Descrição de chapéu Financial Times

Mulheres no Reino Unido recorrem a trabalho sexual para manter contas em dia

Com o aumento cada vez maior do custo de vida, muitas delas assumem riscos maiores

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Alexandra Heal Anna Gross
Londres e Sheffield | Financial Times

Tiffany alisou seus cabelos, se olhando no espelho do banheiro, e tirou a aliança de casamento do dedo, sentindo um friozinho tenso na barriga.

A antiga funcionária pública entrou no carro dirigido por seu marido, que a deixou perto de um hotel confortável em Cardiff. Ela entrou no bar do hotel, tentando identificar o homem com quem vinha trocando mensagens, em meio ao zumbido das conversas e à música de piano. Quando ela o avistou, ele também parecia nervoso.

Tiffany deixou o hotel algumas horas mais tarde, se sentindo aliviada. "Sinto orgulho por poder ajeitar nossa situação... e manter um teto sobre nossas cabeças", ela diz. "Estou fazendo isso por minha família, minha casa e meu marido".

Mulheres no Reino Unido recorrem a trabalho sexual para pagar as contas - Justin Tallis - 9.out.2013/AFP

Tiffany é parte de uma onda de mulheres que, impulsionadas em parte pelo panorama econômico sombrio do Reino Unido, decidiram este ano começar no, ou retornar ao, trabalho sexual, uma constatação extraída de entrevistas do Financial Times com 23 profissionais do sexo, e com 14 organizações assistenciais e de defesa das mulheres em cidades como Manchester, Sheffield, Liverpool, Leicester, Wolverhampton e Londres.

Há muitas razões para que as pessoas comecem a vender sexo, e elas variam do desejo de garantir a independência financeira à exploração por quadrilhas de criminosos. Mas há também uma explicação mais direta: com a inflação chegando aos 11% anuais, o Reino Unido parece estar entrando em uma recessão prolongada, o que cimenta uma crise de custo de vida que está levando as famílias a se prepararem para severas dificuldades.

Em um momento em que mais mulheres parecem estar vendendo sexo, a situação econômica do país também está reduzindo a demanda, o que cria um ambiente mais perigoso para aquelas que trabalham no setor, já que elas precisam correr mais riscos para conseguir pagar as contas. É algo que afeta tanto as mulheres que trabalham em domicílio ou em hotéis, muitas vezes atendendo a clientes mais ricos, quanto aquelas que recorrem à prostituição de rua.

O aumento no número de mulheres que recorrem ao trabalho sexual vem tornando mais urgente o debate político sobre a maneira pela qual esse tipo de atividade é policiado no Reino Unido.

Ativistas dizem que é mais importante do que nunca rever as leis que regem o setor, embora haja uma divisão entre aqueles que querem descriminalizar completamente a atividade e aqueles que querem proibir o sexo pago. Todos argumentam que o trabalho sexual é uma parte da sociedade que não pode ser silenciosamente ignorada: o Serviço Nacional de Estatísticas (ONS) do Reino Unido estima que ele tenha contribuído com 4,7 bilhões de libras para o Produto Interno Bruto (PIB) do país em 2021, e um em cada 10 homens no Reino Unido diz já ter pago por sexo.

Pressão econômica

Tiffany começou a fazer trabalhos sexuais ocasionais seis anos atrás, para pagar uma fatura de cartão de crédito. Quando ela foi demitida do serviço público, mais tarde, sobreviveu com os ganhos de seu marido até que os lockdowns da pandemia resultaram no fechamento da oficina dele. Uma grave deterioração na saúde mental de seu marido, este ano, significa que ele não tem mais condições de trabalhar. Tiffany, que está na casa dos 30 anos, precisa cuidar do marido em tempo integral.

O aumento nas contas de energia e no custo dos alimentos, combinado a pagamentos de dívidas, é mais alto que os benefícios combinados que o casal recebe, ela diz. E com as taxas de juros em alta, Tiffany está ansiosa para concluir o mais rápido possível o pagamento da hipoteca do casal.

Em setembro, Tiffany sentiu que o trabalho sexual era a única maneira de obter renda suficiente para cobrir seus gastos e ao mesmo tempo manter a flexibilidade necessária para cumprir suas responsabilidades como cuidadora. Ela ganha cerca de mil libras por semana, uma renda que ela diz declarar à Receita britânica, o que significa que os pagamentos de assistência ao casal devem parar em breve. O trabalho sexual não é "o trabalho dos sonhos de ninguém", ela diz, acrescentando que "estou feliz por poder fazer isso para nos apoiar financeiramente, mas depois vou parar".

