Boneca loira de olhos azuis é herança da colonização, diz educadora

Barbies que fogem do padrão dos anos 1990 já são 35% das vendas da marca no grupo Ri Happy

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São Paulo

Carlos Bazzo, que fundou com os irmãos Paulo e Luiz a fabricante de brinquedos Cotiplás em 1982, em Laranjal Paulista (SP), sempre se incomodou ao ver crianças negras brincando com bonecas loiras. "Ainda nos anos 1990, lançamos uma versão negra da Xuxa", diz ele, que hoje tem 30% das vendas de bonecas na versão negra.

A tradição da boneca loira de olhos claros, em um país em que 56% da população se autodeclara negra ou parda, segundo o IBGE, vem da cultura do colonizador europeu.

"As primeiras bonecas industrializadas foram feitas na Alemanha e depois na França. E mais recentemente, com a expansão da indústria americana e a globalização, este fenótipo se consolidou", afirma a pedagoga Maria Ângela Barbato Carneiro, coordenadora do Núcleo Cultura e Pesquisas Brincar da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).

"Já vi crianças negras tentando enrolar o cabelo liso de uma boneca para que o brinquedo se parecesse mais com ela", afirma a educadora, que destaca iniciativas positivas de inclusão, como a Preta Pretinha, loja da Vila Madalena, na zona oeste de São Paulo, que produz e vende bonecas artesanais negras, orientais, indígenas, indianas, muçulmanas e cadeirantes, entre outras.

boneca loira de cabelos longos em roupa lilás e rosa
Barbie, da Mattel, na versão sereia: boneca se tornou uma das mais populares do mundo e consolidou um padrão de beleza. - FolhapressBruno Santos/ Folhapress

A pedagoga Nathalia Ramos, 23 anos, descobriu a bonecaria quando ainda estava na faculdade. "Meu TCC [Trabalho de Conclusão de Curso] foi sobre a falta de representatividade das minorias junto ao público infantil", diz ela, que lançou há dois anos a lojinha Lolly Bonecas, no Instagram, com brinquedos feitos a mão, e vem percebendo o aumento na demanda. "Faço bonecas negras, gordas, com vitiligo... O artesanato pode ser uma maneira de educar sobre diversidade."

As duas gigantes do setor de brinquedos, as americanas Mattel e Hasbro, têm procurado se redimir. A Mattel –que já foi alvo de feministas, por preconizar uma ditadura da beleza com a loira alta, magra e de olhos claros Barbie– vem fazendo homenagens a figuras históricas, com a linha "Mulheres Inspiradoras", criada em 2015.

No Brasil, a mais recente homenageada foi a cantora Iza, que recebeu a sua versão Barbie em novembro do ano passado. "A marca presta uma homenagem à cantora por tudo o que ela representa para as futuras gerações, ao quebrar barreiras e empoderar meninas e meninos de todo o mundo", informou a Mattel em comunicado.

"Eu precisava ter ouvido isso quando era mais nova: que eu tinha que ser exatamente do jeito que eu sou", disse a cantora à época. Iza foi a terceira brasileira homenageada pela Barbie, depois da biomédica Jaqueline Góes de Jesus (também negra, que ajudou a sequenciar o genoma do novo coronavírus) e da surfista Maya Gabeira. Neste caso, são bonecas exclusivas, que apenas a homenageada recebe.

mulher negra de blazer branco segura uma boneca igual a ela
Cantora Iza com a Barbie produzida em sua homenagem: "Precisava ter tido essa experiência quando mais nova" - Divulgação

Na opinião de Paula Ferolla, analista da empresa de pesquisas Euromonitor International, a diversidade tem sido um tópico importante na indústria de brinquedos e a Barbie se tornou um exemplo da tendência. "A boneca tem agora novos tons de pele, variados tipos de cabelo, além de opções como cadeirante, com vitiligo, com uma prótese dourada e sem cabelo", diz Paula.

No grupo Ri Happy, o maior do país no varejo de brinquedos, mais de um terço das vendas de Barbie (35%) são da linha fashionistas –onde estão as versões negras, não magras, cadeirantes etc. "A Barbie se reinventou e as vendas da boneca crescem dois dígitos, ano a ano", diz Sandra Haddad, diretora comercial do grupo.

Já a Hasbro, dona da Baby Alive (um dos bebês preferidos das crianças), vem se dedicando a aumentar o portfólio de bonecas negras, que começaram a chegar ao país em 2015.

"A marca sempre busca incluir todas as raças, promovendo a diversidade na brincadeira, que precisa ser divertida para todos", diz Kellen Silverio, diretora de marketing da Hasbro no Brasil.

Segundo a executiva, a empresa procura atender meninos e meninas de diferentes faixas etárias com os mesmos brinquedos. Neste sentido, oferece as massinhas Play-Doh para a primeira infância e os lançadores Nerf, para os mais velhos.

A diversidade é o mote na loja Trenzinho Brinquedos Educativos desde a sua fundação, em 1970. A empresa é especializada em brinquedos artesanais, de madeira e tecidos, que atendem tanto a meninos quanto a meninas.

"Já recebemos pais que criticavam nossa linha, chamando de 'brinquedo para retardado'", diz o diretor da Trenzinho, Alexandre Freitas Ito. "Felizmente, esse comportamento deixou de existir".

A redescoberta do brincar tradicional, com bolas, cordas, cabanas e casinhas de boneca, assim como a tentativa de parte dos pais de tirar o eletrônico das mãos dos filhos, levando-os para pedalar, por exemplo, têm ajudado as vendas da empresa. A Trenzinho faturou R$ 2,5 milhões no ano passado, uma alta de 30% sobre 2019, antes da pandemia.

Os pais de Ito –um químico e uma educadora– fundaram a companhia com a proposta de oferecer brinquedos fora do circuito comercial, dos grandes personagens da Disney. "Cerca de 60% do raciocínio lógico é formado até os 3 anos de idade", diz ele, destacando a importância de motivar o brincar logo na primeira infância.

Homem branco de camiseta azul em meio a brinquedos de madeira coloridos e bonecas de feltro negras
Alexandre Freitas Ito, diretor da Trenzinho Brinquedos Educativos: redescoberta do brincar tradicional tem ajudado as vendas da empresa, que aposta na diversidade. - Bruno Santos/Folhapress
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