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Giro pela Argentina revela que anos de inflação podem dar origem a uma economia verdadeiramente bizarra

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Jack Nicas Ana Lankes
Buenos Aires | The New York Times

Eduardo Rabuffetti é argentino e já esteve nos Estados Unidos uma vez, em 1999, em uma viagem de lua de mel a Miami. No entanto, ele provavelmente conhece a nota de US$ 100 melhor do que a maioria dos americanos.

Ele diz que consegue identificar uma falsificação pelo tato. É capaz de descrever exatamente que cara tem US$ 100 mil (dez pilhas de notas de pouco mais de um centímetro de altura, que é fácil segurar em uma mão). E em numerosas ocasiões caminhou pelas ruas de Buenos Aires carregando dezenas de milhares de dólares americanos nos bolsos do paletó.

Isso acontece porque Rabuffetti, que é incorporador de imóveis e construiu dois edifícios de escritórios e uma casa na capital argentina, comprou os terrenos para cada uma dessas construções pagando com notas de US$ 100.

Um supermercado em Buenos Aires, Argentina, um país que tem lutado com o rápido aumento dos preços por grande parte dos últimos 50 anos, 19 de julho de 2022 - Sebastián López Brach - 19.jul.2022/NYT

"Aqui, sem ver o dinheiro ninguém assina coisa alguma", ele disse. "Depois de todas as crises pelas quais passamos, posso dizer que você se acostuma".

E não é só Rabuffetti. Quase todas as grandes compras na Argentina —terrenos, casas, carros, obras de arte caras— são feitas com pagamento em dinheiro, pilhas altas da moeda americana.

Eduardo Rabuffetti, um promotor imobiliário que construiu nove torres de escritórios e concluiu cada uma dessas transações em notas de US$ 100 - Sebastián López Brach - 20.jul.2022/NYT

Para economizar, os argentinos guardam pacotes de cédulas americanas em suas roupas velhas, embaixo de tábuas do assoalho e em cofres à prova de bombas, cinco andares no subsolo, e que requerem passar por nove portões trancados.

Os argentinos detêm tanta moeda americana —​os especialistas acreditam que talvez mais do que em qualquer outro lugar fora dos Estados Unidos— que às vezes dólares são jogados fora por engano. No mês passado, transeuntes encontraram dezenas de milhares de dólares que o vento arrastou de dentro de uma lixeira na Argentina.

O dólar é rei na Argentina porque o valor do peso argentino está se desintegrando, particularmente durante o mês passado. Há um ano, a taxa de câmbio do dólar no mercado paralelo era de 180 pesos. Hoje, ela subiu para 298 pesos. Com a queda forte da moeda argentina, os preços estão em disparada, para acompanhar o ritmo. Muitos economistas antecipam que a inflação do país, que já chegou a 64% este ano, atinja os 90% até dezembro.

É uma das piores crises econômicas do país em décadas, e isso é dizer muito, se levarmos em conta os padrões argentinos.

Países de todo o mundo estão tentando lidar com o aumento dos preços, e talvez não haja uma grande economia que entenda melhor como viver com a inflação do que a Argentina.

O país vem lutando com o rápido aumento de preços durante a maior parte dos últimos 50 anos. Em um período caótico no final da década de 1980, a inflação atingiu a marca quase inacreditável de 3.000% ao ano, e os argentinos corriam para fazer suas compras antes que as lojas tivessem tempo de remarcar os preços. Agora a inflação alta está de volta, e excedeu 30% anuais a cada ano desde 2018.

Para entender como os argentinos lidam com a situação, passamos duas semanas em Buenos Aires e nos seus arredores, e conversamos com economistas, políticos, agricultores, "restaurateurs", corretores de imóveis, barbeiros, taxistas, cambistas, artistas de rua, ambulantes e desempregados.

Uma coisa se tornou perfeitamente clara: os argentinos desenvolveram um relacionamento altamente incomum com seu dinheiro.

Eles gastam seus pesos praticamente no momento em que os recebem. Compram tudo, de televisores a descascadores de batatas, em prestações. Não confiam nos bancos. Raramente usam crédito. E, depois de muitos anos de aumentos constantes de preços, não fazem muita ideia de quanto as coisas deveriam custar.

Até agora, as coisas vêm se mantendo em geral calmas. Os salários de muitos empregos estão aumentando em quase 50% por ano. Proprietários de imóveis podem aumentar seus aluguéis por taxas semelhantes. E milhões de argentinos usam o mercado paralelo para fugir das restrições governamentais à compra de dólares americanos.

O resultado é que, nas áreas mais ricas da capital argentina, a construção continua em ritmo acelerado e os restaurantes e bares estão lotados. No Anchoita, um dos restaurantes mais procurados de Buenos Aires, há reservas disponíveis só para janeiro.

Nos bairros mais pobres, as pessoas coletam papelão para vender, se juntam para comprar comida em grupos, e fazem escambo de mercadorias, evitando de vez o uso do peso. Os pobres da Argentina normalmente não têm empregos com reajustes salariais automáticos, e certamente não têm dinheiro sobrando para comprar dólares americanos. Isso significa que eles ganham muito pouco, e em pesos, enquanto os preços de tudo que os cerca se tornam mais e mais caros. Cerca de 37% dos argentinos vivem na pobreza, hoje, ante os 30% de 2016.

Em 2 de julho, o ministro da Economia argentino se demitiu. Nos 26 dias que se seguiram, o valor do peso caiu em 26%. Então, o presidente Alberto Fernández demitiu a nova ministra da economia. Foi a 21ª vez que um ministro da economia argentino durou dois meses ou menos no posto.

