MST passa por 'rebranding' e se aproxima das cidades e da classe média

Movimento centra esforços em bandeiras como agroecologia e busca ganhar escala na produção

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São Paulo

Quem percorre ruas, praças e comércios no centro de São Paulo dificilmente escapará de encontrar alguém usando bonés vermelhos com uma imagem já bastante conhecida: um homem segura um facão, ao lado de uma mulher, com o mapa do Brasil ao fundo. Apesar da distância do conglomerado urbano em relação ao campo, a peça é o símbolo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST.

A popularização do boné reflete uma mudança de estratégia que se intensificou nos últimos dez anos, com o movimento centrando esforços na produção de alimentos, na bandeira da agroecologia e na aproximação das cidades e das classes médias. Mesmo o boné ganhou outras cores, como preto, verde, bege e com o arco-íris da bandeira LGBT+.

"Os ricos sempre nos odiaram e isso não vai mudar. A classe média já esteve contra nós, mas agora ela está a favor. Nós pegamos a classe média pela agroecologia, o arroz, a Bela Gil", diz João Pedro Stédile, dirigente e um dos fundadores do MST. A agroecologia prevê um modelo de agricultura sustentável, sem o uso de agrotóxicos ou defensivos agrícolas, e que preserve o entorno.

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Maria Alves vive em uma área ocupada pelo MST em Perus, na capital paulista, há 20 anos; ela vende frutas, verduras e temperos produzidos em sistema agroecológico - Karime Xavier/Folhapress

No dia em que Stédile conversou com a Folha, a chef Bela Gil, conhecida pela culinária natural, foi a mestre de cerimônias de um encontro do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em campanha pela Presidência da República, com cooperativas.

"O MST vem atualizando seu programa permanentemente, porém, de 2014 para cá, houve uma inflexão, uma vontade política maior por conta das mudanças no capitalismo, na agricultura e, sobretudo, nos crimes ambientais", afirma Stédile.

Nessa atualização, ganha espaço na pauta da reforma agrária a produção de alimentos para a cidade, com a incorporação da agroecologia e da agroindústria. "Não é só que o MST mudou. As necessidades e as soluções mudaram."

Existem hoje 160 cooperativas sob a bandeira do movimento produzindo alimentos. O líder do setor no MST, Daniel Mancio, estima que de 25% a 30% da produção dos assentamentos e acampamentos esteja organizada em cooperativas.

O restante vem de núcleos menores, que acabam vendendo suas produções a atravessadores, que serão depois os responsáveis pelo beneficiamento e industrialização. Sobre esses, o MST não consegue calcular o quanto vem sendo produzido.

O tipo de produção varia de acordo com a região do país, mas as principais (e que já conseguem ganhar alguma escala de mercado) são arroz, feijão, milho, trigo, café, cacau, mel, mandioca, leite, carnes e hortaliças.

Mancio afirma que a organização das cadeias produtivas permite que os produtores tenham mais controle das etapas e consigam agregar valor, gerando mais renda às famílias e trabalho interno. Permite, além disso, que o movimento se comunique com o consumidor.

O arroz orgânico produzido no Rio Grande do Sul, por exemplo, é distribuído aos pontos de venda com a marca Terra Livre, criada para comercializar os vários produtos de 19 cooperativas de assentados.

A produção do arroz pelo MST varia de 20 mil a 25 mil toneladas por ano (os orgânicos ficaram em cerca de 15 mil toneladas neste ano, devido à seca; a produção total de arroz pelo movimento é de 45 mil toneladas).

Mesmo que a produção siga princípios agroecológicos, com o uso de bioinsumos e o manejo de água e florestas, a classificação como orgânico depende de uma certificação.

É o caso do cacau produzido no sul da Bahia —cerca de 30 mil arrobas por ano—, que segue o sistema cabruca, quando os pés são plantados no meio da mata. São cerca de 2.600 hectares de produção, mas não há o selo de orgânico.

