Subsidiária da Hyundai usou mão de obra infantil em fábrica no Alabama

Empresa disse em nota que não tolera práticas ilegais de trabalho em nenhuma de suas unidades

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Joshua Schneyer Mica Rosenberg Kristina Cooke
Reuters

Uma subsidiária da Hyundai Motor usou mão de obra infantil em uma fábrica que fornece componentes para a linha de montagem da companhia sul-coreana em Montgomery, no Alabama, de acordo com a polícia da região, com as famílias de três dos trabalhadores menores de idade e com oito atuais e ex-empregados da fábrica.

Os trabalhadores menores, em alguns casos crianças de apenas 12 anos, trabalharam recentemente em uma usina de estamparia metálica operada pela SMART Alabama, disseram as fontes.

A SMART é mencionada pela Hyundai em documentos oficiais como uma subsidiária da qual o grupo sul-coreano é acionista majoritário, e fornece componentes para alguns dos modelos mais populares de carros e utilitários esportivos montados pela empresa em Montgomery, a cidade que abriga sua principal fábrica nos Estados Unidos.

Placa da Hyundai Motor Manufacturing em Montgomery, Alabama, nos Estados Unidos - Joshua Schneyer/Reuters

Em nota divulgada nesta sexta-feira (22), a Hyundai disse que não tolera práticas ilegais de trabalho em nenhuma das entidades da empresa. "Temos políticas e procedimentos em vigor que exigem o cumprimento de todas as leis locais, estaduais e federais", disse. A companhia não respondeu às perguntas detalhadas sobre as descobertas desta reportagem.

A SMART anunciou em comunicado que segue as leis federais, estaduais e municipais e "nega qualquer afirmação de que tenha deliberadamente empregado qualquer pessoa inelegível para trabalhar". A empresa disse que depende de agências de mão de obra temporária para preencher suas vagas, e que sua expectativa é de que "essas agências sigam a lei na hora de recrutar, contratar e colocar trabalhadores em nossas instalações".

A SMART não respondeu a perguntas específicas sobre os trabalhadores citados nesta reportagem, ou sobre situações de trabalho descritas por eles e por outras pessoas informadas sobre a fábrica descrita.

A Reuters foi informada de que havia trabalhadores menores de idade na empresa fornecedora da Hyundai depois do breve desaparecimento, em fevereiro, de uma criança de uma família imigrante guatemalteca, que sumiu da casa de sua família no Alabama.

A menina, que completa 14 anos este mês, e seus dois irmãos, de 12 e 15 anos, trabalharam na fábrica alguns meses atrás e não estavam indo à escola, de acordo com pessoas informadas sobre a situação de trabalho deles. O pai das crianças, Pedro Tzi, confirmou o relato dessas pessoas em uma entrevista à Reuters.

A polícia de Enterprise, a cidade para a qual os Tzi imigraram, também informou à Reuters que a menina e seus irmãos tinham trabalhado na SMART. A polícia, que ajudou a localizar a menina quando ela desapareceu, naquele momento a identificou pelo nome em um alerta ao público.

A Reuters não está citando o nome da adolescente neste artigo porque ela é menor de idade.

A força policial de Enterprise, uma cidade a cerca de 70 quilômetros da fábrica de Luverne, não tem jurisdição para investigar possíveis violações de leis trabalhistas na fábrica. A polícia em lugar disso notificou o secretário estadual da Justiça depois do incidente, disse o detetive James Sanders, da polícia de Enterprise, à Reuters.

Mike Lewis, porta-voz do secretário estadual da Justiça do Alabama, se recusou a comentar. Não se sabe se o departamento ou outros investigadores contataram a Hyundai ou a SMART com relação a possíveis violações.

Os filhos de Pedro Tzi, que agora estão matriculados na escola para o ano letivo que começa em setembro, estavam entre os numerosos trabalhadores menores de idade que encontraram empregos na fornecedora de componentes da Hyundai nos últimos anos, de acordo com entrevistas com mais de uma dezena de atuais e antigos trabalhadores da fábrica e profissionais de recursos humanos.

Diversos desses menores, disseram os entrevistados, tinham deixado a escola de lado a fim de trabalhar turnos mais longos na fábrica, uma ampla instalação que tem um histórico bem documentado de violações de segurança e de saúde, o que inclui riscos de amputação.