Imprimindo mais pesos

O recente surto de hiperinflação na Argentina está vinculado às mesmas coisas que fizeram subir os preços em todo o mundo, entre as quais a Guerra da Ucrânia, o desordenamento nas cadeias de suprimento e grandes aumentos nos gastos públicos.

Mas muitos economistas também acreditam que a inflação da Argentina seja autoinfligida. Em resumo, o país gasta muito mais do que é necessário para financiar serviços de saúde gratuitos ou profundamente subsidiados, universidades, energia e transporte público. Para suprir o déficit, o governo imprime mais pesos.

O FMI (Fundo Monetário Internacional), ao qual a Argentina deve US$ 44 bilhões, pediu ao governo que cortasse seu déficit e adotasse políticas monetárias mais rígidas. Na quarta-feira, o novo ministro da Economia, Sergio Massa, deu um dos passos mais significativos em muitos anos, ao prometer que a Argentina deixaria de imprimir pesos para financiar seu orçamento.

Os preços estão flutuando tanto que, nas últimas semanas, muitas empresas suspenderam suas vendas para tentar determinar em que ponto eles se estabilizarão, o que tornou difícil encontrar certos itens, entre os quais óleo de cozinha e peças para automóveis. Alguns agricultores também decidiram não vender suas safras de trigo e soja, apostando que os preços vão subir —e com isso reduzindo os benefícios de um boom das commodities que deveria beneficiar um país exportador como a Argentina.

Em uma lojinha no centro de Buenos Aires, Noelia Mendoza estava vendendo o fim de seu estoque de papel higiênico. Os fornecedores informaram que que não tinham mais papel higiênico para fornecer, o que a levou a aumentar o preço. Um pacote de quatro rolos folha única agora custa 290 pesos, ou US$ 1, 50% acima do preço do mês anterior. "Vai haver uma escassez", ela disse.

Carla Cejas, amiga de Mendoza, que estava na loja, deu seu palpite: "Eu nunca entendi por que as pessoas tinham bidês, até agora".

Uma mochila com 10 mil notas de US$ 100

Ignacio Jauand, 34, é agente de imprensa e compra tudo que pode em parcelas, o que inclui sua cama, suas roupas, um console PlayStation 5 e um descascador de batatas.

Não é que ele não tenha condições de pagar à vista, mas sim que está apostando que o peso vai cair. Se ele estiver certo, seus pagamentos finais custarão significativamente menos. Ele disse que essa aposta sempre valeu a pena. "A última prestação que paguei da compra da minha TV ou geladeira era o preço de dois ou três combos do McDonald's", ele disse.

"É comprando coisas que você vence a inflação", ele acrescentou.

Ignacio Jauand, que, como muitos, comprou tudo para um novo apartamento, inclusive um descascador de batatas, em parcelas, pois acabará devendo menos se o peso continuar desvalorizando - Sebastián López Brach - 21.jul.2022/NYT

Esse é o mantra da Argentina. O valor dos pesos se desintegra, portanto o melhor é gastá-los o mais rápido possível.

O banco central da Argentina estima que as famílias e empresas não financeiras argentinas detenham mais de US$ 230 bilhões em ativos financeiros estrangeiros, em sua maioria denominados em moeda americana. A maior parte desse dinheiro é mantida em contas bancárias internacionais, mas parte dele está guardada em cofres e esconderijos espalhados pelo país.

Essa dependência com relação ao dólar faz mal ao peso, e por isso o governo impede os argentinos de comprar mais de US$ 200 em moeda americana a cada mês. Para adquirir essa quantia, os argentinos podem usar a taxa de câmbio oficial do governo, que diz que cada dólar americano vale cerca de 130 pesos.

Mas uma taxa de câmbio diferente –usada em transferências internacionais de fundos, certas transações corporativas e no mercado paralelo— avalia o peso em menos de metade dessa cotação. O dólar hoje vale cerca de 300 pesos, sob essa taxa. (E já que ela é uma medida mais verdadeira da visão do mercado aberto sobre o peso, nós a utilizamos para converter os valores citados neste artigo.)

Yanina Arias, corretora de imóveis em Buenos Aires, disse ter completado centenas de negócios em seus dez anos de carreira, mas nenhum liquidado em pesos. Os vendedores muitas vezes exigem "notas de dólar sem manchas, sem rasgos, e com efígies grandes", disse Arias. "Notas com efígies pequenas não são aceitas"

A efígie em questão é o rosto de Benjamin Franklin. O mercado paralelo geralmente oferece 3% a mais por cédulas mais novas, com a efígie maior de Franklin, porque são mais difíceis de falsificar.

Sete argentinos descreveram ter comprado imóveis pagando em dinheiro, mas poucos estavam dispostos a permitir que seus nomes fossem mencionados no artigo, por medo de uma auditoria.

Para ir ao banco a fim de fechar um negócio, eles relataram carregar dezenas de milhares de dólares nas calças e em sacolas de supermercado cheias de produtos. Arias disse que pessoas mais ricas contrataram carros blindados.

Uma trabalhadora do setor de serviços financeiros em Buenos Aires disse que, quando ela vendeu a fazenda de sua família por US$ 1 milhão, há alguns anos, o comprador lhe entregou uma mochila cheia de notas de US$ 100, 10 mil delas.

Mais tarde, quando comprou seu apartamento, ela colocou US$ 100 mil do dinheiro nos bolsos de um casacão e foi correndo à casa do vendedor. Os vendedores, um casal mais velho, fizeram questão de contar o dinheiro manualmente, nota a nota.

Tradução de Paulo Migliacci

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