Na Grande São Paulo, a produção da cooperativa Terra e Liberdade está distribuída em três áreas: a Comuna Irmã Alberta e os assentamentos Dom Thomás Balduíno, em Franco da Rocha, e Dom Pedro Casaldáliga, em Cajamar. Juntas, venderam em 2022 cerca de 8 toneladas de legumes, 12 toneladas de frutas, 21,2 mil pés ou maços de folhas e 8.400 maços de temperos.

A cidade de Cajamar, vista a partir do acampamento Comuna da Terra Irmã Alberta, onde vivem cerca de 70 famílias ligadas ao MST - Karime Xavier/Folhapress

Raul de Almeida Miranda, dirigente do setor de produção da Grande SP, diz que nem todos vendem suas produções por meio da cooperativa. Há quem produza apenas para consumo próprio ou faça vendas diretas.

Iranice Ferreira Pereira, 76, conta que uma das estrelas do roçado que mantém com o irmão, Lázaro Ferreira, 63, é o milho. Em janeiro, quando começa a colheita, o grão é disputado pela vizinhança. "Vem gente até de Barueri comprar na cerca. Não sobra para a cooperativa."

A produtora rural atribui o sucesso ao uso de sementes crioulas, como são chamados os grãos não-modificados geneticamente. "Você come milho em São Paulo e não tem gosto de nada. Tem que encher de manteiga para sentir alguma coisa. No meu milho, não, ele é até docinho."

Nice, como é conhecida, vive e produz na Comuna da Terra Irmã Alberta, uma área de 116 hectares em uma região cobiçada por desenvolvedores imobiliários. Próxima ao quilômetro 28 da rodovia Anhanguera, o acampamento fica no bairro de Perus, na divisa da capital com Cajamar e Santana de Parnaíba.

A comuna segue um modelo de ocupação que privilegia as franjas das cidades na produção de hortaliças, que demandam menos espaço, e que são favorecidas pela curta distância entre o produtor e o consumidor.

Nice Ferreira Pereira, em meio a pés de rubim; ela também planta milho, mandioca, cúrcuma e hortaliças - Karime Xavier/Folhapress

Maria Alves, 69, está na área desde a ocupação. Lá, criou os dois filhos, e continua na lida diária de cuidados com verduras, parreiras e temperos. Também mantém uma seleção de pancs (acrônimo referente a plantas alimentícias não convencionais) e frutas como amora e banana.

"Aqui eu tenho um sistema integrado. Tenho as árvores frutíferas, o galinheiro, a horta, o plantio de uva", diz, sinalizando o entorno da casa.

Apesar de não parecer um acampamento —os lotes estão divididos e as casas são de alvenaria—, o Irmã Alberta não é um assentamento e nem está em processo de se tornar um. Hoje cerca de cem famílias vivem na região, das quais 70 são ligadas ao MST, que ocupou a área em 2003.

Em articulação com outros movimentos sociais que atuavam em Perus, a ocupação pretendia evitar que o terreno virasse um aterro sanitário.

A área pertence à Sabesp. À Folha, a empresa afirmou que está trabalhando pela venda. Segundo o MST, um processo de desapropriação chegou a ser iniciado, mas o valor de avaliação do terreno foi considerado muito alto. Eles dizem ter autorização da empresa para ficar no local.

A situação irregular, porém, faz com que os produtores lidem com falta d’água e dificuldades de acesso às linhas de financiamento.

Também não conseguem participar de editais públicos, por meio dos quais as cooperativas vendem suas produções ao Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar) –30% do orçamento de merenda precisa ter origem na agricultura familiar.

O MST calcula ter vendido, em 2021, R$ 400 milhões em produtos para alimentação escolar. Segundo Stédile, fornecer merenda é uma prioridade do MST.

"Tu leva um arroz saudável para todo o Brasil e para as crianças", diz. O dirigente afirma ainda que a venda de produtos orgânicos para a classe média é secundária. "Ela tem direito e é bom que coma comida saudável, mas aí não é o mercado da reforma agrária popular."