A maioria dos atuais e ex-empregados que falou à Reuters o fez sob a condição de que seus nomes não fossem revelados. A Reuters não conseguiu determinar o número exato de crianças que trabalharam na fábrica da SMART, que salário elas recebiam ou quais eram os outros termos de seus contratos de trabalho.

A revelação da presença de mão de obra infantil na cadeia de suprimento da Hyundai nos Estados Unidos pode causar reações adversas por parte dos consumidores e das autoridades regulatórias, e prejudicar a reputação de uma das montadoras de automóveis mais poderosas e lucrativas do planeta. Em uma declaração sobre sua "política de direitos humanos" postada online, a Hyundai afirmou que proíbe trabalho infantil em toda a sua força de trabalho, o que inclui seus fornecedores.

A companhia anunciou recentemente uma expansão nos Estados Unidos, e planeja investir mais de US$ 5 bilhões em diversos projetos, entre os quais a construção de uma nova fábrica de veículos elétricos perto de Savannah, Geórgia.

"Os consumidores deveriam se indignar", disse David Michaels, ex-secretário assistente do trabalho dos Estados Unidos na Administração da Saúde e Segurança Ocupacional (OSHA), a quem a Reuters revelou as constatações de sua reportagem.

"Eles precisam ver que esses carros estão sendo construídos, ao menos em parte, por trabalhadores que são crianças e deveriam estar na escola, em lugar de arriscar a vida e a saúde porque suas famílias estão desesperadas por renda", ele acrescentou.

Em um momento de escassez de mão de obra e desordenamento nas cadeias de suprimento dos Estados Unidos, especialistas em questões trabalhistas disseram à Reuters que há risco ampliado de que crianças, especialmente imigrantes desprovidos de documentos, terminem em locais de trabalho ilegais e perigosos para menores.

Em Enterprise, um polo do setor avícola, a Reuters registrou alguns meses atrás a situação de um menor de idade guatemalteco que imigrou sozinho para os Estados Unidos e encontrou emprego em uma fábrica de processamento de carne de frango.

Placa de boas vindas da cidade de Luverne, nos Estados Unidos, ao lado da SMART Alabama, subsidiária da Hyundai - Joshua Schneyer/Reuters

"Jovem demais"

As leis federais e do Alabama proíbem o trabalho de menores de 18 anos em operações de estamparia e torneamento de metais, como as da SMART, nas quais a proximidade com máquinas perigosas poderia expô-los a risco. A lei do Alabama também requer que todas as crianças com idade de 17 anos ou menos estejam matriculadas em uma escola.

Michaels, que agora é professor na Universidade George Washington, disse que a segurança nas operações americanas da Hyundai era uma preocupação recorrente na OSHA durante seus oito anos no comando da agência, até sua saída em 2017. Michaels visitou a Coreia do Sul em 2015 e disse ter advertido executivos da Hyundai de que a pesada demanda por componentes, sob o sistema "just in time", estava causando lapsos na segurança.

A fábrica da SMART produz peças para os populares modelos Elantra, Sonata e Santa Fe, veículos que, até junho, respondiam, por quase 37% das vendas da Hyundai nos Estados Unidos, de acordo com a empresa. Ela foi punida numerosas vezes pela OSHA, por violações de saúde e segurança, de acordo com registros do governo federal americano.

Um estudo desses registros pela Reuters mostra que a SMART recebeu pelo menos US$ 48.515 em multas da OSHA de 2013 para cá, a mais recente das quais este ano. As inspeções da OSHA na empresa documentaram violações que incluíam riscos de esmagamento e amputação em sua fábrica.

A fábrica, que segundo seu site tem a capacidade de fornecer componentes para até 400 mil veículos a cada ano, também enfrenta dificuldades para reter pessoal e atender à demanda da Hyundai.

No final de 2020, a SMART escreveu uma carta a funcionários do serviço consular americano no México, solicitando um visto para um trabalhador mexicano. A carta, enviada por Gary Sport, o gerente geral da fábrica, afirmava que havia "uma falta severa de mão de obra na fábrica" e que a Hyundai "não tolera essas deficiências".