Cinco das 23 profissionais do sexo entrevistadas dizem que voltaram ao setor em 2022, depois de anos afastadas dele, e que o aumento do custo de vida determinou ou pelo menos influenciou sua decisão. É amplamente aceito que a maioria dos trabalhadores do sexo são mulheres, embora o trabalho sexual masculino tenha aumentado nos últimos anos, com o crescimento da venda casual de serviços em plataformas como o Grindr e o Instagram.

Uma análise pelo Financial Times dos perfis de todos os 21 mil acompanhantes registrados no site Adultwork.com no Reino Unido sugere que este ano o número de adesões foi três vezes mais alto que o de 2019. Não está claro se isto reflete uma transição dos trabalhadores do sexo existentes para a publicidade online, ou um aumento em seu número geral, que em 2015 foi estimado em cerca de 73 mil.

Mas Leanne Harper, que dirige o projeto Changing Lives, que busca ajudar os trabalhadores do sexo em Wolverhampton, viu um "aumento dramático" este ano na publicidade online local de serviços de sexo, e também um aumento acentuado no número de pessoas que oferecem sexo pago nas ruas ou voltaram a fazê-lo.

O English Collective of Prostitutes, que trabalha principalmente com prostitutas que oferecem serviços nas ruas e em bordéis, diz que mais mulheres do que o normal estão procurando conselhos sobre como começar ou recomeçar a oferecer serviços, muitas das quais mães com empregos de escritório ou no varejo, mas que precisam de dinheiro extra para pagar as contas ou comprar uniformes escolares.

O Sheffield Working Women's Opportunities Project também diz que seu programa de assistência e sua clínica foram contatados 369 vezes de julho a setembro deste ano, ante 198 vezes no mesmo trimestre em 2019. Embora o perfil das envolvidas em trabalho sexual ofereça um corte transversal da sociedade e de circunstâncias pessoais, muitas das mulheres que procuram o serviço em Sheffield lutam contra o abuso de substâncias ou a falta de moradia. Algumas bancam os vícios de seus parceiros, além dos próprios.

"Vimos o retorno de mulheres que não procuravam o serviço há mais de 10 anos", diz Rosie Peers, gerente de projeto da instituição assistencial. "Muitas delas tinham conseguido se desintoxicar e estão voltando às ruas porque precisam pagar a conta do gás... A triste realidade é que, quando voltam, a probabilidade de que escapem uma segunda vez é muito baixa e... a probabilidade de que voltem a usar drogas é alta".

A Manchester Action on Street Health, que atende a uma população semelhante, registrou 310 novos usuários utilizando seus serviços nos 12 meses até setembro de 2022, ante 179 em 2019-20. Trabalhadores de rua da instituição assistencial dizem que as mulheres vêm declarando com clareza excepcional que estão trabalhando para pagar as contas, e não para comprar drogas.

Perigos maiores

O ramo do sexo de rua em Sheffield continua funcionando no subúrbio industrial da cidade. Motoristas de caminhão, alguns dos quais fregueses regulares, estacionam seus veículos em áreas escuras. As trabalhadoras do sexo nos últimos anos se viram restringidas a algumas ruas solitárias, com a chegada de novos alojamentos para estudantes e restaurantes em estilo rústico aos armazéns da região.

Os perigos do trabalho de rua começam a parecer mais agudos. As trabalhadoras do sexo que circulam pela rua sempre solicitam pagamento antecipado, mas as mulheres dizem que os fregueses hoje tentam com mais frequência que no passado roubar seu dinheiro de volta, depois, o que resulta em disputas violentas. Um quadro de avisos na clínica da Manchester Action on Street Health descreve os homens por trás de três tentativas de roubo de pagamentos nos últimos meses, uma das quais, segundo um relatório, terminou em estupro anal.

"Eles agora são mais exigentes e agressivos... Alguns levaram meu telefone, em vez do dinheiro, e disseram que me estuprariam se eu não o entregasse", diz Jade, de 20 e poucos anos, que trabalha como prostituta nas ruas de Sheffield.

As entrevistadas dizem que o cenário econômico sombrio está contribuindo para um ambiente de trabalho mais perigoso. Nove mulheres que têm experiência de longo prazo em trabalho sexual dizem que a demanda está caindo, o que as força a reduzir seus preços para atrair ou manter clientes.