A cooperativa da Grande SP, como outras, enfrenta gargalos no escoamento. O crescimento da produção passa, necessariamente, pela adoção da agroindústria que, segundo Miranda, do MST, daria "tempo de prateleira" ao permitir, por exemplo, embalar frutas e legumes a vácuo.

A produção da comuna Irmã Alberta é vendida em São Paulo por meio de grupos de consumo (que se organizam em bairros para comprar cestas quinzenais ou mensais) e pelo ecommerce.

No centro expandido, a própria regional faz as entregas ou deixa em pontos de retirada, como a Casa do Povo, no Bom Retiro, ou no Sol y Sombra, na Bela Vista.

Há ainda o Armazém do Campo, onde são vendidos produtos de cooperativas de todo o Brasil. No hortifrúti, a distância máxima da origem é de 100 quilômetros. O parâmetro é importante para manter o custo de logística baixo e não impactar o preço final, explica Ademar Ludwig, coordenador da rede Armazém do Campo, que está com 20 lojas físicas e 40 pontos de comercialização no país.

A abertura da primeira loja, em 2016, foi uma consequência da feira semanal de orgânicos do parque da Água Branca, na zona oeste de São Paulo, onde as cooperativas levavam suas produções. Inicialmente, a ideia era ter um nome mais "neutro", sem tanta associação ao MST.

"Mas desde a inauguração vimos que quem vinha era apoiador. Hoje nosso público vem também da galera do orgânico, por conta do preço", afirma Ludwig. Segundo ele, o esforço é manter os preços competitivos em relação aos produtos convencionais e aos orgânicos vendidos em outros locais.

"Nossa banana está sempre mais barata que a do sacolão. O leite nós mantivemos em R$ 6, quando os mercados cobravam R$ 8, R$ 9." Cerca de mil itens de 200 grupos organizados são vendidos nas unidades do armazém. O plano é ter 150 pontos até 2025 em todo o Brasil.

O quilo do tomate italiano, que custava cerca de R$ 19,98 no ecommerce de uma loja de orgânicos, era encontrado por cerca de R$ 12,98 na loja abastecida pelas cooperativas. A cenoura custava cerca de R$ 13,80, o quilo, na concorrência, e R$ 14,98, no site do Armazém do Campo.

As lojas, diz o gestor, não miram lucro líquido. "Na nossa política de preço a gente visa o lucro bruto para a loja se manter, bancar quem está trabalhando, água, luz, aluguel, segurança e, claro, a parte da cooperativa, que é o principal sentido. Se alguém tem que ganhar, é o assentamento."

Na avaliação da psicóloga Cecília Russo Troiano, que trabalha com gestão de marcas, o MST passou por uma espécie de reposicionamento.

"Alimento é uma troca muito simbólica, de muito afeto", diz. "Tem uma classe média que ainda se sente ameaçada, mas, ao mesmo tempo, os alimentos são uma causa sensível para esse mesmo grupo. As cooperativas ganharam evidência."

O trabalho do MST com a agroecologia e mesmo a captação no mercado financeiro podem, segundo ela, ter ajudado a despertar o interesse de um público que, até então, tinha apenas a memória de um movimento de táticas agressivas. "Eles mostraram sua contribuição social e as pessoas puderam ver esse outro lado que talvez estivesse eclipsado."

MST vai ao mercado financeiro de novo para captar recursos

Outra aposta do movimento é o mercado financeiro. Em setembro de 2021, sete cooperativas fizeram uma captação de recursos por meio da emissão de CRAs (Certificados de Recebíveis Agrícolas), em uma operação considerada emblemática.

Duas novas estão em modelagem, segundo João Paulo Pacífico, presidente da Gaia Impacto, responsável pela captação de 2021, e por uma outra, em 2020, aberta apenas a investidores qualificados.

Para Pacífico, o número de interessados no investimento reflete a mudança na maneira como o mercado financeiro vê o MST, assim como a existência de uma classe média interessada em causas sociais. "Mais de 5.000 pessoas se interessaram", diz Pacífico. Desses, cerca de 1.500 conseguiram aplicar nos certificados.

