'Não podemos desperdiçar este momento histórico', diz Ilan, primeiro brasileiro presidente do BID

É hora de harmonia e de trabalho que orgulhe a todos, diz economista após eleição à revelia de ala do PT; executivo defende combate à fome e crescimento inclusivo

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Brasília

Ainda que não tenha recebido apoio oficial do governo eleito de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o economista Ilan Goldfajn atribuiu ao consenso em torno do seu nome a sua histórica eleição, neste domingo (20), para o posto de presidente do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento).

"A primeira coisa que eu vou fazer é sentar com todo mundo para escutar", disse à Folha em sua primeira entrevista após a eleição. "Não podemos desperdiçar este momento histórico, [devemos] fazer um trabalho que nos orgulhe a todos no Brasil e na América Latina."

Ilan prefere não comentar a atuação de parte do PT contra seu nome. "O que posso dizer é que a minha candidatura representa o Brasil, [...] que sou e sempre fui independente, e que minhas gestões são técnicas."

Ele destaca que há afinidades em seu projeto e o do PT. "É um prazer avançar com a minha plataforma, que coincide muito com a do governo eleito do Brasil", afirma ele, que defende o combate à fome e um crescimento sustentável e inclusivo.

Homem calvo de meia idade de pé, usa óculos, veste terno preto e camisa branca. Ao fundo, plantas verde vibrante
Economista Ilan Goldfajn; com passagens pela iniciativa privada e por cargos públicos, é o primeiro brasileiro a ocupar o posto de presidente do BID - 1º.set.20 - Marcelo Pereira/Fotoka

O BID é considerado o maior e mais antigo organismo multilateral regional do mundo e financia projetos de desenvolvimento econômico, social e institucional na América Latina e no Caribe. A sede fica em Washington (EUA). Foi fundado em 1959 por iniciativa de países latino-americanos liderados pelo Brasil, durante o governo Juscelino Kubitschek (1956-1961), mas nunca um brasileiro havia comandado a instituição.

Ilan recebeu 80% dos votos e teve apoio de 26 países, disputando com quatro outros indicados. Na reta final, a Argentina retirou a sua candidata para votar no brasileiro. São 48 membros, mas os votos têm pesos diferentes. Ele contou com apoio dos Estados Unidos, que representam 30% dos votos. Brasil e Argentina têm, por sua vez, 11,4% dos votos cada um.

O sr. será o primeiro brasileiro presidente do BID, e com uma votação expressiva. A que o sr. atribui esse resultado? Acho que foi uma combinação. É uma candidatura do Brasil, e o Brasil é importante para a região. Também houve a percepção que o meu perfil encaixava. Sou apolítico. Não tenho filiação partidária. Desde o convite, entendi que a minha candidatura era de Estado, e acho que a minha eleição agrega todo mundo.

O sr. é conhecido como técnico e não afeito à exposição política. Como foi a tarefa de buscar votos?
Pedi licença do meu trabalho assim que anunciado como candidato, lá atrás, em outubro, logo depois das reuniões anuais do FMI [Fundo Monetário Internacional]. Basicamente, foi para me apresentar e falar com todo mundo. São 48 governadores, em geral ministros da Fazenda, e devo ter falado com todo mundo. Também falei com muita gente no Brasil.

Diante de todo esse apoio, qual foi a sua reação quando soube que o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega havia enviado uma carta aos EUA pedindo o adiamento da eleição porque o sr. não havia sido indicado pelo governo eleito do Brasil? Não quero entrar em questões passadas. Não dei entrevista sobre isso. Você sabe do meu estilo. Não entro em confronto. E também não é momento para isso.

Nunca foi considerado o adiamento da eleição porque é uma questão de procedimento e de regulamento do BID. Isso não era possível.

O que posso dizer é que a minha candidatura representa o Brasil. Eu acredito que esse é um momento de, como brasileiros, todos nós, juntos —todo mundo mesmo, 100%—, trabalharmos em harmonia com o BID. Posso dizer que é um prazer avançar com a minha plataforma, que, como já foi dito, coincide muito com a do governo eleito do Brasil. Vou trabalhar em harmonia com o governo eleito do Brasil e com todos os governos da região.

Alguém do governo eleito o procurou antes ou depois da eleição? Não quero entrar nessas questões, mas diria que os apoios e as conversas foram de todos os matizes.

Comenta-se que o apoio dos EUA foi oficializado após o ex-chanceler Celso Amorim, pessoa próxima a Lula, dizer em uma entrevista que não havia objeção ao seu nome. É verdade que esse gesto agregador ajudou? Eu diria que sempre foi relevante a percepção de que não havia objeção ao meu nome. Assim como foi importante a posição do atual governo, que apoiou meu nome e votou. Tanto o apoio quanto a não-objeção foram importantes para dar tranquilidade aos que votaram em mim.

Vou, sem dúvida, trabalhar com o governo eleito do Brasil e de todos os países da região. Avaliar financiamentos à infraestrutura e questões como meio ambiente, pobreza, desigualdade e fome —que chamamos de insegurança alimentar.