Jodie, 52, que falou na clínica de Sheffield, começou a oferecer sexo por dinheiro em uma sauna há 30 anos, para sustentar seus filhos, mas acabou trabalhando nas ruas e usando drogas a fim de turvar sua consciência sobre a situação. Ela não usa mais drogas, mas recebe clientes regulares em casa para suplementar seus benefícios mensais de assistência de 200 libras mensais.

"Eles vêm tentando baixar o preço, mas não me importo, porque enfrentam as mesmas dificuldades que eu", ela diz sobre seus clientes de longo prazo, que ela considera como "amigos com benefícios". Em Sheffield, as mulheres dizem que o preço por cliente é de apenas entre 10 e 15 libras, abaixo das 20 a 30 libras que eram a norma antes da pandemia.

Outras mulheres dizem que os homens –tentando aproveitar o poder de negociação que a situação do mercado lhes confere— estão se tornando mais exigentes, por exemplo pressionando por sexo oral e anal desprotegido.

"Os clientes sentem que podem arriscar esse tipo de exigência, porque devem saber que as meninas estão sem grana", diz Sue, uma trabalhadora de bordel radicada em Peterborough. "Os homens violentos tomam isso como luz verde, porque acham que as mulheres não podem recusar, e muitas vezes nós de fato não podemos".

Acompanhantes que trabalham em ambiente fechado, como Tiffany, dizem que seus clientes foram menos afetados pela crise do custo de vida, mas alguns estão sentindo seu impacto. Duas acompanhantes dizem que se voltaram para novas formas de trabalho sexual ou aceitaram clientes com os quais se sentem desconfortáveis a fim de manterem sua renda, já que a demanda caiu.

Audrey Caradonna, porta-voz da United Sex Workers, diz que estava trabalhando independentemente em casa, mas nos últimos meses começou a trabalhar em um bordel, para garantir fregueses. Ela precisa atender de oito a dez clientes no bordel para ganhar a mesma quantia que ganharia atendendo a três clientes em casa. Quando sua base de clientes encolheu, durante a pandemia, ela passou a aceitar clientes mais arriscados, entre os quais um que ela registrou em seu celular com o aviso "evitar a todo custo", e outros que tentaram pressioná-la por serviços como estrangulamentos. Ela teme que a situação possa voltar a exigir esse tipo de coisa, em breve.

Apelos pela descriminalização

Diversas organizações ativistas dizem que a solução é abandonar leis que eles acreditam tornar o trabalho sexual consensual mais perigoso.

No Reino Unido, oferecer sexo por dinheiro não é ilegal, mas a maioria das práticas que cercam a atividade o são: manter bordeis; causar ou incitar prostituição para fins de ganho (por exemplo ao alugar cômodos para trabalhadoras sexuais ou assessorá-las de qualquer maneira); ou oferecer nas ruas atividades sexuais pagas (o que é ilegal tanto para quem as oferece quanto para quem aceita).

Em 2003, a Nova Zelândia descriminalizou todas as formas de trabalho sexual e começou a regulamentar o setor. Quando o governo revisou essa nova política, em 2008, não encontrou nenhuma prova de que ela tenha resultado em um aumento no número de trabalhadores no ramo. Em lugar disso, as novas leis facilitaram que os profissionais do sexo recusassem clientes específicos, aumentou a confiança deles na polícia e levou a melhorias nas condições de emprego. A Bélgica copiou o modelo este ano.

Mas para muita gente, legalizar a oferta de sexo por dinheiro equivale a aceitar a exploração e a venda dos corpos das mulheres. "Eu não acho que as mulheres deveriam ser submetidas a acusações criminais, mas os homens que pagam deveriam ser acusados criminalmente por isso", diz Julie Swede, que foi forçada por um cafetão a fazer sexo pago com homens em diversos locais do Reino Unido desde que tinha 15 anos de idade.

Swede, cujas condenações por prostituição de rua dificultaram que ela obtivesse emprego formal, prefere o chamado modelo nórdico, que descriminaliza a venda de sexo mas torna ilegal comprá-lo. Os defensores dessa estrutura querem ver a prostituição totalmente abolida e argumentam que a descriminalização total da compra de sexo tornaria mais difícil para a polícia identificar mulheres que foram traficadas.

Reportagem adicional de Dan Clark. A maioria das trabalhadoras do sexo mencionadas nesta história foram identificadas por seus nomes de trabalho ou pseudônimos

Tradução de Paulo Migliacci

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