Foram R$ 17,5 milhões captados para ampliação da estrutura de agroindústria das cooperativas, como máquinas de beneficiamento, seladoras e empacotadoras.

O investimento visa solucionar um gargalo para o crescimento da capacidade de processamento e beneficiamento do que é produzido nos assentamentos.

Pacífico diz ter tido apenas boas experiências em trabalhar com as cooperativas ligadas ao MST.

"Em oito anos financiando o agronegócio tradicional, tive inúmeros problemas, desde grandes agricultores do Centro-Oeste a tradings de café agindo de má-fé", afirma. "Com a agricultura familiar não há má-fé. Se ele não pagar, sabe que não consegue dinheiro mais."

Na avaliação do investidor, apesar de a imagem pública do movimento ter melhorado, há ainda muito preconceito pelo que ele considera ser consequência de "muita narrativa, muita propaganda". "Quem produz alimento no Brasil é o MST e a agricultura familiar. O agronegócio produz commodities para exportação."

MST como arma eleitoral

A caracterização do MST como invasor de terra violento é um discurso frequente do presidente Jair Bolsonaro (PL), em campanha pela reeleição, desde antes de assumir o Planalto.

"Antes, no governo Lula e Dilma, o MST fazia da terra motivo de invasão, briga e morte", diz o narrador de uma propaganda eleitoral produzida pela coligação encabeçada pelo presidente. Ao fundo, imagens de um trator destruindo pés de laranja.

No início dos anos 2010, o MST invadiu a fazenda Santo Henrique, que produzia laranjas para a Cutrale, pelo menos cinco vezes. A área da propriedade era, segundo o Incra, pública.

"Com Bolsonaro, a terra é motivo de vida, trabalho e orgulho", completa a propaganda eleitoral.

Lula também foi provocado, mais de uma vez, a responder sobre a proximidade do PT com o movimento. No Jornal Nacional, disse que "aquele MST de 30 anos atrás não existe mais" e elogiou o trabalho do grupo na produção de alimentos ao ser questionado que papel o movimento teria em seu governo.

O MST defende as ocupações de terras e rejeita a pecha de invasor. Mais do que uma questão semântica, a escolha da palavra embute um posicionamento político, no qual se compreende haver o direito em tomar posse dessas áreas.

"Quem está invadindo terra hoje? Na concepção da palavra, de ir lá, usurpar para enriquecer? São os fazendeiros que estão invadindo terra pública, invadindo terra indígena. Esse negócio de dizer que o MST invade já é um discurso meio gasto. Quem está invadindo não somos nós", diz João Pedro Stédile, um dos fundadores do movimento.

O Incra diz que não monitora invasões de imóveis ou propriedades rurais. Segundo relatório da Comissão Pastoral da Terra sobre conflitos no campo, foram registradas 50 ocupações ou retomadas de terras no Brasil em 2021 e três acampamentos. Quase dez anos antes, em 2012, foram 255 ocorrências, e 15 acampamentos. O levantamento não detalha essas ocupações por movimento ou estado.

Para o MST, a ocupação ou invasão de propriedades é um instrumento de pressão política para fazer cumprir a legislação. A Constituição Federal prevê a desapropriação de terras para reforma agrária do "imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social" -são as terras improdutivas.

A atualização no posicionamento do MST, com a aproximação das zonas urbanas, também tem efeitos sobre essa busca por áreas rurais. Stédile afirma que em um eventual governo Lula [o segundo turno das eleições será no dia 30 de outubro], não haverá necessidade de desapropriar tanta terra.

"Essa será a novidade", diz ele. "Porque nós queremos que chegue mais perto da cidade, então vamos ver aqui na Grande SP quais as áreas improdutivas, o governo vai lá e compra."

Erramos: o texto foi alterado

O quilo da cenoura no Armazém do Campo custa R$ 14,98, não R$ 35, como afirmava versão anterior deste texto, já corrigido. O preço havia sido incorretamente registrado pelo próprio sacolão e foi arrumado depois da publicação da reportagem.

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