A SMART não respondeu a perguntas da Reuters sobre a carta.

Fábrica da Hyundai em Montgomery, Alabama - Shannon Stapleton - 13.ago.2008/Reuters

Alguns meses atrás, advogados abriram uma ação judicial coletiva contra a SMART e diversas agências de recrutamento de pessoal que ajudam a obter vistos americanos para trabalhadores. O processo, aberto junto à justiça federal dos Estados Unidos no distrito norte da Geórgia, em benefício de cerca de 40 trabalhadores mexicanos, acusa que alguns trabalhadores, contratados como engenheiros, foram em lugar disso forçados a realizar trabalhos braçais.

A SMART rebateu as acusações, definindo-as como "infundadas" e "improcedentes" em documentos encaminhados ao tribunal.

Embora agências de recrutamento de pessoal ajudem a preencher as vagas industriais existentes nos Estados Unidos, é comum que sejam criticadas pelos defensores dos trabalhadores, porque sua presença permite que grandes empregadores terceirizem a responsabilidade por verificar a elegibilidade dos contratados para o trabalho.

Um ex-trabalhador da SMART, imigrante adulto que deixou a empresa e passou a trabalhar para outra companhia do ramo automobilístico no ano passado, disse que havia cerca de 50 trabalhadores menores de idade nos diferentes turnos de trabalho da fábrica, acrescentando que conhecia alguns deles pessoalmente. Outra antiga trabalhadora adulta da SMART, uma cidadã americana que saiu da empresa este ano, disse que em seu turno de trabalho ela tinha a companhia de uma dúzia de menores de idade.

Outra ex-empregada, Tabatha Moultry, 39, trabalhou na linha de montagem, da SMART por diversos anos, até 2019. Moultry disse que o giro de pessoal na fábrica era muito alto e que a empresa dependia cada vez mais de trabalhadores imigrantes, para atender à demanda imensa por produção. Ela disse que se lembrava de ter trabalhado com uma menina imigrante "que parecia ter 11 ou 12 anos".

A menina vinha trabalhar com sua mãe, disse Moultry. Quando Moultry lhe perguntou sua idade real, a menina respondeu que tinha 13 anos. "Ela era jovem demais para trabalhar naquela fábrica, ou em qualquer fábrica", disse Moultry, que não forneceu outros detalhes sore a menina; a Reuters não conseguiu confirmar seu relato independentemente.

Tzi, o pai da menina que desapareceu de casa por algum tempo, contatou a polícia de Enterprise em 3 de fevereiro, porque ela não tinha voltado para casa. A polícia divulgou um alerta âmbar, uma prática padrão das autoridades americanas quando elas acreditam que um menor de idade está em perigo.

As autoridades iniciaram uma operação de busca por Alvaro Cucul, 21, outro imigrante guatemalteco e trabalhador da SMART, naquele momento, porque Tzi acreditava que sua filha talvez estivesse com ele. Usando recursos de localização de celular, a polícia localizou Cucul e a menina em um estacionamento em Athens, Geórgia.

A menina disse que Cucul era seu amigo e que tinham viajado para lá em busca de novas oportunidades de trabalho. Cucul foi detido e mais tarde deportado, de acordo com pessoas informadas sobre sua situação. Ele não respondeu a uma mensagem da Reuters pedindo comentário, via Facebook.

Depois que o desaparecimento gerou cobertura noticiosa local, a SMART demitiu diversos trabalhadores menores de idade, de acordo com dois ex-empregados e outros moradores locais que conhecem a fábrica. As fontes disseram que a atenção da polícia despertou medo de que as autoridades pudessem agir para reprimir o uso de mão de obra menor de idade.

Tzi, o pai da menina, também trabalhou para a SMART e agora sobrevive fazendo trabalhos ocasionais no ramo da construção civil e madeireiro. Ele disse à Reuters que lamentava que seus filhos tivessem precisado trabalhar. A família necessitava de toda renda que pudesse, naquele momento, ele disse, mas agora está tentando seguir em frente.

"Tudo aquilo ficou para trás", ele disse. "As crianças não estão mais trabalhando, e quando as aulas começarem elas estarão na escola".

Tradução de Paulo Migliacci

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