O sr. já tem alguma medida elaborada para aliviar a fome? Segundo o último dado, 40% da população dessa parte do continente tem algum nível de insegurança alimentar, moderada ou severa. As ações precisam ser conjuntas. Primeiro, é importante agir emergencialmente, com planos de transferência de renda. Mas é necessário também garantir financiamento em questões emergenciais de oferta. Se o problema é oferta de alimentos, precisamos ampliar a atuação pensando localmente. América Latina e Caribe são responsáveis por 45% da produção de commodities alimentares. Mas precisamos ter produtividade não apenas para a exportação.

Também é preciso ter linhas de financiamento para fazer o recurso chegar à ponta, para atender os mais pobres, que têm dificuldade em acessar crédito.

O sr. assume o BID em um momento global mais sensível, com inflação elevada e projeções de retração do PIB. Qual pode ser a contribuição do banco? Nesses momentos mais difíceis, as taxas de juros internacionais ficam mais altas e os financiamentos, mais escassos. Recursos de organismos multilaterais como o BID são essenciais. Temos espaço para tornar o BID, novamente, a instituição mais importante da América Latina.

Os financiamentos do banco podem ser dirigidos para atuar em várias questões básicas, como pobreza e desigualdade, questões de gênero e temas climáticos. Há toda uma discussão a ser feita sobre a Amazônia. Eu não poderia ser um candidato do Brasil sem pensar na preservação da biodiversidade da floresta amazônica. Esse é um papel de todo brasileiro. Atuar na Amazônia para melhorar a questão do clima é uma contribuição global. Vou atuar como elo nessa discussão.

Economistas não costumam se dedicar a temas como diversidade, e o sr. destacou no seu plano atuar em questões raciais, de gênero e LGBTQIA+. Por quê? Esse é um dos temas mais debatidos dentro dos organismos multilaterais. É uma preocupação de vários integrantes do conselho, tanto dos membros da região, da América Latina, quando de outros países europeus e asiáticos. O BID precisa ser uma liderança nessa temática da inclusão.

Quando o sr. foi presidente do Banco Central atuou fortemente numa agenda de digitalização, abrindo caminho para as fintechs. Como a sua gestão vai tratar esse tema? Vou trabalhar para usar a tecnologia para que a região dê um salto de produtividade. Mas entendo também que a digitalização e a conectividade podem promover a inclusão de milhões de pessoas. Vimos isso com a Agenda BC+ no mercado financeiro, e a inclusão digital pelo aspecto social pode tirar milhões da marginalidade.

Qual será o papel dos investimentos em infraestrutura na sua agenda? Uma das linhas mestras do BID é o financiamento à infraestrutura, e será uma de minhas prioridades. Mas junto com o BID também precisamos trazer recursos privados. O dinheiro público é escasso. A demanda nessa área supera a oferta de dinheiro público.

Mas é importante dizer que os recursos privados entram mais facilmente quando o país tem respeito às leis e regras do jogo. Tem democracia. Se o país tiver um bom ambiente de negócios, ajuda o trabalho do BID de atrair recursos privados para financiar a infraestrutura.

O que o sr. chama de bom ambiente de negócios? Na infraestrutura os investimentos podem ser de 10, 20 anos. Ninguém entra num país se houver risco de quebra de um contrato em dois anos. Então, as regras precisam ser claras e confiáveis, as agências reguladoras devem funcionar, o Judiciário precisa atuar cumprindo as leis e o ambiente macroeconômico deve ser relativamente.

O sr. diria que o Brasil tem hoje um bom ambiente de negócios? Pergunto porque o Brasil acumula contenciosos judiciais, as agências reguladoras sofrem interferências e, os nos últimos dias, os mercados sobem e descem a cada interpretação de falas do presidente eleito sobre questões fiscais. Eu já estou eleito. Não me cabe mais discutir questões internas e conjunturais de nenhum país. Estou falando aqui como representante do BID.

O sr. já vestiu mesmo a camisa de presidente do BID... Eu passei tantas semanas explicando a minha plataforma, falando em fóruns, porque ocorreram debates entre os candidatos, falando com governadores, então, chego aqui já amadurecido. Mas é apenas o começo, viu? Vou te dizer: a primeira coisa que eu vou fazer é sentar com todo mundo para escutar. Vou escutar os especialistas, as diferentes áreas, o conselho. Nós não podemos desperdiçar este momento histórico —em que o primeiro brasileiro, após 63 anos, chega à presidência do BID— para fazer um trabalho que nos orgulhe a todos no Brasil e na América Latina.

RAIO X
Ilan Goldfajn, 56

Nascido Haifa, Israel, veio ainda criança para o Brasil. Formado em economia pela UFRJ (Universidade do Rio de Janeiro), tem doutorado em economia pelo MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) e foi professor da PUC-Rio. Atuou tanto na iniciativa privada como na pública. Foi economista do FMI (Fundo Monetário Internacional) e presidente do Banco Central do Brasil, economista-chefe do Itaú Unibanco e presidente do conselho de administração do Credit Suisse Brasil.

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