a grande maioria dos produtores não sabia qual era o seu custo de produção. E iam tocando assim mesmo", diz Pellegrini.

A Epamig envia gratuitamente, pelo Whatsapp (34) 99911-8602, a versão para Android do aplicativo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.